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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXL)

Praia dos Coqueiros, 8 de fevereiro de 2043

Nos idos de vinte, era proverbial a brasileira síndrome do vira-lata. A baixa estima dos professores dava azo a que ministérios e empresas importassem “estrangeiras” (falsas) comunidades de aprendizagem e que se ignorasse aquelas que, no Brasil, foram esboçadas e destruídas.

A Escola Libertária Germinal, que Alessandro fundou, em 1902, na cidade de São Paulo, pouco tempo durou. À semelhança daquela que Tolstói criou e que o czar da Rússia mandou fechar, o sonho de “uma escola elementar racionalista, para ambos os sexos” foi encerrada, em 1904.

Apesar de malogrado o seu intento, Alessandro foi o precursor dos precursores da Escola Nova, mas, apenas emprestava o seu nome a uma rua de São Paulo, cujos moradores nem sequer sabiam de quem se tratava, ou o que fizera.

Curioso que eu era (e ainda sou), deambulei por essa rua e, após um breve inquérito, apenas um transeunte ensaiou uma resposta: 

“Alessandro? Isso é nome de jogador de futebol, não é?”.

Na Germinal de 1902, os pais não apenas participavam com uma pequena mensalidade como intervinham na arrecadação de fundos e, de algum modo, na gestão do projeto. Decorrido mais de um século, os teóricos continuam a produzir teses sobre a relação escola-família, mas as famílias continuam marginais à vida nas escolas e são frágeis as estruturas de participação.

Em novembro de 1904, Alessandro lançava um derradeiro apelo nas páginas do jornal O Amigo do Povo:

“Pensai no futuro de vossos filhos!” 

E reafirmava as virtudes dos métodos aplicados na sua escola. Porém, ao que parece, a população do Bom Retiro de início de século não se preocupava com a educação dos seus filhos. Nem parecia que se importasse, quando, no século XXI, os submetia à nefasta influência de práticas sociais denunciadas ao longo de um século pródigo em práticas alternativas.

No tempo do Alessandro, um português de nome Almada afirmava que todos os tratados que visavam salvar a educação, todas as teorias já estavam escritas. Todas as experimentações, reformas e modas já tinham sido ensaiadas. Lamentavelmente, nos idos de vinte, a salvação da educação tardava em chegar.

Importava renovar a denúncia da guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem participativa e transformadora. Nunca seria demasiado afirmar a possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, em que cada qual fosse designer de si próprio, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”

O que se aprendia dentro de um edifício escolar, que não pudesse ser aprendido fora dos seus muros? O espaço de aprender era todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, era a vizinhança fraterna… o círculo de aprendizagem. 

As comunidades de aprendizagem não dependiam da existência de um prédio escolar e sim da utilização de espaços da comunidade, nos quais os estudantes pudessem aprender, exercer cidadania, desfrutar de direitos e realizar deveres, para o bem de todos. 

Em meados da década de vinte, por todo o Brasil, surgiam o que já se poderia chamar de protótipos de comunidades de aprendizagem, a partir da escola, ou da iniciativa de famílias e do poder público. Já eram práticas de eco sustentabilidade, de estímulo ao espírito inventivo e de criação de soluções novas, baseadas no princípio ético que nos dizia que tudo o que fosse inovado deveria ser para benefício de um coletivo.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXIX)

Trancoso, 7 de fevereiro de 2043 

Na década de sessenta, pela primeira vez na história da educação, se assevera que “a expressão escola de comunidade procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional”. A Escola, no futuro, passaria a ser um nodo comunitário. E a escola não se reduziria a um lugar fixo murado. 

Quem assim a definia era o Mestre Lauro. Antes dele, apenas dispúnhamos de definições “híbridas”, pois tratavam de “levar a escola para a comunidade”, ou “a comunidade para a escola”, mantendo intacta a estrutura instrucionista.

Lauro parte de Piaget, para a crítica da “pedagogia predial”, reafirmando que a escola não era um prédio, sugerindo que as escolas seriam pessoas… em comunidade. 

Embora a expressão comunidade de aprendizagem não surgisse explícita na obra de Lauro, já se manifestara no Brasil, desde o final do século XIX e início do vigésimo século, num pout pourri de tendências e práticas. Os ideais de Zola, Louise Michel e os princípios de Francisco Ferrer se manifestavam, a humanização da escola acontecia da colônia que Pedro II ofertara ao libertário Rossi a Alessandro Cerchai e a sua Escola Libertária Germinal, do colégio de Eurípedes à comunidade terapêutica da Nise, da Itatiaia de Agostinho, aos vocacionais de Nilde. 

Um pacto de silêncio se formou em torno de iniciativas como a Universidade Popular de Ensino Livre, do Rio de Janeiro e as Escolas Modernas de São Paulo e de Bauru, da primeira década do século XX. Quem ouviu falar da Escola Germinal, do Ceará, da Escola Social, de Campinas, da Escola Operária, de Vila Isabel, e da Escola Moderna, de Petrópolis? Os professores de Porto Alegre saberão que, em 1906, havia por lá uma escola com o nome de Elisée Reclus?

A minha amiga Amélia, da Casa Redonda de Carapicuíba, presenteou-me com um esboço elaborado por Lauro de Oliveira Lima, no início da década de sessenta. A visão percussora do Mestre Lauro impressiona. Embora marcado pela época, o esboço antecipou em trinta anos os primeiros estudos conhecidos sobre comunidades de aprendizagem de origem anglo-saxônica e catalã. 

O meu espanto foi maior, quando li a produção científica brasileira disponível sobre comunidade de aprendizagem, nos idos de vinte. As referências bibliográficas e as práticas estudadas eram quase todas importadas. Mais ainda: apercebi-me de um absoluto desconhecimento da produção teórica do Lauro e de outros brasileiros por parte dos autores dos estudos – a tradicional síndrome do vira-lata na comunidade científica brasileira?

Por que razão tomei a iniciativa de escrever um livro com o título “Aprender em Comunidade”? Para suscitar o interesse pelo conhecimento da biografia e da obra de educadores brasileiros ignorados pelos educadores brasileiros. Para procurar entender por que falharam as nobres tentativas de mudança tentadas por Freire, Florestan e tantos outros grandes mestres. 

Na preparação desse livro, deparei com a existência de um denominador comum nas obras desses mestres: cada qual a seu modo, referindo, ou não, a palavra comunidade, apontaram para a necessidade de aprender em… comunidade de aprendizagem.

O dia 11 de fevereiro viria a marcar o início da concretização de uma utopia. Recriando vínculos, reelaborando práticas, se alcançava a consumação de mais um freiriano “inédito viável”. Uma nova educação emergia do sonho de todos nós, o de formar o cidadão democrático e participativo, sensível e solidário, fraterno e amoroso, o ser humano dotado de educação integral, liberto da escola-caserna, no contexto de uma comunidade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXVIII)

Arraial d’Ajuda, 6 de fevereiro de 2043

No fevereiro de há vinte anos, rumei à Bahia, ao encontro de amigos, que viriam a criar uma das primeiras comunidades de aprendizagem, que a história da educação refere. Aproximava-se o “Dia D”. O dia do início da “descolonização”, do “decrescimento”, do “desclausuramento”, da “desburocratização” de um obsoleto e nefasto sistema de ensinagem. Começava a contagem decrescente, que conduziria – na teoria, na lei e na prática – à fundação da Escola Pública”, desde há muito tempo, prometida e falsamente anunciada.

Nesta cartinha, suspenderei as considerações que venho fazendo sobre o conceito e a prática de inovação, pois pretendo, nas próximas, falar-vos de comunidade.

Como escrevi num livrinho publicado no início do século, inovação no campo educacional seria algo inédito, útil, sustentável e de provável replicação instituinte. Seria processo transformador, promotor de ruptura paradigmática, mesmo que parcial, com impacto positivo na qualidade das aprendizagens e no desenvolvimento harmónico do ser humano. 

Inovar consistiria em superar aquilo que se manifestava inadequado, obsoleto, descartável. Significava trazer à realidade educativa algo efetivamente novo, modificar o essencial. E isso pressupunha, não a mera adoção de novidades, inclusive as tecnológicas, mas mudança na forma de entender a produção de conhecimento. mas, aquilo que acontecia, nos idos de vinte era bem o contrário. E mais uma vez fundo ao fundo do baú das velharias desencantar papeis com notícias dos embustes.

Nos Estados Unidos, uma escola criava uma “sala calmante”, para aliviar tensões. A ridícula “inovação” fora financiada por uma empresa parceira, que participara da elaboração do conceito da “sala calmante” com a ajuda de psicólogos, médicos especializados e dos próprios alunos e professores, porque também ali se poderiam refugiar, de vez em quando…

Era doloroso saber que educadores formados em ciências da educação legitimavam, por colaboracionismo ou omissão, nesses disparates. 

O que vigorava nas escolas era a prática generalizada do modelo instrucionista misturada com resquícios de práticas do paradigma da aprendizagem, circunscritas a escolas particulares e raramente em escolas de redes públicas de ensino. Ou seja, a origem daquilo que vinha sendo considerado inovador no sistema educativo remontava a modelos criados há mais de cem anos.

A inovação organizacional era considerada quase sinônimo de adaptação, pois tudo que fora inventado passava por um processo de recriação do já existente, transformando-o em novas formas e qualidades. Rareava a inovação, abundava a obsolescência. 

Em cada ser humano existe um potencial inovador. Para que o seja, bastará que encontre ambiente propício. Tal como muitos outros inovadores, Einstein foi criativo, apesar da escola. Edison foi expulso da escola, para poder ser criativo. Picasso deixou e escola, precocemente, para que a escola não lhe cerceasse o espírito criativo. 

Há cerca de um século, o Vygotsky nos dizia que a aprendizagem é resultante de um processo interativo. E considerava a existência de uma Zona de Desenvolvimento Proximal, que representa a diferença entre o que o aprendiz pode fazer individualmente e aquilo que é capaz de atingir em colaboração com outros aprendizes. 

Também sabemos que, há cerca de sessenta anos, o trabalho de pares era prática comum no quotidiano de uma escolinha de Portugal. O que explicaria que, nos idos de vinte, o ministério e suas adjacências proibissem mudança e rejeitassem inovação?   

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXVII)

Capim Santo, 5 de fevereiro de 2043

Pelos idos de vinte, a educação sobrevivia imersa numa crise centenária estatisticamente demonstrada, traduzida no pessimismo e no conformismo manifestados pela maioria dos professores. 

A comunicação social estava enxameada de referências a “práticas inovadoras”. Eis senão quando, me convidam para um evento anunciado como “revolucionário”. Nele seriam apresentados projetos de novo tipo, fundados nos paradigmas da aprendizagem e da comunicação. Era isso, exatamente, o que constava do cardápio das palestras.

Da curiosidade passei a uma prudente expectativa. Iria participar numa jornada histórica, ou assistir às costumeiras palrações apoiadas em power point?

A expetativa foi traída. Se desfez no final da manhã do primeiro dia do congresso. O palestrante de serviço se dignou dar a palavra à plateia. E o meu mau feitio me fez erguer o braço. Com um sorriso afável no rosto, o palestrante me convidou a usar o microfone. E eu usei:

“Caro senhor, durante esta manhã, tive o cuidado de anotar quantas vezes a palavra “inovação” foi citada – Exatamente, setenta e quatro vezes! – Porém, muito muitas mais vezes, ouvi falar de “sala de aula” e me inquietei. Também escutei da boca da maioria dos ilustres palestrantes a expressão “escolas inovadoras”. Exatamente, dezoito vezes. E me aquietei. 

Sempre que ouço falar de novas práticas, vou procurá-las. Peço-lhe que me indique o endereço de, pelo menos, uma das “escolas inovadoras”, a que se referiu na sua palestra, para que eu possa visitá-la.

Seguiu-se uma breve e intensa discussão, durante a qual, o palestrante “meteu os pés pelas mãos” e não conseguiu dar-me a informação solicitada.

Perante o inesperado pedido de endereço de uma “escola inovadora”, o palestrante invocou absurdos como a “aula invertida”. O seu semblante se alterou e do sorriso inicial passou para um esgar de sofrimento, quando insisti na pergunta:

“Onde estão as tais “escolas inovadoras”?

A breve altercação foi interrompida pelo corte do som do meu microfone.

Apesar de indignado, nutri compaixão por aquele ser humano e convidei-o para almoçar. Conversamos, ficamos amigos e as nossas conversas presenciais e virtuais me ajudaram a ir mais fundo na compreensão do drama daquele “doutor em educação”. 

Vivíamos num tempo em que “doutores” e “especialistas” exibiam teoria balofa nos palcos dos congressos e vendiam paliativos instrucionistas publicitados por abútricas empresas. Falava-se de algo inexistente. Dissertava-se sobre um objeto de estudo que só existia nas cabecinhas dos teoricistas

Quando se falava de inovação educacional, do que estaríamos a falar?

Inovação era uma palavra banalizada, um conceito maltratado, como pude comprovar no decurso de uma visita a uma “escola inovadora”.

Era uma escola “recomendada” por uma organização que lhe tinha conferido visibilidade social. Nada vi de extraordinário por lá. Muito menos vi algo que se assemelhasse a uma inovação. 

À saída, observei o mau estado em que se encontrava aquilo que teria sido uma das “inovações” divulgadas por aquela escola, no ano anterior: uma horta.

O que restava de plantio estava seco, mirrado, coberto de poeira. Pensei que fosse efeito da inclemência de um tempo de seca, ou resultado de uma praga, mas a senhora diretora esclareceu:

“Nós tínhamos o projeto da horta como o principal projeto, no ano passado. A televisão até veio aqui filmar.”

“Que aconteceu” – quis saber.

“Aconteceu que, neste ano letivo, o professor, que trouxe esse projeto para cá, foi para outra escola. E levou o projeto com ele.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXVI)

Porto Seguro, 4 de fevereiro de 2043

No fundo do baú das velharias repousava um caderno onde anotava o teor de “conversas vadias” (à semelhança das conversas do Mestre Agostinho). É de 2018 este excerto:

“Do muito que já li sobre a Ponte nunca li que pudessem ser eles a fazer o próprio recrutamento de professores. Recorriam ao que muitas escolas recorreram até 2005. Uma simples turma de currículo alternativo na altura, permitia a um conselho de turma inteiro ficar na escola enquanto o projeto durasse. Agora nada disso é possível… as escolas até tentam, por vezes, mas nunca é aprovado”.

Talvez não por acaso, encontrei esse pedaço de conversa, quando, no fevereiro de há vinte anos, fui até um dos primeiros povoados onde aportaram os portugueses de quinhentos. “Povoados” porque já por lá havia gente e nome de lugar, embora os intrépidos viajantes dessem nova designação ao arraial – Trancoso – denominação idêntica à de uma vila do interior do Portugal, terra de onde haviam partido. A Caina e outros educadores da região não abdicavam de fazer dos sonhos realidade. A iniciativa da Zilda me fizera ali chegar. A generosidade da Morena me dera guarida e alimento. 

Conversei com o Julian, expliquei-lhe o projeto e refletimos sobre a sua autonomia e sustentabilidade financeira. Até então, muitas “alternativas” tinham sido concebidas. Porém, essas alternativas tinham assumido a forma de cooperativas, associações e outros frágeis arcaboiços de escola. Por escassez de recursos, assisti ao fim de belos projetos e à acomodação de outros aos ditames de uma administração educacional autoritária. Vi os mais nobres educadores que conheci acabarem no divã do psiquiatra. E centenas de projetos sumirem sem deixar rasto.

Havia quem sonhasse com a humanização da escola e fosse impedido de transformar o sonho em realidade. 

Produzir mudança e inovação equivalia a empreender um caminho semeado de burocráticas ciladas e de outros obstáculos difíceis de transpor. Tudo porque o primeiro requisito de sustentabilidade de um projeto seria a assunção de autonomia. 

A Ponte fora pioneira nesse campo. Ao cabo de quase trinta anos de porfiados esforços, logrou firmar com o estado português um contrato de autonomia. para ser autônoma, a escola extinguiu a função de diretor – que padecia do dever de obediência hierárquica – e entregou a direção do projeto à comunidade. 

Quatro anos decorridos sobre a assinatura do contrato, o Decreto-Lei 75/2008 abriu novo ciclo na gestão das escolas portuguesas. O gestor do “agrupamento de escolas” (absurda criação normativa) passou a ser, novamente, um diretor. O novo velho modelo amplificou a distância entre professores e gestores, e fomentou a funcionarização dos docentes. 

No texto do contrato de 2004 estava inscrito o direito à seleção de professores. Contudo, o decreto de 2008 produziu “retroatividade”. E a estabilidade da equipe se perdeu por via da chegada de professores colocados em concurso geral, que reintroduziram no projeto práticas instrucionistas.  

De nada valeu o comentário do Afonso: 

“A formatação excessiva da gestão das escolas, expressa na regulamentação e na prática da burocracia da administração educacional, têm constituído um fator poderoso de ineficácia, de ineficiência, e de inibição da emergência de lideranças escolares de elevado potencial de inovação.”

No 11 de fevereiro de há vinte anos, educadores conscientes dos riscos a enfrentar na profunda transformação institucional que se propunham realizar entregaram à administração educacional uma minuta de Termo de Autonomia.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXV)

Alto Alegre, 3 de fevereiro de 2043

Na cartinha de ontem, falei-vos de “cidades educadoras” e “territórios educativos”. Nos idos de vinte, eram expressões em voga nos círculos de debate de acadêmicos ociosos. Na prática, essas cidades e territórios apenas existiam no texto de documentos de política pública – como a “Carta de Barcelona” – e nas cabeças de teoricistas.

Nessa altura, uma das expressões muito na moda propiciava elevados lucros a empresas organizadoras de congressos e ações de formação, e era objeto de milhares de teses e palestras. Refiro-me à expressão “escolas inovadoras”.

Todavia, sempre que o vosso avô escutava um palestrante falar de “escolas inovadoras”, e lhe pedia-lhe que indicasse o paradeiro de uma dessas escolas (para que eu pudesse visitá-las, conhecê-las), ninguém sabia indicar o seu paradeiro. Era mais um objeto de estudo inexistente.

Como seria possível uma “escola inovadora” sobreviver no contexto da reprodução de um obsoleto modelo escolar e social? Achamos uma reposta, partindo de perguntas como estas: 

Como pensar uma cidade sustentável, sem uma educação sustentável? Como pensar uma gestão pública compatível com os desafios de uma nova forma de relação do cidadão com o seu habitat? Como compatibilizar a necessidade de mudança com o aprender a ser e fazer diferente? 

A resposta poderia ser: uma nova educação para uma nova cidade. Pensar educação de boa qualidade, efetivamente inovadora, pressupunha integrar múltiplas dimensões da atividade humana e rever o modo como o subsistema de educação propiciava protagonismo na vida social. 

Espaços de intensa densidade antropológica poderiam funcionar como verdadeiros laboratórios de laços sociais onde a vinculação ética ao outro tivesse a marca do respeito mútuo. A integração de atores estratégicos, direta ou indiretamente, participantes do projeto, viabilizaria o esforço dos educadores na co-criação de uma rede de suporte de mudança das práticas educacionais.

Direis serem utópicas estas considerações. Bem pelo contrário! 

Já que falastes de “utopia”, vos direi que, enquanto para alguns utopia era um ideal inatingível; para outros tratava-se de uma meta a ser concretizada, de um sonho perfeitamente realizável. Havia quem idealizasse o real e realizasse o ideal, na superação do paradigma instrucionista. 

No fevereiro de há vinte anos, a convite do vosso avô, utópicos e sonhadores se juntaram a uma extraordinária equipe coordenadora de um projeto de formação, que efetuou profundas alterações nas escolas e em múltiplos espaços sociais, políticos e culturais. E as escolas puderam (enfim!) agir como espaços públicos, nodos de redes comunitárias. 

Não se tratava de instalar a atividade escolar em outros espaços, escolarizando ainda mais a família e a sociedade, mas de desenvolver a percepção dos territórios como elementos educadores, por meio dos quais se aprendia, participando de transformações pessoais e sociais.

A escola e a cidade poderiam constituir-se em espaços educadores, que possibilitassem o encontro dos sujeitos históricos cocriadores de novas oportunidades educacionais integradas na vida comunitária. Pois já Anísio tinha dito ser necessário erigir prédios de escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem de andar muito para alcançá-los.

Enquanto uma insana administração educacional desperdiçava fortunas em transporte escolar e na edificação de “elefantes brancos”, discretamente, algo inédito, sustentável, útil e inspiradoramente replicável surgia. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXIV)

Iracema, 2 de fevereiro de 2043

Que me perdoeis o vício, mas cá vai mais uma cartinha, que podereis considerar maçadora. Evito usar jargão “científico”, porque, frequentemente, ainda serve para disfarçar a ignorância. Porém, tentando usar de uma “linguagem de gente”, na intenção de que todo mundo entenda, posso simplificar demasiado e cair em simplismos. Em suma: tereis de me aturar neste exercício de “fundamentação”. 

No fevereiro de há vinte anos, partíamos para aquele que foi o último dos processos formativos em que me arroguei formador. Partimos da definição de valores e princípios. E do princípio básico que nos dizia ser garantia de perenidade dos projetos a sua fundamentação legal e científica.

Quando retomamos o processo formativo e o contato com os núcleos de projeto, a primeira medida que tomamos foi a entrega à administração educacional de minutas de “termos de autonomia” (contratos de autonomia, em Portugal). Isso mesmo: a autonomia seria condição sine qua non de continuidade dos projetos. 

Se o “sistema” impunha regras do jogo viciadas, reinventámos as regras, em coerência com a lei e com os dados de uma ciência prudente. Em 2043, também me preocupo com o refazer da memória de êxitos e perdas. Por isso, vos contarei algumas estórias deixadas por contar.

Decorria o ano de 2019, quando as conclusões de um relatório de um GT ministerial apontou a existência de 178 projetos potencialmente inovadores. Em 2017, a Secretaria de Educação do Distrito Federal. já havia inovado, criando a “Comunidade de Aprendizagem do Paranoá”. Porém, os tempos sombrios, que se lhe seguiram, deitaram por terra aspirações de mudança. 

Do fundo do baú das velharias retirei um documento desse tempo, contendo as intenções do projeto: a melhoria da qualidade da educação, a erradicação do analfabetismo, a sustentabilidade socioambiental, a promoção da gestão democrática e da cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamentava a sociedade.

A intenção maior era a de desenvolver um projeto de criação de uma rede de núcleos de projeto de comunidade de aprendizagem, que promovesse uma boa qualidade da educação, com potencial de difusão em rede. Até à demissão do secretário, lançamos as bases de novas construções sociais de aprendizagem. Depois, gentinha de baixa estatura moral e ética (não poderemos chamar-lhes professores) servindo obscuros interesses, prestaram-se a fazer serviços sujos. Disso vos hei-de falar.

Nesse tempo, apresentou-se como necessário fundamentar o processo de identificação de potenciais inovações, porque organizações mistificadoras faziam da inovação um saco sem fundo. Propusemos diálogo, o debate sobre critérios identificadores de inovação. Recomendamos alguns: o ineditismo, a utilidade, a sustentabilidade e uma replicabilidade instituinte. 

Repensamos as comunidades como locus de educação integral, e lhes juntamos referências de planejamento de cidades. A possibilidade de organizá-las do ponto de vista da educação era preconizado na carta de princípios das Cidades Educadoras. E os muros que cercavam as escolas não eram apenas barreiras físicas. Por via de um modelo educacional hegemônico, eram a expressão de incapacidade de criar integração territorial. 

Nos “territórios educativos”, não havia o “dentro e o fora”, nem o preceito comeniano de “levar a escola para debaixo da árvore”. Nem seria aconselhável “levar a escola para a comunidade”, ou “levar a comunidade para a escola”. A partir da criação dos círculos de aprendizagem, a escola passava a ser um nodo de uma rede.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXXIII)

Caracaraí, 1 de fevereiro de 2043

Dar-vos-ei a ler alguns excertos de um email recebido da Laiana.

“Desejo que esteja muito bem, como dizem, firme e forte na luta! Venho tentando vivenciar ideais e construir utopias nessa nossa educação, sabendo que não encontrei o caminho certo ainda, mas sem saber por qual trilha seguir, todas me parecem uma corrida de obstáculos, às vezes intransponíveis, às vezes dolorosos, às vezes obscuros e não tem sido fácil essa caminhada.

Sempre acreditei no meu dever ético como educadora, sempre acreditei na dignidade das crianças que por mim passaram e sempre lutei por seus direitos.” 

Lutar pelos direitos das crianças… O senso de comportamento ético da Laiana contrastava com a incapacidade de alguns seres humanos de agir em função de valores como a justiça e a igualdade.

Na Internet, especialistas discorriam sobre o sofrimento dos yanomami. E uma especialista em direito dizia haver elementos da conduta violenta com efeito de destruição de uma população, criticando o “negacionismo”. Com a minha mania de perguntar, logo questionei:

Quem educou os bonsais humanos que perpetraram o genocídio?

Qual a nossa parte de responsabilidade?

Quem pratica um modelo educacional “negacionista”, que provoca abandono intelectual, não estará a fomentar um genocídio educacional?

Se a praga do negacionismo pedagógico contribuía para manter práticas instrucionistas responsáveis pela hecatombe escolar, seria exagero estabelecer um paralelo entre a prática política e a prática educacional?

Era evidente que no modelo educacional imposto às escolas dos idos de vinte era causa de ignorâncias várias. Mas, vejamos o que diziam os especialistas:

“A avaliação científica dos dados em educação exige que posições contraditórias sejam observadas e não descartadas, a priori. Longe de julgar como negativos ou positivos, devemos relativizar os resultados, compreendendo a educação como fenômeno multideterminado, contextualizando, percebendo os avanços e recuos, pois haver um modelo em educação me parece um contrassenso.”

Compreendestes? Nem eu! 

Instalados numa cómoda pseudoneutralidade, os especialistas no blá blá blá teoricista prestavam um péssimo serviço à educação. E, quase sempre, se aliavam àqueles que, no ministério, disfarçavam os nefastos efeitos do instrucionismo contrapondo-lhe propostas meritocráticas. 

A meritocracia era um câncer educacional. Direta ou indiretamente, era causa de desigualdade social e econômica, e de exclusão e caos educacional. Das práticas instrucionistas estava ausente o conceito de bem comum. E a antiética competitividade negativa era apenas a “ponta do iceberg”.

A pretexto do “esforço pessoal”, da “busca de excelência” e da miragem da “ascensão social”, as paredes das escolas exibiam execráveis quadros de excelência e até havia um ridículo concurso do “professor nota 10”.

A reprodução de um modelo escolar e social meritocrático engendrava uma espécie de aristocracia hereditária. Aqueles que beneficiavam de mais fácil acesso à educação obtinham os melhores empregos, e, usufruindo de melhor educação, os seus filhos aspiravam a idênticos privilégios.

Sandel, um dos mais proeminentes filósofos do início do século, denunciava esse determinismo. Estatísticas nos mostravam que dois terços dos alunos de Harvard e Stanford eram provenientes do quintil superior da sociedade, medido pela renda, ao passo que apenas 4% dos estudantes das melhores universidades dos Estados Unidos tinham origem no degrau mais baixo. 

Seria uma questão de mérito? 

Por: José Pacheco

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