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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCL)

Orla do Marine, 18 de fevereiro de 2043

“Quando nos foi pedido que organizássemos uma rede de comunidades, o primeiro passo foi o da criação de um círculo de aprendizagem. Isso fizemos. Adquirimos um espaço e para lá levamos as nossas crianças.” – Há vinte anos, a Bruna assim explicava a “primeira pedra” de um projeto que ficaria na história da educação.

No Brasil, tudo começava depois do Carnaval. Cumprindo a lei, as famílias tinham efetuado a matrícula dos seus filhos. E um sistema cego e obsoleto os atirou para escolas distantes do seu círculo de vizinhança. Conscientes dos malefícios da escola instrucionista, aqueles pais jamais permitiriam que os seus filhos fossem metidos numa sala de aula. 

A reação da escola foi a de dizer que não havia “vaga”, acompanhada de ameaça:

“Se for feita a matrícula, os alunos terão de cumprir “75% dos dias letivos”. Se não, “será marcada falta” e poderão “reprovar o ano”.

Se havia escolas perto da residência das crianças, por que razão seriam obrigadas a deslocar-se para longe do local onde viviam?

A pedido da comunidade, eu intervim. E perguntei:

“Por quê 75%? Por que não 76%, ou 74%?”

“O que significa “não ter vaga”? Teriam lido a Constituição? Ela nos diz que a Educação é um direito de todos e ninguém pode alegar o desconhecimento da lei.”

Teriam consciência de que ameaçar sem caução da lei e da ciência, essa atitude poderia tomar a forma de “assédio moral”

A título de comentário: 

Sendo muito baixo o seu IDEB, saberia a escola que, se não cumprisse o preceito constitucional, isso poderia significar prática de crime de “abandono intelectual”?

Solicitei a leitura do projeto da escola. Percebi que não sabiam do seu paradeiro. Quando consegui ter acesso ao documento e à observação da prática, verifiquei que o projeto não estava a ser cumprido. E, se a prática contrariava o teor do projeto escrito, isso poderia indiciar crime de falsidade ideológica. 

Continuei perguntando.

“Por que deveremos permitir que as crianças entrem num “serviço militar obrigatório aos seis anos” (esta expressão é da autoria do meu amigo Tião Rocha)?

“Por que existe sala de aula? Qual o seu fundamento científico?”

Era nenhum!

Poderia juntar mais um longo rol de perguntas, que nunca foram respondidas. Mas, se a estas respostas não foram dadas, quedei-me pela reivindicação do cumprimento da lei.

A lei nos protegia do autoritarismo. E o Mestre Pedro oferecia-nos o “quanto baste” de fundamentação científica. Lede o que ele escreveu:

“Escolhi algumas ideias que mais provocam atenção ou mesmo espanto em sua proposta, marcada ostensivamente para garantir a aprendizagem do estudante. Começo com a dispensa da aula. 

O sistema brasileiro de ensino é fundado em aula. Praticamente só! Ao professor não ocorre que a escola possa ser diferente de apenas oferecer aula, prova e repasse. Em parte, isto se deve à formação docente na faculdade, onde só teve aula e foi “deformado” para dar aula.

Adere ao “instrucionismo”, a prática escolar de reduzir aprendizagem à absorção passiva de conteúdo. Inclui ainda o professor como “causador” da aprendizagem do estudante, como se fosse capaz de, de fora, inculcar conteúdo diretamente na cachola de outrem.

Professor é “mediador”; não pode aprender pelo aluno, nem pensar por ele, nem substituir sua autoria. Pode colaborar incisivamente, sendo esta participação crucial para o bom êxito do aluno, voltada, porém, para sustentar a autonomia/autoria discente.”

Amanhã, continuarei a transcrição do texto do Mestre Pedro, que nos permitiu enfrentar a burocracia sempre com compaixão e gentileza.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLIX)

Porto Alegre, 17 de fevereiro de 2043

Na manhã do dia 18 de fevereiro (a de há vinte anos!) fui muito claro ao “passar trabalho para casa”. Aquilo que estava em causa não era remediar um sistema irremediável. Não seria juntar mais uns projetinhos paliativos do instrucionismo, nem medidas política educacional à moda de Sobral, em que colavam o rótulo “inovação”. 

Precisei de explicar a muitos inscritos no processo de formação que não se tratava de oferecer às escolas mais um projetinho de “sala maker”, de yoga, de horta e compostagem, ou outro qualquer adereço. Isso tínhamos feito, por mais de meio século. E, quando mudava a orientação política do município ou do país, tudo voltava ao princípio. 

Aquilo que, no ano vinte e três, fazíamos era mesmo inovação, o anúncio de uma nova construção social. Um ato de Amor a que juntávamos Coragem, tal como Freire havia definido o ato de educar.

A par com uma prática nova e refletida, demos início à desmontagem do velho sistema, ajudados pelo meu amigo Pedro, que me ofereceu um conjunto de textos, a propósito da criação de comunidades de aprendizagem. Amorosamente escrevia apoiado numa ciência prudente, criticando de modo pertinaz e fundamentado o velho modelo de escola instrucionista. 

Eu nutria profunda admiração por esse meu Mestre, que, num artigo datado de maio de 2018, esboçou um “retrato” do vosso avô. Entre nós, não havia conversa de “puxa-saco”. Ambos éramos septuagenários, que não careciam de elogio ou agradecimento. 

Hesitei em transcrever as suas amigáveis (e lisonjeiras) palavras, mas decidi fazê-lo, porque não é apenas o retrato aproximado do vosso avô, mas aquilo que qualquer educador deveria ser.

“Busco analisar algumas das ideias mais chamativas do Pacheco. Tenho tido a oportunidade de estar por perto em Brasília, onde ele mora agora e tenta montar um projeto muito abrangente de transformação escolar, em especial a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP). 

É marcante a determinação com que enfrenta os problemas, demonstrando formação primorosa pedagógica, uma experiência inigualável de inovação escolar e uma habilidade incrível de lidar com as pessoas, mesmo sendo incisivo e direto. 

Tem grande confiança das pessoas, porque é um dos educadores inovadores mais bem comprovados, reconhecido internacionalmente. Mostra, quase sempre, impaciência com a pachorra brasileira, em especial com as autoridades educacionais que facilmente atravancam as coisas, mesmo quando juram querer facilitar. Decepciona-o também que, mudando a gestão municipal ou estadual, facilmente tudo se desfaz. 

Mas isto, ao invés de o levar ao desânimo ou ao imobilismo, turbina tanto mais sua gana de montar um projeto onde já atingiu nível considerável de mobilização. Embora sua posição seja de inovação profunda, provocativa mesmo, ou chocante até, tem o charme da ponderação equilibrada, unindo bom conhecimento dos avanços científicos no campo da aprendizagem com práticas correspondentes. 

Não aprecia nem o teoricismo, nem o pragmatismo (prática no mau sentido). Considera todos os autores aproveitáveis na escola, sem fundamentalismos, também porque estão em questão, não este ou aquele autor, ou esta ou aquela teoria, mas o direito do estudante de aprender. 

Mostra extrema coerência, reforçada por uma prática exuberante e reconhecida, com o que define como aprendizagem: significativa, autoral, participativa, motivada de dentro e comunitária. Valoriza os professores sumamente, porque são referência fundamental da aprendizagem do estudante, na posição mediadora.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLVIII)

São Sebastião do Caí, 16 de fevereiro de 2043

Neste dia de há vinte anos, fui até ao interior gaúcho, na intenção de visitar o meu amigo Bruno e a sua Escola da Floresta. Não consegui. Naquele tempo, era grande a azáfama e longas as distâncias a percorrer. Apenas no sábado seguinte, quando voltei ao lugar virtual onde a inovação acontecia, com ele conversei.

No segundo encontro do projeto de formação em novas construções sociais de aprendizagem, esclareci que não se tratava de teorizar teorizações, mas de operar efetiva mudança. Para tal, eu constituíra um primeiro círculo de aprendizagem, “praticando Darcy”. Ele serviria de referência para outros círculos. 

Sempre tive por princípio não sugerir a outros que fizessem aquilo que eu não fazia… e voltava ao chão de escola. Nesse sábado, preparamos intervenções várias: a tutoria um-para-um, a criação de círculos de aprendizagem, a elaboração de roteiros de estudo, registos de avaliação… 

Por essa via, concretizávamos o que combináramos com uma secretaria de educação, a saber:

“Contribuir para erradicar o analfabetismo, superar as desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação, a melhoria da qualidade da educação, promover cidadania, com ênfase em valores, assegurar a gestão democrática da educação pública, a promoção humanística, científica, cultural e tecnológica, e o respeito dos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.”

No fevereiro de vinte e dois, eu testava teoria construída ao longo de mais de meio século. A formação experiencial acumulada me mostrava que estava cheio de ignorâncias. Que deveria partir de práticas “disruptivas”, como as da Ponte, do Âncora, ou da Escola Aberta, para as instalar, as analisar criticamente e, prudentemente, inovar.

E eis que surgem… “divergências”. 

“Tem de cumprir a lei da secretaria!”

Respondi:

“A lei que se tem de cumprir é a Constituição, a Lei de Bases, o ECA e outras formas de proteger a infância de uma escola que não ensina, nem educa, que condena milhões ao analfabetismo, à ignorância, à exclusão. 

Uma das competências do GT criado pela secretaria é “a adequação de normativa para a implantação e implementação de comunidades de aprendizagens”. Se pretendemos produzir inovação pedagógica, será necessário produzir inovação normativa.”

Os “divergentes” não desarmavam:

“Mas não se pode publicar a criação de uma escola, quando o ano letivo já começou!”

“Se ainda não foi publicada é porque o serviço público é lento. Em Brasília, uma escola-comunidade foi criada e publicada em poucos dias. E numa comunidade de aprendizagem não existe “ano letivo.”

“Dizer que não existe ano letivo é um disparate!”

“Disparate é fazer afirmações como essa e não as fundamentar.

Diga lá: por que tem de haver ano letivo?

Os “divergentes” nada responderam.

Por algum tempo, o projeto que batizei de “Praticar Darcy” andou, como diria o povo, “aos trancos e barrancos”, por obra e graça de porquenãos “divergentes” e atos de deslealdade. 

Muita paciência o vosso avô gastou! Ciclópicos obstáculos surgiam. Em equipe os defrontei. Ou não fosse o vosso avô um taurino genuíno – onde metesse os cornos…

A Lei de Bases brasileira pecava por não tornar explícito aquilo que a Lei de Bases portuguesa deixara claro:

“Artigo 48º – Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”  

Mas, se a LDBEN era omissa, nós não o éramos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLVII)

Tanguá, 15 de fevereiro de 2043

Netos queridos, dias atrás, atribuí a um projeto um nome fictício – “Praticar Darcy” – e pretendo mantê-lo. Mesmo decorridos vinte anos, importa manter alguma confidencialidade, dado nele terem participado pessoas que (felizmente!) ainda estão vivas. 

Na minha vida de trabalhador da educação, convivi com a solidariedade de gente nobre e suportei a malignidade de canalhas. Nesse projeto, com ambos aprendi. Nobres educadores ajudaram a concebê-lo e a preservá-lo das investidas da maledicência e da intriga. E ele se converteu em referência dos milhares de projetos que, entretanto (e cada qual a seu modo), empreenderam caminhos de mudança.

Procurei saber o que motivava aqueles nobres educadores. Numa das escolas onde reaprendi a arte do companheirismo, isto escutei:

“Os meus filhos foram excluídos. Diziam que eles “não acompanhavam a aula”. Eles sofriam muito. Troquei-os de escola. mas eles continuavam sem saber ler. Durante as férias ensinei-os. No google, fiz com eles um “livrão” de salvar animais.” 

“Tive um filho que reprovou três vezes. Ele era muito curioso, mas os professores acostumaram-se a dar respostas sem ouvir perguntas. Um dia, perguntei o que ele queria ser e ele me disse “eu quero ser astrónomo”. Passou a aprender e com ele aprendi a pesquisar.”

“Eu odiava estar na escola, nunca me adaptei. Uma amiga me disse que havia vaga numa escola montessoriana. Me salvei. Voltar para o tradicional nunca mais!” 

“Amo alfabetizar sobretudo alunos com problemas, porque me sentia indignada. Eles estavam abandonados. Estive “readaptada”, mas decidi voltar, porque este projeto é mesmo de inovação. Quando fizemos combinados com os alunos, não dividimos as turmas e um aluno disse “Graças a Deus! Estamos praticando respeito.” 

“Num ônibus, escutei: “O meu filho é como eu. Não serve para a escola. A escola também não era para mim”. Mas eu sei que a escola que produz fracasso também pode produzir potência.”

“Nunca me encaixei. O poder público propõe pedagogia diferenciada, mas continua a fazer o antigo. Transgredimos. Não voltaremos para a sala de aula.” 

“Funcionários perguntavam: “Estas crianças não vão estudar? Quando vão ter lição?” não compreendiam que aprendemos em comunidade.”

Eu saía das escolas emocionado, feliz, disposto a ultrapassar armadilhas montadas pelos “porquenãos”. Deles vos falei nas cartas para a Alice. Mas, era uma praga atrás da outra… 

Piaget dizia que a educação era a única área das ciências humanas em que todo o mundo se considerava especialista e dava opinião. E Darcy diria que a educação não era para amadores. Mas, os destinos da educação estavam nas mãos de amadores (não no sentido de amar, mas de ignorar) e o autoritarismo juntava-se ao diletantismo, para complicar o desenvolvimento dos projetos.

O amigo Zé Morgado assim caracterizou os “tudólogos”:

“Os tudólogos pensam que sabem tudo de tudo. É vê-los a emitir os seus achismos por todo o lado onde apareça um microfone, ou uma página de jornal ou revista. Eles “acham”, sobre não importa o quê. Por vezes, aparecem acompanhados por pessoas conhecedoras das áreas em discussão, de quem, arrogantemente, exigem a caução da sua óbvia ignorância mascarada de “opinião esclarecida”.

Uma comunicação social mal preparada deleitando-se com a exibição despudorada de um umbigo tão grande quanto a ignorância, subscreve e amplia as maiores banalidades ou disparates que, diletantemente, os tudólogos emitem.” 

Encontrei tudólogos que alegavam “divergências”, para complicar processos. Deles vos falarei, amanhã.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLVI)

Itaipuaçu, 14 de fevereiro de 2043

O mês de fevereiro de dois mil e vinte e três foi aquilo que, hoje, se poderá chamar de “separador de águas”, porque se começou a dissipar a “cortina de fumaça”, que encobria uma política educacional perversa. 

Acadêmicos ociosos velavam o cadáver adiado instrucionista, enquanto três insignes mestres o denunciavam. O maior desses mestres se chamava Pedro. Homem sábio, autor de farta e excelente produção científica. Afirmava que aprendizagem quase não existia, que da escola não levávamos quase nada para a vida. 

A série histórica do Ideb escancarava, desde 1995, “um sistema inepto, para não dizer inútil, sem perspectiva de mudança”. E, à distância de vinte anos, a análise do amigo Pedro permanece atual, constitui-se em referência para quem ainda não se tenha emancipado do ranço da velha escola. 

O instrucionismo era “a postura padrão globalizada, acolhida oficialmente no PISA: um sistema tipicamente de “ensino”, instrução, baseada na aula copiada para ser copiada, conteudista”. Estou a citar o Mestre Pedro. Espero que ele me perdoe a ousadia, pois teve a generosidade de me enviar alguns textos solidários:

“Tendo escutado você mais de perto, nesses dias, também suas angústias, ocorreu-me fazer alguns textos. Tentam entender algumas ideias que mais chamam a atenção, mesmo assustam, mas são cruciais para a “comunidade de aprendizagem”. Admiro, entre outras coisas, sua coerência. E espero que os textos sejam úteis.”

Esses textos foram muito úteis, não só pelo que de heurístico possuíam, mas sobretudo pela coragem intelectual que traduziam. Falavam de Escola Pública. Não aquela que usurpava esse nome, mas aquela que, a partir das contribuições essenciais de três mestres e da dedicação de dezenas de professores, despontou na terceira década deste século. 

“É lamentável que não se perceba que a escola pública dos pobres, aquela que atende a 99% dos alunos públicos, se encontre em situação de tendencial inutilidade para a grande maioria dos estudantes. 

Para alguns, o fato de ser “pública” é um amuleto suficiente (…) emancipatório, ainda mais constando no PPP como a última maravilha dos tempos, sem qualquer base avaliativa científica, acrescendo-se a esta hipocrisia a insinuação de que não se pode questionar, para não desconfortar. 

Embora seja o caso defender a escola pública como patrimônio democrático e republicano, uma coisa é defender escondendo a cara na areia, outra é defender com devida postura crítica autocrítica.” 

Poderia evitar a referência que o meu Mestre fez à “coerência” do vosso avô. Se o não fiz foi porque a coerência era um dos valores que nos unia. E porque Freire havia dito que:

As qualidades ou virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Este esforço, o de diminuir a distância entre o discurso e a prática, é já uma dessas virtudes indispensáveis – a da coerência. 

Como posso continuar falando em meu respeito ao educando, se o testemunho que a ele dou é o da irresponsabilidade, o de quem não cumpre o seu dever, o de quem não se prepara ou se organiza para a sua prática, o de quem não luta por seus direitos e não protesta contra as injustiças? 

A prática especificamente humana é profundamente formadora – por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou anjos, pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão.”

Nas próximas cartinhas, continuarei a “parasitar” os artigos que o Mestre Pedro me doou. E a dar-vos notícia dos primeiros tempos de mudança e de inovação.

Até amanhã!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLV)

São Cristóvão, 13 de fevereiro de 2043

Vamos dar um nome (por agora, fictício) a um projeto, que foi verdadeiramente inovador e que acompanhei de perto: “Praticar Darcy”.

Esse projeto passou pela tradicional via-sacra dos processos de inovação educacional. Ainda “a procissão ia no adro” e já os “porquenãos” de serviço tentavam sabotar porfiados esforços de mudança. 

Recordo-me de um deles, quando, no decurso de uma reunião informal, insinuou ameaças e proibições. Era uma funcionária de alta patente, autoritária, habituada a fazer-se obedecer. Não me contive. E ela ouviu o que não estava habituada a ouvir. (Junto a esta cartinha um textinho a propósito, escrito em francês. Não o encontrei em português)

Em meados de fevereiro de há vinte anos, ainda não estava cumprida a primeira semana da formação em novas construções sociais e já chegavam notícias de reações em outros lugares. Um “superior hierárquico” lançava provocações:

“Não pode fazer isso! Tem de cumprir a lei da secretaria”

A funcionária confundia a Lei com a regulamentação instrucionista da secretaria. E insistia:

“Mais um projetinho? É isso? 

A resposta certeira foi dada:

“É o projeto da escola.”

“Mas esse nós já temos!”

“Temos, mas não o cumprimos”

“Como não cumprimos?”

Azar da funcionária! As professoras interpeladas tinham feito a “tarefa de casa”.

“Analisamos o projeto, fizemos um levantamento de valores, elaboramos uma carta de princípios. E verificamos que nenhum dos valores escritos está presente na prática de sala de aula. 

A nossa prática é contraditória. Por exemplo: está escrito que iremos fazer dos nossos alunos cidadãos autônomos. Em sala de aula, não se produz autonomia. O que se produz é heteronímia. Exatamente, o contrário!”

“Pois! É tudo muito bonito” – retorquiu a “superiora hierárquica” – “Mas os nossos alunos não sabem ser autônomos. Eles não se interessam por aprender, estão desmotivados.” 

Paradoxalmente, quando ele queixava de os alunos não saberem ser autônomos, mantinha-os em sala de aula, proibindo-os de serem autônomos. 

Como explicar a impunidade da manutenção de práticas que configuravam, a meu ver, falsidade ideológica? Talvez porque, no contexto de um modelo educacional hierárquico e autoritário, o exemplo “viesse de cima”. 

Nesse tempo, apesar de se dizer que vivíamos em democracia, o sistema de ensino estava organizado em “castas”. E, assim como havia “superior” hierárquico, também havia um ensino “superior”.  

Nunca entendi por que assim lhe chamavam, nem por que razão os ditos “superiores” auferiam salários muito “superiores” aos dos “inferiores”. Certo é que o ensino “superior” já tinha perdido o monopólio do saber e apenas mantinha o monopólio da diplomação. 

No campo das ciências da educação, a sofisticação do discurso contrastava com a miséria das práticas e, para desgraça nossa, essas práticas continuavam sendo matrizes impostas às escolas. 

Num livro publicado na segunda década deste século, li depoimentos de ilustres professores universitários. Pelo respeito que me merecem, não referirei os seus nomes, apenas os citarei para reiterar um velho preceito: a aprendizagem resulta do exemplo. Escutemo-los.

“Eu me esforço para dar uma aula e me irrito com o comportamento dispersivo dos alunos.”

“Não sei o que faria, hoje, se tivesse que voltar a dar aula na universidade!”

Consciente do drama por eles vivido, propus-me ajudá-los, partilhar com eles práticas coerentes com o discurso. Arrogantes, os “superiores” rejeitaram a ajuda. 

Apenas três manifestaram humildade, uma virtude que é apanágio dos sábios.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLIV)

Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 2043

Disseste que, na cartinha de ontem, eu parecia estar eufórico. Pudera! Eu invocava o dia em que começava a contagem decrescente para a erradicação de um modelo educacional perverso. Por duzentos anos reproduzido, na Família, na Sociedade e na Escola, devastara a Terra e desumanizara os terráqueos. 

Podereis pensar que eu esteja a caluniar esse modelo, ou a exagerar na crítica que dele faço. Mas é a mais pura verdade, embora houvesse quem não se desse conta da tragédia. Aconteceu há vinte anos, mas sinto-o como se agora ocorresse. E considero que tal fato ainda merece ser celebrado. 

No fevereiro de há vinte anos, despedi-me da Fernanda com a certeza de que voltaria para acompanhar de perto o nascimento das primeiras comunidades de aprendizagem baianas. Combinei com a Dilza voltar em julho. E preparamos com esmero mais um regresso a lugares onde se humanizava a educação.

Atravessamos o rio na companhia de um jovem aluno de “ensino médio”. Todos os dias, ele atravessava o rio, para se juntar à sua “turma”, entrar numa sala de aula e ouvir a lição do dia transmitida pela televisão. Depois, voltava para casa, na outra margem do rio.

“E se ficasses com dúvidas, ou não tivesses compreendido a lição, havia alguém na sala de aula que pudesse esclarecer, ensinar-te?”

“Havia uma pessoa na sala de aula, mas ela só vai lá para ligar e desligar o aparelho de televisão. E para manter a disciplina. Essa pessoa não sabe ensinar.” 

Mal sabia aquele jovem que, naquele tempo, havia quem acreditasse que, dentro de uma sala de aula do “ensino médio” se aprendia. Nos gabinetes dos ministérios e das universidades, ainda havia quem debatesse o “novo ensino médio”, tão velho e obsoleto como aquele que o jovem da travessia do rio sofria.

Quando, na qualidade de professor, adentrei lugares onde, supostamente, se fazia formação de profissionais do desenvolvimento humano, levei um susto. Deparei com salas de aula, “cargas horárias”, “grades curriculares” ao estilo prussiano. 

A Escola da Ponte já era objeto cultuado. E eu satisfazia a curiosidade de alguns professores, que buscavam explicação para a “crise”. Os restantes (a maioria) nem queria ouvir falar da Ponte. A minha escolinha era para eles um incômodo.

Na semana que se seguiu ao encontro com o jovem da travessia do rio, os núcleos de projeto se consolidaram, a leitura atenta dos projetos das escolas permitiu encontrar discrepâncias entre teoria e prática, tudo ficou pronto para a elaboração dos primeiros roteiros de estudo. 

Essa azáfama contrastava com a normose patente nas mensagens trocadas por acadêmicos em redes sociais em que o vosso avô participava. Os seus depoimentos eram exercícios de uma escrita sensível, reflexos de uma tomada de consciência do destino da escola e da necessidade de a humanizar. Falavam do ofício de professor universitário e das marcas que esse exercício imprimira nas suas vidas e nas dos seus alunos. 

Mesmo exercendo o seu múnus profissional num tempo em que não tiveram que competir com máquinas inteligentes, não ficaram imunes à crise da obsolescência de valores e à necessidade de transformação da educação. Observava a sua decepção com a falta de interesse dos alunos, que assinalava o agravamento de uma crise de relações humanas e anunciava a falência de um determinado modelo de sociedade e de escola. Porém, quando tentavam melhorar o “ensino médio”, contribuíam para a manutenção desse modelo.

Dirigimos-lhes um fraterno convite, para que participassem da criação de uma nova construção social. 

Vos direi qual foi a sua reação. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLIII)

Caraíva, 11 de fevereiro de 2043

Queridos netos, recordais-vos, certamente, de vos falado das crises profissionais por que o vosso avô passou. Pois bem! Delas saí renovado. Depois de resolver a crise moral da década de setenta, adentrei uma crise ética que só admitia duas saídas: ou aprendia a ensinar de modo que todos aprendessem, ou iria embora da profissão.

Nos idos de vinte e dois, quando já levava mais de meio século de desgaste e de assistir à destruição de projetos e de educadores idealistas, uma secretária de educação consciente dos malefícios do velho “sistema de ensinagem” pediu-me que criasse uma rede de comunidades de aprendizagem. 

Reunimos crianças e adultos num protótipo de comunidade e aprendemos a viver numa casa comum. Usando de compaixão, de perdão e gentileza, conseguimos sobreviver. E, no dezembro de dois mil e vinte e dois, foi instituído o Grupo de Trabalho (GT) “Educação Integral em Comunidades de Aprendizagens”. 

Uma secretária havia tomado uma decisão ética. Uma secretaria inaugurava um longo processo de humanização. 

Esse GT tinha por finalidade “elaborar propostas de diretrizes de política pública para implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagens na Rede Pública Municipal”.

Competia ao GT (transcrevo excertos desse documento): 

Desenvolver análise técnica para viabilizar a implantação e implementação de comunidades de aprendizagem;

Realizar estudos de experiências e fundamentos científicos, para subsidiar a implantação e implementação de comunidades de aprendizagem; 

Contribuir para a reconfiguração da prática educativa; 

Desenvolver a elaboração e ou adequação de normativas;

Elaborar indicadores de transformação e de melhoria da qualidade da educação;

Acompanhar e avaliar resultados da implantação e implementação de comunidades de aprendizagem; 

Avaliar e viabilizar a sustentabilidade da proposta de implantação de comunidades de aprendizagem; 

Propor diretrizes de políticas públicas; 

Propor e elaborar programas, projetos, normativas, diretrizes específicas e orientações; 

Propor parâmetros de arquitetura e mobiliários adequados à implantação e implementação de comunidades de aprendizagem; 

Promover articulação, junto aos demais setores da SE e outras instâncias para efetivação de políticas públicas, programas, projetos; 

Propor ações e estratégias orçamentárias e financeiras; 

Propor e articular estratégias educacionais voltadas ao desenvolvimento de pesquisas, estudos e experiências, que possam subsidiar o trabalho nas unidades escolares que desenvolvem programas e / ou projetos relacionados a educação integral em CA; 

Desenvolver outras atividades, que lhe forem atribuídas em sua área de atuação.” 

Tudo isso em estreita colaboração com a Secretaria de Educação. algo inédito e, por isso, inovador.

No período experimental de 2023, começaríamos a formação dos professores de “turmas-pilotos”. 

Como formando, formador inicial e continuada, como consultor e avaliador de ações de formação, como diretor de centro de formação e de aperfeiçoamento de práticas, em congressos, seminários, e até no quadro de uma pesquisa de mestrado, já participara em centenas de ações de formação. 

Possuía algum conhecimento de causa, o que me permitiu conceber um protótipo de uma nova construção social de aprendizagem – uma escola-comunidade – que seria referência de reelaboração da cultura pessoal e profissional dos professores. 

Estavam criadas as condições mínimas para, dialeticamente, partir do FAZER, para refletir e refazer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLII)

Barra de Caraíva, 10 de fevereiro de 2043

Queridíssimos netos, dissestes terdes ficado impressionados com a descrição que fiz das atrocidades perpetradas sobre os povos que habitavam o sul da América e a destruição sistemática de culturas pré-colombianas. Não era por acaso ou fatalidade histórica que tal acontecia. Desde os primórdios da colonização, se instalaram em Pindorama – em guarani-tupi, a “terra livre dos males” – o autoritarismo, a rapina de recursos e múltiplas violências.

Quando o “Bolívar Libertador” encomendou ao Lancaster o ensinar a ler, que permitisse que um povo analfabeto pudesse ler a Constituição, novas colonizações foram impostas. Durante um século, as igrejas de Nova Granada, onde o povo aprendia as “primeiras letras”, foram dando lugar à implantação da Escola dos colonizadores. 

No final do século XIX, o currículo positivista de Benjamim Constant prenunciava a reprodução do modelo instrucionista lancasteriano que, até aos idos de vinte do nosso século, semeou ignorância e exclusão. 

Por essa altura, um palestrante chamado Karnal levava-nos a refletir sobre mudanças sociais, sobre novos tipos de relação humana, sublinhando que a tecnologia contribuíra para a demanda de novas formas de vida e a satisfação de novas necessidades. Dizia que que o ser humano se transformava, constantemente e que, em contrapartida, ainda tínhamos escolas que pouco ou mesmo nada haviam mudado, ao longo de duzentos anos.

As escolas eram o equipamento social mais abundante e a “escola pública” concebida para garantir equidade, era uma das maiores conquistas da humanidade. Porém, a “escola pública” instrucionista nunca chegou a ser pública, não cumpriu o desiderato para que fora criada: a equidade. 

Na década de vinte, atentos à necessidade de operar mudanças, diretores de agrupamentos de escolas portuguesas e secretários de educação brasileiros pediram que os ajudássemos a fazer “escola pública”. Montemor-o-Novo, Leiria, Tavira, Quarteira, Caldas da Rainha e outros municípios portugueses, o Distrito Federal, Maricá, Mogi das Cruzes, Porto Seguro, Mendes, Caçapava do Sul e outros municípios brasileiros foram precursores de um movimento de regeneração, que se prolongou até meados da década de trinta.  

O modelo escolar instrucionista não era o único modelo de educação e ela deveria ser pensada a partir de redes de comunidades, de modo que os processos de aprendizagem tivessem um papel transformador nas sociedades. Para tal, as escolas não disporiam apenas de interfaces sociais, mas de espaços onde ocorreriam atos contributivos do desfazer do abismo entre a escola, as famílias e a sociedade. 

As escolas poderiam constituir-se em espaços de cultura, lugares onde os saberes eruditos se casavam com os saberes populares, onde a transformação acontecia na partilha do conhecimento produzido.

De modo irreversível, no 11 de fevereiro de vinte e três, começava a ser desmontado um pérfido “sistema”. Chegava o tempo de interpelar interditos, de erradicar tabus e de devolver à Escola Pública a dignidade que perdera, por via da predominância de uma hierarquia autoritária e da corrupção moral e intelectual em que a tinham atolado.

Eram criados dispositivos legais, o primeiro dos quais sob a forma de um Grupo de Trabalho (GT) de criação de comunidades de aprendizagem. Recuperávamos a esperança perdida e apenas pedíamos que as secretarias e os agrupamentos de escolas fossem leais aos valores enunciados nos seus planos, e que as escolas desenvolvessem práticas coerentes com o teor dos seus projetos.

Só isso!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXLI)

Bosque de Itapeba, 9 de fevereiro de 2043

Muitas foram as vezes em que, nas reuniões de fim de tarde, companheiras de projeto chegavam chorando copiosamente. Perguntava-lhes o motivo do pranto. Era sempre o mesmo, a maldade caindo sobre a nossa escola. 

Chorando, a Maria desabafou:

“Zé, hoje, a mãe da Antónia veio perguntar-me se tu eras pedófilo. É o que andam para aí a dizer. E até já apareceram panfletos na rua dizendo isso. É insuportável. Eu já não me sinto com forças para continuar. É melhor ficarmos por aqui. Os professores das outras escolas – sabemos que são eles os autores dos boatos – não nos vão deixar em paz. Eu desisto.”

“Então, amanhã, terei de procurar alguém para ocupar o teu lugar na equipe?”

“Zé, tu és teimoso. Para com isso! Vais continuar assim, neste desgaste contínuo? O meu marido até já disse que assim não dá. Tu vais mesmo continuar?”

“Vou.”

Entre a escola e a casa, eu chorava por dentro. Quando chegava a casa, fechava-me no escritório, colocava o vinil a tocar o segundo andamento da Sétima de Beethoven. Depois, mudava de roupa, que aquela que vestia estava encharcada de lágrimas. No dia seguinte, tudo recomeçava. A minha resiliência se juntava à resiliência da equipe, e recomeçávamos mais fortes do que antes. 

Por via de um boato, eu quase fui assassinado. Escapei por “milagre”, mas aquilo que mais abalou o projeto não foram os ataques sofridos vindos do exterior. O projeto “tremeu” quando a maldade provinha de dentro. Ao longo de três décadas, a Ponte resistiu às investidas de “invasores”. 

Houve quem “invadisse” a Ponte com propósitos mesquinhos. E, quando os invasores primavam pela inteligência, discretamente, conseguiam degradar um delicado sistema de relações. Ao longo de mais de cinquenta anos, sofremos pequenas e grandes traições de desafetos e a deslealdade provinda de dentro.

Os professores – como todos os seres humanos – são uma mistura de belo e de horrível. Um dos invasores manipulava a realidade do modo que lhe convinha. Apenas sensível aos seus argumentos, explorava a fragilidade dos professores mais novos, tentando destruir a minha reputação e o projeto.

Ninguém é insubstituível, mas eu era o alvo. Os detratores sabiam que se eliminassem a coordenação, provavelmente, o projeto sucumbiria. E, entre terrorismo verbal e tentativas de assassinato de caráter, a maldade desabou sobre o frágil ser humano que eu sou. Mas, sobrevivi. Meio século de dolorosa aprendizagem me permitiu encontrar antídoto para as investidas dos invasores. 

Queridos netos, quando visitou a escola, o professor Lemos Pires disse-me que a Ponte só acabaria, se os seus professores acabassem com ela, por dentro. Os “invasores” causaram danos irreversíveis. Porque é fácil começar projetos. Difícil é mantê-los, sem que se degradem. Um projeto humano é um ato coletivo, feito de pessoas em contínua aprendizagem. E da humana natureza complicar o que é simples. Subitamente, sem explicação, os “invasores” ligavam os seus “complicadores” e tudo se complicava. 

No fevereiro de 23, consciente dos riscos que o primeiro projeto de comunidades de aprendizagem corria, ao primeiro sinal de “invasão”, achei por bem “avisar” que não suportaria deslealdade. Fui mal interpretado, mas suportei o mal-entendido. 

Precisei de curar feridas e ajudar a reconstruir projetos, porque deveremos ser compassivos, cuidar do que se trabalha e trabalhar o que se cuida. O cuidar dos outros, ajudando-os a refazer-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária e um dom que os invasores não possuíam – a palavra ética na boca dos invasores era blasfêmia. 

 

Por: José Pacheco

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