Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXXXVI)

Atibaia, 27 de março de 2043

Netos queridos, o meu amigo Tuck merece ser lembrado, embora esta cartinha peque por tardia. Há muito tempo deveria trazê-lo para o nosso convívio epistolar. Para me redimir, o recordarei, quando ele ainda se encontrava no início de um projeto de vida profissional, elaborando o seu “currículo da subjetividade”, como ele chamava à sua obra ímpar, extraordinária.

Comecemos com a celebração do encontro que as redes sociais, nesse tempo, consentiam. A humildade do meu amigo – como é bom chamar-lhe amigo, volvidos mais de vinte anos – o obrigava a começar por dizer “obrigado”: 

“Obrigado Zé! A cada semana, vou presenteá-lo com um novo amigo que voa livre por aqui. 

 Tuiuiú não veio a toa hoje. Para quem está chegando agora e não faz a mínima ideia do por que estou postando foto de um pássaro seguido de um número, é isso mesmo, desde a quarentena tenho iniciado um currículo subjetivo próprio sobre as aves que por aqui passam perto de casa e arredores. 

Essa é a 53ª (de 90), mas porque não esperei ter um registro em foto como o das outras espécies todas que fotografei? 

Primeiro porque acho que não terei tão breve, segundo porque ela traz um recado urgente que não pode esperar. 

Tuiuiú veio voando e chorando nos avisar: 

“Precisamos de ajuda! O que estamos vendo é a pior coisa que já vimos. Vimos muita morte e nada nos diz que não iremos morrer também. Nos ajudem, por favor!” 

Pois é amigos, sei que os compromissos com os jogos de futebol, telenovelas, stories do Instagram, vídeos de reptilianos, canais bolsonaristas e séries da Netflix são importantes. Mesmo que eles nem mencionem o que está ocorrendo no Pantanal, bioma cujo pássaro símbolo é este que vos visita hoje. 

O Brasil está em chamas, e por aqui o que ecoa na TV é a comoção com os incêndios na Califórnia (um deles, gigantesco, originado porque algum cretino soltou fogos para anunciar o sexo do bebê no meio de uma floresta seca). Mas por aqui, a empatia se foi. Quem tem ligado para pássaro? 

Enquanto a gente continuar achando que a Amazônia é assunto para quem está lá e que o Pantanal é assunto de quem lá está, e que a Mata Atlântica e o Cerrado são assuntos para quem está aqui, vamos continuar acelerando o fim do mundo para os Tuiuiús, Jacarés, Onças, Tatus… 

O Tuiuiú, ave de pescoço longo, papo vermelho e que voa como uma cegonha, não trouxe seu filhote pendurado no bico. Trouxe uma notícia de que provavelmente não tenhamos duzentos anos pela frente, nenhuma previsão matemática aponta para um cenário harmonioso quanto a isso, muito pelo contrário, será fogo e ranger de dentes. 

Mas não se irritem, Tuiuiú traz uma mensagem, também, a de que o bolsonarismo é uma ideia descartável e vil, mas de que os bolsonaristas, não. São pessoas e sem eles não tem salvação para ninguém. Para o bem ou para mal, isso se chama interdependência e é por não nos vermos nela, que tudo está queimando.” 

Era bem caraterístico do meu amigo Tuck esse seu chamado ao exercício de uma incondicional compaixão, de ir muito além de perdoar, de uma prática educacional humanizadora, integradora, transcendente, ao alcance de qualquer um, desde que qualquer um se compreendesse, se perdoasse de erros e omissões, e se transcendesse. 

Netos queridos, as mensagens do amigo Tuck transportavam-me ao tempo do vosso nascimento, quando partia de personificações, para falar de pássaros e comentar a vida dos seres humanos:

Estávamos num tempo de há muito tempo, num tempo em que as aves falavam à semelhança dos humanos seres, sem saber se as pontes de entendimento iriam do mundo dos pássaros para o dos homens, se deste para o dos pássaros. 

 

Por: José Pacheco

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