Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXIII)

Ceilândia, 12 de janeiro de 2043

Quando remexo no baú das velharias, deparo com notícias que os meus olhos desejariam não ler. Como esta, colhida num jornal do janeiro de há vinte anos:

“Menino de seis anos atira, dentro de sala de aula, e atinge professora.

O indivíduo é um aluno de seis anos, que está sob custódia policial” – dizia o chefe de polícia, acrescentando “não se tratar de um tiro acidental”.

A polícia informou que a vítima, uma professora de cerca de 30 anos, corria risco de vida.

Tiroteios em escolas devastavam os EUA. No Texas, dezenove crianças e dois professores tinham sido assassinados por um atirador de dezoito anos. Segundo o Gun Violence Archive, em 2022, teria havido cerca de 44 mil mortes relacionadas a armas de fogo nos EUA. Quase metade das mortes tinham sido assassinatos, acidentes e legítima defesa. A outra metade, suicídios.

Uma sociedade doente recusava identificar a principal fonte de violência física e simbólica. E injetava Ritalina nas crianças, introduzia paliativos neoliberais nas escolas, comprava pacotes de habilidades emocionais.

Entrando o “sistema” na sua fase delirante, quando já não sabia como lidar com vândalos, como os da depredação de Brasília, surgiam empresas especializadas em “acalmar alunos”. Reparai no teor de um anúncio (entre muitos), que a Internet dos idos de vinte nos fazia chegar:

“Também sentes que a energia com que os alunos voltam do intervalo ou da pausa do almoço é tantaaaaa que fica complicado acalmá-los?

Eles entram na sala e é começar a chamar a atenção, a impedir que vão para certas áreas da sala, é interferir nos minis conflitos que os acompanham…e às vezes a coisa só acaba com 2 gritos e um ambiente tenso!

Então, hoje vamos transformar-te numa SUPER…. Super?

Sim, é que esta estratégia para trazer a Calma vai fazer de ti a super Professora, (e super Mãe, Super Tia, Super Madrinha, Super Avó). Estás a perceber a ideia?

Podes usar na rotina, quando voltam do intervalo, para irem acalmando ao observar as bolinhas.

O melhor é que tem Bónus porque vai ajudar os miúdos a: acalmar e serenar quando estão mais agitados, diminuir birras e momentos de emoções desreguladas, aliviar stress e ansiedade, aliviar momentos de assoberbamento sensorial, ocupar momentos de tédio.”

Essa empresa teria lucro assegurado, dado que as emoções desreguladas e o tédio eram comuns nas salas de aula. Procurei ignorar esses e outros disparates, e me lancei num último empreendimento.

Convidei educadores para a criação da primeira comunidade de aprendizagem, recuperando solidariedades perdidas, tentando re-ligare o que havia sido desunido pela Escola cartesiana. Tentando juntar a Família com a Sociedade e a Escola. Tentando juntar uma educação humanizadora com a arte e cultura, e com a saúde pública e ambiente. Tentando efetivar um diálogo respeitoso entre as escolas, o poder público e a universidade.

Na consideração dos quatro pilares do Dellors, os professores reaprenderam a conhecer, adquirindo hábitos de pesquisa, emancipando-se de práticas instrucionistas de sala de aula. Aprenderam a refazer o seu estatuto profissional,

reelaborando a sua cultura pessoal. Aprenderam a ser professores-tutores, sujeitos de aprendizagem, aprendizes de utopias realizáveis.

O quarto pilar foi o mais difícil de erguer pois, nem dentro da casa comum, foi fácil aprender a… conviver. Na Brasília de 22, a casa comum fora depredada. O exercício de uma “liberdade para sempre”, lema do novo governo, teria de passar pela concretização do sonho de Anísio, o de uma escola pública berço de cidadania.

 

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