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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLX)

Maricá, 28 de fevereiro de 2043

Na Brasília de vinte e três, uma boa surpresa me esperava: a deputada Érica Kokay citando Paulo Freire, num evento patrocinado por um banco, e uma equipe de excelentes educadores com um verdadeiro projeto de comunidade. Não se tratava de mero apoio financeiro, mas de preocupação com o fenômeno da desigualdade social. 

Prometi ajudá-los e voltei ao convívio de outra boa gente, que construía comunidade nas margens de uma lagoa. Nas longas viagens de vinte e três, deleitava-me com a leitura das sábias (e críticas) palavras do Mestre Pedro: 

“O sistema fundado em aula instrucionista não arreda o pé, em grande parte capitaneado pela escola privada e pelo ambiente de cursinho. No Ideb de 2013 a escola privada se saiu muito mal, pior que a pública: não só não atingiu a meta em nenhum caso (anos iniciais e finais, ensino médio), como caiu nos anos finais e mormente no ensino médio, insinuando crise pedagógica lancinante. 

Mesmo assim, o sistema continua impávido, por agarramento ideológico canhestro, levado pela vanglória de ser a Meca dos vestibulares e concursos mais procurados. 

Isto apenas mostra o que a China secularmente sempre mostrou na análise de Zhao: é possível passar apenas com decoreba alucinada. Enquanto o próprio mercado globalizado competitivo brada que não aproveita decoreba, porque precisa de trabalhador crítico e criativo, autorrenovador, capaz de produzir conhecimento próprio, a escola não vai além de repassar conteúdo, sem que o estudante entenda, em especial em matemática. 

Uma inutilidade e uma injustiça! Quando aprendizagem é excepcional, para que serve a escola?

Um sistema que produz tamanha asneira não pode permanecer a base do PNE, como se fosse apenas questão de reformas pontuais. É preciso, frontalmente, virar a mesa.

O fracasso escolar tem múltiplas causas (pobreza socioeconômica, falta de apoio familiar, condições precárias de trabalho, moradia em periferias urbanas violentas, falta de acesso a apoios intelectuais e culturais etc.), sendo o professor uma delas. 

Ainda, não aludimos aqui que seja “culpa” docente, porque o professor faz na escola o que fizeram com ele na universidade – ele mesmo não sabe aprender; como conseguirá que seu estudante aprenda?

A vilania da universidade está em dois lances que precisamos desvendar. Não se pode alegar que a universidade não saiba o que é aprender, não só porque é detentora das melhores propostas e pesquisas de aprendizagem, ainda que todas sejam naturalmente incompletas, discutíveis, revisáveis; segundo, porque, tratando-se se formar a elite superior docente, aplica-se uma pedagogia completamente diferenciada, de marca autoral inconfundível.

Para fazer mestrado ou doutorado, mesmo ainda em meio a excesso de aulas, o procedimento central é constituir um projeto de pesquisa, submetê-lo à qualificação, realizar a pesquisa, produzir um livro, defender com banca pública. Fabrica-se tipicamente um autor. Neste caso a universidade reconhece que a produção de conhecimento pressupõe autoria, não aula, prova, repasse. 

O segundo lance se refere à hipocrisia comum de que este autor, ao adentrar a sala de aula, “só dá aula”. Esta reclamação é mundial – PhDs ilustres, mesmo Prêmios Nobel, quando entram em sala de aula, “dão aula”. Fazem bem o “conto do vigário.” 

Universidades de pesquisa saem deste script porque, no contexto de uma comunidade de aprendizagem e produção científica, todos produzem conhecimento.

Por que a Universidade prefere aula, prova e repasse, negando isso na formação do mestre e doutor?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLIX)

Brasília, 27 de fevereiro de 2043

Eis-me regressado, ainda que por tempo escasso, a um lugar bem familiar. Vim à capital a convite de amigos, para dialogar sobre inovação. E para preparar um breve regresso à Brasília do Niemeyer, do Darcy e do Mestre Pedro.

Ainda hoje, deparamos com práticas engendradas na Prússia do século XVIII. Embora residuais, são nefastas e motivo para que vos proponha ficar na companhia do Mestre Pedro, escutando a sua crítica das absurdas segmentações cartesianas dos idos de vinte.

“O ensino fundamental ainda tem “dois ciclos”, que chamamos de anos iniciais (dos pedagogos) e anos finais (dos licenciados). A distinção é marcante, sobretudo em seus efeitos, kafkianos.

Nos anos iniciais, o desempenho é bem superior, ainda que não satisfatório. Tomando o caso de Sobral, com o maior Ideb nacional em 2015, o aprendizado adequado de matemática nos anos iniciais, foi de 95% (uma cifra finlandesa, para espanto e incredulidade geral). Mas, nos anos finais, desceu para 60%, numa queda vertiginosa.”

O Mestre Pedro escrevera essas considerações em dois mil e dezoito. Por antecipação, não poupava a neoliberal “sobralização”, que no início de dois mil e vinte e três estava na moda. Para o Mestre Pedro, era “um sistema de ensino imprestável”. No dissipar de tempos sombrios o Mestre desmontava a falácia “sobralista”, que irrompeu no ministério, no início de tempos que poderiam ser transformadores. 

“O lado caduco do atual sistema de ensino – que o PNE quer salvar de modo flagrantemente amador – aparece logo no fato de que, ao contrário de como se apregoa em educação para todos os ventos, que é o lugar mais correto para mudança, entre nós é o lugar onde se anda para trás.

Com algum viés de subida nos anos iniciais, nos anos finais e no ensino médio, o panorama é de desastre generalizado, com exceções pontuais. Em matemática é uma tragédia, mesmo num estado como São Paulo. No DF, onde temos a melhor cifra de aprendizado adequado no ensino médio (17.0%), além de ser inaceitável por completo, caiu no tempo de maneira abusada (era de 31.5% em 1995).

Inúmeros são os problemas. Mas a referência crucial e fatal é falta de aprendizagem. Como os dados acima indicam com veemência inaudita – e levando-se em conta que o Ideb não é indicador satisfatório de aprendizagem – o que temos na escola atual é repasse de conteúdo, aula de sobra e prova contínua, um arsenal de armas montadas para uma guerra falsa.

A escola não existe para aprender, mas para se dar aula. Em matemática, a situação beira ao dantesco: um inferno vivo de inaptidão. Mesmo estados mais ricos, em geral com boas universidades, não conseguem desempenhar-se em matemática, como se fosse enigma insuperável aprender.

Apesar de dados estatísticos não serem referências fatais, porque são construtos metodológicos e teóricos e sujeitos a interpretações, podemos retirar deles a inépcia de nosso sistema de ensino, indicando ser necessário tomar outra rota.

Não cabe reformar este disparate, porque estamos enfeitando defunto. Estranho muito que o MEC não se mostre disposto a repensar sua história educacional tão inconsequente – seus próprios dados seriam mais que suficientes para abalar o sistema.

Persiste-se, porém, na mesma trilha, em parte porque não se deseja abandonar a zona de conforto, em parte por apego ideológico a um sistema reprodutivo patrocinado pela universidade.

Em geral, nos bastamos em aclamar feitos quantitativos, como crescimento da matrícula, enquanto descuramos a qualidade dos resultados, que são indizíveis, aberrantes.” 

Assim falava Mestre Pedro.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLVIII)

Papucaia, 26 de fevereiro de 2043

A nova coordenadora chegou e logo perguntou:

“Onde é a sala do oitavo?”

Foi-lhe explicado que, ali, não havia “sala do oitavo”, pela simples razão de que não havia sala de aula, nem “oitavo ano. “Por que deveria haver “oitavo ano?”

“Mas eu não sei trabalhar assim.”

“Então, terá de aprender.”

Nos círculos de aprendizagem, todo mundo aprendia. 

No diálogo com a Edna, a Márcia e o Gilberto, teve início novo ciclo de aprendizagem. As nossas crianças foram matriculadas na escola mais próxima da residência, como mandava a Lei. E os professores dessa escola mostravam-se sensíveis a um diálogo construtor.

No fevereiro de vinte e três, havia mais de uma dezena de “turmas-piloto”. Círculos de vizinhança e de proximidade despontavam e a inovação acontecia. Apenas faltava publicar a normativa de criação de uma escola pública com a designação de “comunidade de aprendizagem”.

A criação desse tipo de escola já não era “novidade”. Meia dúzia de anos antes, a equipe de projeto do CEF 04, realizava reuniões com famílias da comunidade do Paranoá. E assim nos dirigíamos ao amigo Júlio, Secretário de Educação do Distrito Federal: 

“Conforme acordado em reunião realizada no dia 24 de outubro de 2016, encaminhamos o projeto para constituição da Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (C.A.P).” 

Pouco tempo depois, a C.A.P. era criada. Um centro de eventos abandonado foi a sua primeira “ágora”. 

O secretário de educação seguinte (o Rafael), fez publicar uma portaria, instituindo o “Grupo de Trabalho para a proposição de Diretrizes de Política Pública para a implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal”.

E eu para aqui a contar-vos estórias, tentando redimir-me de não vos ter contado outras estórias, no tempo em que fostes crianças… É para relembrar momentos, que poderiam proporcionar novo rumo à triste educação que, nesse tempo, se fazia. Para vos dizer que, na Brasília desse tempo, havia gente moral e eticamente corrupta, que conseguiu suster um movimento regenerador, que só voltou a tomar forma em 2023.

Os burocratas eram matreiros, mas as experiências malsucedidas ensinaram-nos a “jogar ao gato e ao rato” com corruptos. A formação experiencial adquirida foi suficiente para que não voltássemos a “errar nos cálculos”.

Os círculos de aprendizagem não tinham nome de educadores falecidos, nem de personagens da história. Muito menos de políticos e coronéis! Assumiam o nome dos lugares onde as ágoras nasciam. Assim, surgiram os círculos da Lagoa das Amendoeiras, o da Orla do Marine, do Bosque de Itapeba… do Paranoá.

Conscientes da necessidade da assunção de autonomia e por ser necessário operar mudanças no campo da legislação, entregámos aos órgãos de administração contratos e termos de autonomia. E, em cada círculo, foram criados núcleos documentas, acervos constituídos por vídeos, livros, revistas de divulgação de práticas educacionais potencialmente inovadoras. Gestamos projetos de desenvolvimento humano, na consideração do educador como sujeito de transformação em equipe, envolvido num projeto de comunidade, na partilha da responsabilidade, privilegiando a participação de todos no ato de aprender. 

No nosso núcleo documental, lemos estórias de projetos destruídos. Estudando-os, estudamo-nos, para escaparmos à sina das perdas e danos. Sempre acompanhados pela inesgotável fonte de inspiração do Mestre Pedro e seus conselhos: 

“Os dados assustam, porque são terríveis. Mais terrível ainda é persistir nesta rota.”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLVII)

Nova Friburgo, 25 de fevereiro de 2043

“Boa tarde, José!

Regresso a este ponto do nosso contacto, nele retomo o caminho e conto contigo para prosseguir.

Nos últimos dois anos, estive a trabalhar como tutora online numa comunidade de aprendizagem. Durante esses dois anos, acreditei que era possível colocar em prática uma mudança, uma nova abordagem, uma nova educação: através da tutoria, metodologia de trabalho de projeto, aprendizagem à distância. Três fatores que, conjugados, poderiam dar errado. Na verdade, até deram certo.

Neste momento, a “comunidade” sofre mudanças fortes nas suas fundações. Quem trazia a visão pedagógica do projeto afastou-se. Desde então, sinto que o projeto está entregue a um conjunto de pessoas desesperadas por satisfazer as suas próprias necessidades de (in)segurança (não as das crianças). 

Por outro lado, os atuais “administradores” fazem pressão sobre os restantes colaboradores, para que a comunidade vá no sentido que eles próprios desejam, só porque estão entusiasmados com a quantidade de crianças que estão em lista de espera para entrar (pondo a hipótese de “oficializar” a escola).

Sinto que, neste momento, estou na comunidade sem que o meu trabalho seja valorizado (ou sequer visto!) e que já não me encontro num local seguro onde possa aprender o que é educar em comunidade.

Nesta mudança, fico tentada em arregaçar mangas e aplicar aquilo que tenho aprendido/lido sobre comunidades de aprendizagem. Mas, sinceramente, penso que acima de um conjunto de passos a executar estão as pessoas: estas é que devem resultar, para as receitas fazerem sentido.

Neste caso, acho que do lado de lá não há quem queira aprender em comunidade: apenas quem queira “governar” uma comunidade de pais insatisfeitos e aumentar a entrada de crianças.

Continuo a achar que tenho perfil para trabalhar com as crianças de uma forma mais aberta, genuína, próxima, relacional e menos focada em outros objetivos (exames, conteúdos, prazos, notas…). É esta a minha forma de ver a educação, neste momento, e me satisfaz poder vê-la concretizar se.

Contudo, preocupa-me que estas “comunidades da moda” esmaguem a nossa educação e retirem todo o potencial que a aprendizagem em comunidade tem. A nossa democracia e os nossos valores podem até estar, de certa forma, em risco.

O e-mail vai longo e ajudou-me a refletir sobre alguns aspetos contigo. Não preciso de resposta, se assim entenderes, mas achei que podia partilhar a minha visão em experiência e contribuir para o “state of the art” das alternativas à educação portuguesa.

Talvez não seja novidade para ti. Quanto a mim, adoraria poder, finalmente, fazer parte de uma comunidade de aprendizagem onde os nossos valores de democracia a sustentassem e que significasse uma boa aposta para aqueles que pretendem ver na prática uma diferente (mas possível) forma de educação. 

Será realidade, ou utopia?”

Respondi à Mariana que era realidade e utopia. Seria preciso partir de projetos reais e dos “desviantes”, concretizando a utopia, idealizar o real e realizar o ideal.

Na Internet daquele tempo, todo mundo falava de “comunidades de aprendizagem” e de “inovação”. O mercado se apropriara da expressão e usava-a, despudoradamente, num marketing fake, vendendo gato por lebre.

Num evento supostamente educacional, escutei muitas vezes a expressão “escolas inovadoras”. Velho insuportável, estraguei o ambiente de encantamento, quando perguntei aos palestrantes:

“Podereis indicar-me o endereço de uma dessas “escolas inovadoras”?”

Nenhum deles soube indicar um endereço. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLVI)

Rio Pomba, 24 de fevereiro de 2043

Nos idos de vinte, o vosso avô já levava mais de meio século de ajudar a conceber projetos. O primeiro aconteceu na Ilha dos Tigres e, tal como os restantes, envolveu adultos e crianças da comunidade. Aquele que considero mais relevante foi o das “Colónias de Férias”, um exercício de solidariedade, que assomou à minha memória, a memória de um tempo de criação de laços, que nos levaria até à celebração do primeiro contrato de autonomia entre uma escola e um ministério. 

Um dia, talvez vos conte essa estória. Por agora, voltemos aos ensinamentos do meu Mestre, zurzindo no malfadado instrucionismo.

“Socialmente, aprendizagem implica tecer coletivamente processos de autorias rivais e complementares, através das quais pessoas e sociedades podem tomar, até onde possível, o destino em suas mãos. 

Damos a este fenômeno o nome de “emancipação”, em geral reconhecido como bem-posto em Paulo Freire, em particular, na “pedagogia da autonomia”.

Volto-me para o cuidado que o Pacheco tem com a autonomia da escola, uma propriedade em geral inviável entre nós, porque a burocracia controla tudo.

Cabe lembrar que, uma vez consolidada a exigência de que todos os docentes precisavam de mestrado na Finlândia, uma das consequências foi eliminar a supervisão escolar. Aceitou-se a ideia de que, estando os professores bem apetrechados, em escolas condizentes, o que cabe ao Estado é definir o resultado esperado, por exemplo que quase todos aprendam bem”.

O amigo Pedro referia-se à Finlândia, a “Meca” dos secretários e ministros das primeiras décadas deste século, destino de turismo educacional. 

Nesse país, as escolas dispunham de autonomia. Mas, certamente, os turistas brasileiros nada entenderam (ou não quiseram entender). Até meados década de trinta, as escolas brasileiras foram mantidas cativas do dever de obediência hierárquica. Artigos da Lei de Bases como o 12º, o 13º, o 15º, o 23º e outros continuaram letra morta.

“No espaço da política educacional, as universidades (em especial as federais) são “autônomas”, em geral ciosamente. Escolas não, mesmo sendo entidades estaduais ou municipais (há algumas federais também, como escolas de aplicação).

Muitas escolas possuem diretores indicados e ainda é traço forte que, chegando novo Governador ou Prefeito, apaga-se o que havia antes, começando do zero, outra vez. Isto reflete um atraso republicano e democrático pesadíssimo, no sentido de que ainda não nos livramos do patrimonialismo político.

Na prática, não temos um projeto de país, mas a ocupação partidária (não por ideologia marcada, mas na mera luta por poder), de tal sorte, que continuidade governamental é praticamente inviável.

No meio desse tumulto surgiu a “escola sem partido”, uma excrescência típica de exacerbação partidária, num diálogo de surdos.

Uma escola “neutra” não existe, nem deveria existir, porque cidadania implica ter posição, não ter necessariamente esta ou aquela, mas a posição que o estudante, sob orientação, não doutrinação docente, consegue desenvolver e sustentar.

“Escola sem partido” não é aquela que não tem partido, mas aquela que se atrela ao “pensamento único”, à ideologia do mercado liberal, considerada acima de qualquer suspeita, a própria “ordem das coisas”.

Autonomia da escola significa, então, que os professores precisam ter liberdade de expressão, não para impor suas ideologias, mas para questionar a todas, deixando ao estudante a condição mais esclarecida possível de decidir.”

Em suma: ao invés de uma escola monocolor, uma escola arco-íris.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLV)

Volta Redonda, 23 de fevereiro de 2043

Ao cabo de alguns atritos, reuni pessoas (não nos esqueçamos de que escolas são pessoas!) e teve início um processo de transformação, que se prolongou por muitos anos. A segunda fase teve início quando senti que seria o momento de deixar que “o menino caminhasse pelo seu pé”.

Cortei o “cordão umbilical” com o primeiro círculo de aprendizagem (adoro aspas e metáforas, pois o essencial não cabe nas palavras). Mas, até hoje, decorridos vinte anos, continuo a ajudar aqueles que, tendo chegado ali crianças, hoje são adultos, pais de outras crianças.

Ainda vivo naquela casinha, que, com esmero, o Senhor Aldenir teve a generosidade de construir. E, quando o vosso avô for conversar com o Darcy, quem não tenha um teto poderá ir para lá morar.

Lamento que, pelo caminho, tivessem ficado pessoas que poderiam ter um papel importante no projeto. Como diria o Guimarães:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais,
no meio da alegria, e ainda mais alegre ainda no meio da tristeza!
A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.

O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior: Viver é muito perigoso; e não é, não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”

Nessa caminhada, a sabedoria do Mestre Pedro sempre nos acompanhou. Esse extraordinário ser humano era incômodo para aqueles que contribuíam para manter o status quo. Não hesitava denunciar, alicerçando a crítica numa ciência prudente.

“Estudantes são “vítimas de aula”, no sentido explícito de serem coibidos a frequentar passivamente sessões torpes de repasse estúpido de conteúdo. 

O professor é movido pela compulsão de repassar o currículo previsto inteiro, completo, via aula sequencial, linear, positivista, confundindo este instrucionismo açambarcador com aprendizagem.

Uma escola onde quase ninguém aprende é uma fraude oficialmente cultivada, porque se ignoram as avaliações, e o sistema se reproduz, inclementemente.

Os recursos são jogados fora quase na íntegra, o tempo é malbaratado no professor e sobretudo no estudante. Este e suas famílias são ludibriados a sangue frio. 

Todos queremos 10% do PIB investido em educação, mas não na arapuca atual.”

O Mestre Pedro agitava uma pantanosa normose. Acreditai que havia quem comemorasse uma subida do IDEB de 4 para 5, ou quem se vangloriasse de ter atingido o IDEB 9, naturalizando a ignorância. Pouca vergonha havia!

Até ao fim do mês de fevereiro, completamos a primeira fase da criação de uma Escola Pública. Cumprimos as tarefas inerentes à instalação de um protótipo de comunidade de aprendizagem, exatamente como uma secretaria de educação nos pediu que fizéssemos. 

Ao GT das comunidades competia “a elaboração e ou adequação de normativa para a implantação e implementação de comunidades de aprendizagem”. Urgia modificar normativos, criar condições de autonomia, democraticidade, participação cívica. Urgia fazer ESCOLA PÚBLICA.

“Uma escola onde quase ninguém aprende é uma fraude oficialmente cultivada” – a voz denunciadora do Mestre Pedro era incômoda para criaturas autoritárias e corruptas, que diziam serem… educadores. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLIV)

Itapeba, 22 de fevereiro de 2043

A Quarta-feira de Cinzas marcava o início da Quaresma anunciadora da Páscoa. Mas, o Carnaval revelava que a única escola que pascalmente ressurgia, ressuscitava, aquela que realmente funcionava era… a escola de samba – uma manifestação de auto-organização, de cooperação, de trabalho de equipe. 

No fevereiro de vinte e três, uma escola prussiana disfarçada de “inovadora” era um contínuo Carnaval. Atenta ao disfarce, a Jane, “professora de Ensino Fundamental na falida e sofrida escola pública brasileira por pilhas de anos”, com pedido de perdão (de que não carecia), usava de uma “expressão meio violenta”: a escola mata alunos e mestres. Para não morrer dentro dela – dizia a Jane – só usando fantasia de carnaval o ano inteiro. 

“E daí o carnaval perde a graça e fica uma roupa batida, igual uniforme feio e triste que a mantenedora manda pra gurizada pobre. 

Enfim! A escola precisa sair dela, andar por aí, ver o mundo, deixar ser, deixar amar. Depois, deixar pensar, um pensar colorido com tudo o que cada um trouxer nos olhos, nas lembranças. 

Ela renascerá num parto humanizado, sem o fórceps diário da disciplina, da tarefa boba e desprovida de vida inteligente, que todo dia enche as pastas dos mestres e esvazia a alma dos que aprendem. 

E assim caminhamos, carregando o peso, um dia depois do outro, trocando farpas via conceito, via nota, via parecer descritivo, via boletim… Avaliamos a dor do fim, não o caminho bonito e florido que deveria ser o lugar que ensina, que produz boniteza que se aprende, que se ensina, que se troca, que dói, que sente e dá prazer e alegria. 

Credo! Deve ser a terça-feira gorda de carnaval baixando aqui no teclado. Desculpa o excesso. Abraços!”

Muitas foram as mensagens trocadas no Carnaval de há vinte anos. Como a da Walk: 

“Como psicopedagoga, atendo centenas de crianças adoecidas por esse sistema de encarceramento, de atenção aprisionada. Mas, o farol se mantém aceso. E segue iluminando nossos caminhos como educadores. Obrigada, por manter viva a chama da desobediência.” 

Efetivamente, para cuidar da infância, era necessário desobedecer. Para fazer ESCOLA PÚBLICA era preciso desobedecer. Para cumprir a lei, era preciso desobedecer. Para fazer prevalecer uma ciência prudente da educação, era preciso desobedecer.

Naquele tempo, o Mestre Pedro apontava a direção da Escola Pública e era quase uma excepção no domínio da teoria, pois escapava à sina do teoricismo reinante. Enquanto os seus pares teorizavam teorizações de teorias e se mantinham ancorados em práticas instrucionistas, o Mestre Pedro as questionava. 

“Fisicamente, aprendizagem é dinâmica mental que acontece no cérebro do aprendiz, sendo uma das propriedades mais marcantes da evolução biológica, denominada por alguns biólogos como “autopoiese”, para indicar seu movimento de dentro para fora, tipicamente autoral.

A trajetória de uma aprendizagem transformadora exige “ler a realidade”, conceito que virou ícone de pedagogias que apostam na autoria do estudante”.

O meu Mestre invocava Maturana. Eu já o havia estudado, bem como Varela e outros autores da América Latina. Mas, nada melhor do que o ler descrito por um autor, também, latino-americano. 

Para cumprir um compromisso assumido com uma secretaria de educação, criamos o primeiro de muitos círculos de aprendizagem. E, na Latina América de há vinte anos, fomos oferecer “aprendizagem transformadora” a uma escola, para que ela fosse, realmente, PÚBLICA. A matrícula de três crianças marcava o início de uma nova construção social de aprendizagem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLIII)

Rio Bonito, 21 de fevereiro de 2043

Neste ano da graça de dois mil e quarenta e três, celebra-se o vigésimo aniversário do fim do sistema de ensinagem, quando, definitivamente, a administração escolar abdicou de impor a razão da força, para fazer prevalecer a força da razão, quando educadores assumiram um compromisso ético com a educação. 

Nesses sombrios tempos, a voz do Mestre Pedro ressoava pelos corredores das escolas-casernas, desmontando uma farsa de séculos. 

“Os dados de “aprendizado adequado” disponíveis (Ideb) são kafkianos: em 2015, apenas 7.3% dos estudantes do ensino médio tiveram aprendizado adequado de matemática; a maior média ocorreu no DF, com 12.8% (foi de 31.5% em 1995!), e a menor no Maranhão, com 1.5%. 

Levando em conta que o Ideb não é um dado expressivo (acomoda-se em memorização de conteúdos, tendencialmente), a situação real é ainda pior. Citando o Enem de 2017, apenas 50 candidatos tiveram nota máxima em redação (dentre 5 milhões), sendo que 300 mil tiraram zero. 

É o resultado dos “Cursinhos”, que torturam milhões de estudantes para engolirem conteúdo que vão vomitar nos exames. 

Escola e universidade, são, essencialmente, isso. Nunca faltaram aula, prova e repasse. Ao contrário! 

Em 1997, logo após a LDB fixar 200 dias letivos, houve a maior queda pontual no Ideb. Em 2006, passamos o ensino fundamental de oito para nove anos, e o desempenho escolar nos anos finais só piorou, porque apenas aumentamos aula, sem tocar na aprendizagem. 

O INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) do Ibope constata que, há duas décadas, brasileiros adultos “proficientes” (que sabem pensar, digamos), são 8%! 

O PISA 2015 observou que 44% dos brasileiros de 15 anos de idade, que participaram, ficaram abaixo do último nível de matemática (Brasil no PISA 2015, 2016).”

O kafkiano cenário descrito pelo Mestre Pedro seria motivo para secretários de educação e ministros corarem de vergonha. E eis que alguns se mostraram sensíveis à mudança. E eis que encontrei educadores dispostos a mudar. Já septuagenário, reesperancei. Ajudei a criar círculos de aprendizagem e protótipos de comunidade.

Os círculos poderiam ter duas origens. 

Primeira hipótese: 

Se numa escola ainda houvesse um professor vivo, ali se concebia a chamada “turma-piloto”. No projeto a que dei o nome de “Praticar Darcy”, três escolas se mostraram disponíveis para instituir “círculos de aprendizagem de proximidade”. Ainda hoje, sinto profunda gratidão, relativamente a esses corajosos mestres de chão de escola. 

Segunda hipótese:

Se todos os professores de uma escola já tivessem “morrido”, famílias conscientes dos malefícios do instrucionismo dirigiam-se à escola mais próxima das suas residências, solicitavam o acesso ao projeto político-pedagógico, observavam a prática.

Se a prática fosse coerente com o teor do projeto, nela efetuavam a matrícula dos seus filhos. Acaso acontecesse o contrário, exigiriam que o projeto se cumprisse. Não permitiriam que fossem metidos em salas de aula. Recomendariam aos professores a leitura do PP-P da escola e que agissem em conformidade.

Por altura do Carnaval de vinte e três, o círculo de aprendizagem estava constituído. Só faltava publicar a criação da escola pública com a designação “Comunidade de Aprendizagem”. Enquanto se esperava, as crianças foram matriculadas na escola pública mais próxima. 

Infelizmente, em algumas situações de manifesto autoritarismo, foi necessário reagir com desobediência civil serena, ponderada, fundamentada na Lei de Bases e na voz luminar do Mestre Pedro.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLII)

Guapimirim, 20 de fevereiro de 2043

No fevereiro de 23, era tão intensa a folia carnavalesca como a azáfama no nosso círculo de aprendizagem. Tivemos que enfrentar múltiplos problemas, resultantes de uma cultura feita de individualismo. 

Em situações críticas, a tendência era para praticar o “salve-se quem puder”. E a solidariedade era enfeite de um projeto apenas escrito. Seria necessária muita paciência e compaixão.

Após a análise dos PP-P, da inventariação de valores e elaboração de carta de princípios, da equipe de projeto se passava à composição do protótipo de comunidade e à elaboração de roteiros de estudo. E a análise do regimento interno conduzia à revisão do modelo de gestão da escola e a práticas democráticas decorrentes da aplicação do termo de autonomia entregue à administração. 

Paralelamente, o Mestre Pedro prosseguia na senda de uma demolidora crítica da ensinagem em sala de aula:

“Os dados são, pois, cruéis com as aulas. Sendo aula o que mais existe e mesmo define a escola, e sendo os resultados um desastre avassalador, sua inutilidade é fragrante. 

Poucas coisas são mais inúteis do que aula: roubam o tempo do estudante, desmotivam-no ostensivamente, refletem autoritarismo grotesco, deturpam o sentido da aprendizagem e do conhecimento, e representam a vanglória mais tola do professor. 

Aula é o que mantém a escola presa ao passado fordista ou similar, como consta dos “Tempos Modernos” de Chaplin, repetitiva, monótona, linear, sequencial, insuportável, desumana. Não tem como objetivo cuidar da aprendizagem do estudante, mas de transmitir conteúdo que frequentemente o estudante sequer entende, como é o caso notório de matemática. É o signo também do professor ensimesmado, que mantém o sistema de ensino centrado em si mesmo, em torno de sua aula, prova e repasse, além de praticar um cognitivismo tosco, reducionista ao extremo.

Quem, porém, toma como compromisso fundamental da escola cuidar que o estudante aprenda, de maneira integral e comunitária, jamais coloca aula no centro. Também não precisa extinguir a aula, se mantida como aporte eventual e supletivo mediador. 

Aprendizagem implica, naturalmente, uma abordagem integral do estudante, muito além do cognitivo, um “processo formativo”, com qualidade formal e política, tipicamente emancipatório. O protagonismo do estudante é referência formativa substancial, girando o sistema totalmente em torno dele, assim como a família gira em torno dos filhos. 

A escola cuida, então, da autoria do estudante, e o avalia por sua autoria, jamais por prova. Cuida do individual e do coletivo, sendo que aprendizagem coletiva é, como regra, preferencial.”

Em outros artigos, o Mestre Pedro abordava a problemática da avaliação. Também nesse domínio, as escolas instrucionistas estavam fora da lei. 

A lei estabelecia que a avaliação fosse formativa, contínua e sistemática. Prova era um instrumento de avaliação falível e excludente. A prova não era contínua era de aplicação periódica. E não era sistemática, porque incidia numa área ou disciplina. Para além de quase nada avaliar, a não ser a capacidade de reter informação na memória de curto prazo, despejá-la num papel e… esquecê-la. 

Era tempo perdido na aplicação e enganadora origem de uma avaliação sumativa condição de uma classificação que engendrava um “índice de decoreba” (IDEB), tomado como “índice de desenvolvimento”. 

Nos círculos de aprendizagem dos protótipos de comunidade se cuidava de produzir “evidências de aprendizagem”, de praticar os ensinamentos do Mestre Pedro e de cumprir a lei. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLI)

Magé, 19 de fevereiro de 2043

Diz o Eclesiastes que há um tempo para cada coisa. E o Bob o citou, a par de outras canções do tempo em que eu partilhava o sonho do Make Love, Not War. 

No ano em que o Bob compôs “The Times They Are A-Changin”, decidi abandonar a profissão de montador eletricista, de me desviar de uma carreira de engenharia, para vir a ser professor. 

Processo lento e controverso, pois também se tratava de trocar um salário chorudo por um salário de miséria, de passar por dificuldades financeiras. Aliás, os maridos das professoras desse tempo diziam que as suas esposas eram professoras para “ganharem prós alfinetes”. Diziam que o salário do marido é que sustentava a casa. E, se a professoras se apaixonassem por um pé-rapado, o Salazar as proibia de casar-se com um pretendente que “não tinha onde cair”.

Os Bob anunciava que os tempos estavam mudando:

“Venham, escritores e críticos, que profetizam com suas canetas / E mantenham seus olhos abertos, a chance não virá novamente / Venham, senadores, deputados, por favor, escutem o apelo / Sua antiga tradição está rapidamente envelhecendo / Venham, mães e pais / E não critiquem o que vocês não conseguem entender.”

A minha geração foi uma geração perdida, dizimada nas guerras da Guiné e do Vietnam, assassinada pelo LSD, aburguesada, capitalizada. O suicídio da Janis e do Jim marcaram o fim de um tempo. Caí no mundo desamparado, enojado de um vil metal, que levou o meu pai (inocente) à prisão, nutrindo profundo asco pelo dinheiro que, escasseando, viria a matar a minha mãe de exaustão de mil noites de agulha e dedal. 

Como cantava o Bob, os tempos estavam mudando. A Ditadura caía de podre, a guerra na África era insustentável. A minha geração quis tomar o seu futuro em suas mãos. Me juntei à galera. 

Os tempos estavam mudando e, volvido meio século, aceitei participar da milésima tentativa de mudança. Uma secretaria de educação me propôs “Praticar Darcy”. Acreditei na intenção. E fui ajudar a fazer a primeira comunidade de educação.

Acreditava não ter de defrontar dificuldades, que já as tinha erradicado em anteriores projetos. Porém, “alguém” semeou equívocos. E tive de recorrer ao que restava da minha paciência, para contornar obstáculos.

Os tempos estavam mudando. Só a Escola não viu. E se mantinha cativa de velhos vícios.

Não por uma via reformadora de um sistema, mas apostando na sua gradual substituição, prosseguíamos na construção de um protótipo de comunidade. estávamos a um passo de, finalmente, fazer Escola Pública. Faltava o ato administrativo da publicação da criação da escola-comunidade.

No nosso círculo de aprendizagem, se produzia aprendizagem autoral, como recomendava Mestre Pedro:

“Aula não precisa sequer ser combatida, porque vai esvaindo-se por si, por pura inutilidade. Sai o auleiro distanciado, entra o mediador solícito. 

Todos na escola e no entorno da escola são concitados a cuidar da aprendizagem dos estudantes, o que redunda em outra ideia fundamental: comunidade de aprendizagem.” 

Na terceira semana do processo formativo de vinte e três, o círculo de aprendizagem procedeu a um primeiro levantamento de necessidades, desejos e problemas locais. Mapeou locais e pessoas com potencial educativo. Estabeleceu parcerias. Elaborou protocolos de cooperação. Preparou roteiros de estudo. 

O protótipo estava pronto para “ser mostrado”, para acolher professores, que vivenciariam uma prática efetivamente inovadora, no convívio com crianças e adultos envolvidos em projetos de vida.

Estávamos prontos para partilhar. Só faltava publicar um normativo.

 

Por: José Pacheco

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