Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXIX)

Além Paraíba, 9 de dezembro de 2042

Aquilo que hoje vos conto passou-se há quarenta anos. Estávamos no julho de 2002 e o vosso avô atravessava o Atlântico, para mais um tempo de aprendizagem de Brasil.

Em Portugal, julho e agosto são, por regra, os meses mais quentes do ano. Parti vestido de camiseta leve e sandálias. De Guarulhos segui para o interior paulistano. O dia estava enfeitado de sol, a temperatura estava amena. Porém, um vento gélido começou a soprar, no final da tarde.

No interior do Brasil, o mês de julho é, tradicionalmente, “fresquinho”. Eu não previra essa situação e o meu corpo começava a reagir, eu já tremelicava. Dirigi-me a uma loja, para comprar agasalho.

“Boa tarde! Preciso de uma camisola.”

“Uma camisola?” – quis confirmar a atendente.

“Sim, uma camisola.”

“E… para quem é a camisola? A pessoa é magra? Que idade tem a senhora?”

“Não! Não é para outra pessoa, a camisola é para mim.”

A funcionária fitou-me com ar de incredulidade. 

“O senhor está a brincar, não está?”

“Não! Não estou. A camisola é mesmo para mim. Lá fora, está muito frio.”

Poupar-vos-ei à descrição do que, a seguir, se passou. Acabámos ambos a rir, quando tudo se esclareceu e a moça do balcão da loja ficou sabendo que, em Portugal, camisola é roupa de lã, tecido de aquecer o corpo.

No tempo em que a palavra ainda era fonte de mal-entendidos, essa não foi uma situação isolada. Já em 2001, no nordeste brasileiro, eu “armara confusão”, quando me referi aos “putos da Ponte”, e tentei explicar como esses putos aprendiam. Até recorri a alguns versos de um belo poema: “São como bandos de pardais à solta os putos.”

A palestra decorria numa escola confessional. E eu não entendia por que as freirinhas da primeira fila do auditório manifestavam incómodo. Quase saltaram da cadeira, quando eu disse que as professoras da Ponte eram raparigas muito trabalhadoras. E exibiram nos rostos um esgar de reprovação, quando eu afirmei que precisava de “pagar propina”, para poder estudar.

“Puto” é a palavra portuguesa equivalente a “guri”. É a maneira mais bela de nos referirmos a uma criança… em Portugal, claro! No Sul, a palavra adquiria dúbio significado, ou era considerada vitupério. Involuntariamente, eu proferia ofensas. 

Foram inúmeras as situações de linguístico desentendimento. Já nos idos de setenta, quando rumei aos cafundós do meu país, precisei de elaborar um glossário, para mitigar o meu desenraizamento cultural.

Desde 2040, as cartas que vos enviei eram sementeiras de palavras, que adquiriram visibilidade pública, tentando encurtar o fosso existente entre os saberes e os fazeres, e entre o linguarejar teórico e o domínio da prática. Tarefa difícil era essa de tentar explicar o sem sentido da Escola que tivemos, até aos anos vinte deste século! Mas não perdia nada em tentar.

Para nos referirmos ao sujeito de aprendizagem no contexto de uma relação, desenvolvendo vínculos, não seria suficiente falar de pedagogia. Já não se tratava da paidós grega, da criança conduzida pelo pedagogo, nem de andragogia, palavra que designava a educação de adultos, mas de considerar a pessoa (o ser humano criança, jovem ou adulto) em autotransformação-com-outros, produzindo e partilhando conhecimento. Poderíamos recorrer, por exemplo, ao termo antropogogia, para designar uma ciência da aprendizagem.

Para uma nova construção social de aprendizagem seria necessário conceber uma nova nomenclatura. Se a linguagem produz e reproduz cultura, se àquilo que era novo não se deve aplicar raciocínios dedutivos, não se recomendaria a elaboração de um novo glossário?

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