Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXXVII)

Águas Claras, 17 de dezembro de 2042

Mais uma cartinha “azeda” (como vós lhes chamais) vos envio. Quisera fosse diferente, mas uma estranha melancolia me assaltou, coisa de velho que me impeliu para contar tristes episódios ocorridos há vinte anos.

No mesmo dia da visita do ex-ministro português (o da cartinha de ontem), era anunciado um Camilo à frente dos destinos da educação brasileira. Sobre o que esse Camilo fez e sobre o que não fez prometo falar-vos, em breve. Agora, completarei a descrição do episódio ontem iniciada, citando (ipsis verbis) o ex-ministro de má memória.

Ele começou a sua palestra depreciando a obra de Piaget, difamando o escolanovismo, demonizando Vigotsky e tudo aquilo que não fosse instrucionismo.

“Hoje, sabe-se muito mais do que no tempo do Piaget e do Vigotsky, que viveu há cem anos.”

Olha a novidade! Era certo o atraso. Mas, o “mas” a que ele se referia qual seria? Se ele defendia práticas instrucionistas, estaria muito mais “atrasado” do que o Vigotsky. Não cem, mas mais de duzentos anos! Mais adiante:

“A educação não vai bem. Nenhum dos países ultrapassou os 500 pontos.”

Etnocêntrico e arrogante, o palestrante enaltecia o PISA de Singapura, enquanto humilhava o Sul dos últimos lugares do ranking. O Sul que, lamentavelmente, o tinha convidado.

“Há uma revolução científica na educação.” – afirmou. Só não disse de que revolução se tratava e optou por enveredar por uma verborreia feita de “modismos pedagógicos”, como os “métodos contrafactuais” ou a “economia da educação”, misturados com a psicologia cognitiva e as neurociências, tudo bem arrumadinho em power point.

Disse não dar importância às “competências”, mas ao “conhecimento”, sem que aprofundasse tais conceitos e nos deixasse sem perceber a que se referia. Saberia o que era uma “competência”? Duvido. Talvez a criatura não fizesse a mínima ideia do que isso fosse, mas, sentia-se seguro por não dar hipótese de alguém o questionar.

“A Finlândia subiu até 2015. Depois, deixou o “ensino direto” e desceu.” – e foi mostrando gráficos de subir e descer, ILSA, TIMSS, PISA, PIRLS, manipulando percentagens, no blá-blá- blá costumeiro de quem diagnosticava crises sem saber como as debelar. Concluindo que as responsáveis pela crise eram as “novas pedagogias”, algo que apenas existia na sua imaginação.

Criticou aquilo que chamou de “sistema laxista centrado no aluno”, mas não disse onde tinha visto tal coisa. Também disse que o “ensino direto era melhor do que o ensino baseado na descoberta”. E atribuía à “aprendizagem pela descoberta” os maus resultados revelados pelo PISA.

Onde teria ele visto a aplicação do que chamava de “ensino baseado na descoberta”, se em 99 % das escolas avaliadas pelo PISA as práticas eram instrucionistas, ainda que, teoricamente, as apelidassem de “metodologias ativas”? Os péssimos índices revelados pelo PISA ficavam a dever-se a hegemônicas práticas instrucionistas.

Afirmou conhecer soluções, como deveria ser a “escola do futuro”, repetindo frases feitas, propondo paliativos instrucionistas, manipulando dados estatísticos. Para ele, como para os “estatísticos” por ele citados, as ciências da educação eram ciências ocultas. Ainda que fossem “doutorados em Educação”, eram ignorantes da Educação necessária. E, como vimos, alguns até chegavam a ser ministros.

Essas arrogantes criaturas infestavam os gabinetes de direção e administração educacional, impedindo que o direito à educação se cumprisse. Mas, o que impediria que os cientistas da educação quebrassem o seu proverbial e obsceno silêncio?

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