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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCV)

Morada das Águias, 5 de abril de 2043

Nada acontecia por acaso, somente por sincronicidade. Aquela era a Morada da Águias, o lugar de “voar mais alto”. E me dispus a recorrer a personificações, tal como no livro que escrevi para ti, Alice. No “Para Alice, com Amor”, me refugiei em metáforas, para não enlouquecer. Nesse livrinho, te descrevi a gaivota, o “Pássaro Encantado”, o pelicano, o sabiá…

A Escola deixara de fazer sentido e eu me perguntava se faria sentido ficar parado, a ver passar tempos de mudança. Assim como um senhor chamado Vieira (de que vos falei, ontem) pregava aos peixes, por serem os humanos incapazes de ouvir, nesse tempo, o teu avô enviava recados às aves, porque muitos professores já não sabiam escutar. 

Foi na Escola Ataliba que conheci a Comunidade de Aprendizagem da Morada das Águias. A diretora Mariângela dispunha de uma bela equipe. A excelentes educadoras como a Janaína, a Hélke, a Karoline e a Isabel, se juntaram a Josilene e a Christiane, no início daquilo que viria a ser o primeiro protótipo de comunidade de Itaipuaçu. 

Importa recordar fatos e protagonistas de inovações de há vinte anos, para que a memória de tempos difíceis não se apague. E, porque sempre que educadores éticos se disponibilizavam para empreender caminhos de mudança, logo surgiam obstáculos por muitos julgados intransponíveis. 

O primeiro dos obstáculos era eu, era cada um de nós. Acompanhando o processo de desconstrução e reconstrução cultural das educadoras, precisei de me desconstruir e pôr à prova tudo aquilo que tinha sido a minha formação experiencial. Precisei de criar distância física, tirando partido da Internet, para não cair na tentação de influenciar e até mesmo, involuntariamente, impor práticas que eu considerava “eficientes e eficazes”.

O segundo obstáculo era algo amargo. Se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo do professor que ousava mudar era outro professor, o da sala do lado. Foram muitas as pequenas e grandes traições, as deslealdades sofridas. Mas, tudo a equipe da Mariângela suportou e ultrapassou. 

As estórias, que vos contei, há mais de quarenta anos, começavam deste modo:

“Era uma vez, um reino encantado, junto ao mar. Encantado, porque uma fada má transformara todos os seus habitantes em pássaros. Junto ao mar, porque convém ao enredo da história”. 

Dessa vez, a estória também começava junto ao mar de Maricá e no sopé de uma montanha de Itaipuaçu, onde a águia morava. 

A águia é considerada a rainha dos céus. Muito mais do que um ser humano dito “normal”, ou do que o vosso estrábico avô, a águia tem uma visão de 340°, uma visão HD. Além de enxergar em distâncias, que a visão de um ser humano jamais conseguiria alcançar, a águia distingue cores que nós não conseguimos ver. E, também, possui uma audição incrível. 

Apesar de ser considerada ser irracional, possui belos traços de comportamento. A águia não sente medo. Vive em topos de montanhas, voa em grandes altitudes. E durante uma tempestade, não para, usa o vento forte para alcançar mais altitude.

Não come carne morta. E, apesar de ser tida como impiedosa, quando se trata de seus filhotes, a águia é muito cuidadosa e protetora. Em condições extremas, como o frio e muita chuva, nunca abandona o ninho. O águia macho cuida dos filhotes e permanece ao lado deles o tempo todo, mesmo nas primeiras tentativas de voo da sua prole. Até os filhotes começarem a se virar sozinhos, “dividem” as tarefas. 

Quando a sua vida está perto do fim, isola-se em montanhas altas e espera os seus últimos momentos.

Netos queridos, eu sei que entendestes a mensagem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCIV)

Itajubá, 4 de abril de 2043

Voltei ao sótão da casa velha, para jogar fora o baú das velharias, vazio, enferrujado. Atrás do pesado baú, encontrei um embrulho. Retiradas as teias de aranha, sacudido o pó, ali estava um molhinho de cartas enviadas a entes falecidos. 

Todas elas têm data de há trinta anos e nos falam de comunidade. Se a humidade as não danificou, vo-las darei a ler. A primeira das cartas é dirigida ao Padre Vieira e aborda um fenômeno desse tempo, felizmente já erradicado: a corrupção. 

“Qual a causa da corrupção de uma terra? Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem do que fazer o que dizem. O que se há de fazer ao sal que não salga e à terra que não se deixa salgar?”.

Deixarei para outra cartinha a reflexão do Vieira sobre a praga “corrupção” e selecionarei um pedaço de prosa, em que o jesuíta nos fala da crise de “escuta” setecentista e do tempo em que escrevi as cartas achadas no sótão.

Prezado Antônio, em São Luís do Maranhão, longe da Lisboa onde Santo António havia nascido, quiseste lembrar o “santo casamenteiro”, atribuindo ao sermão proferido nessa data a designação de “Sermão de Santo António aos Peixes”. 

Estávamos em 13 de junho de 1654. Três dias depois, embarcaste para Portugal, escondido no fundo de uma nau. Estava no auge a luta dos jesuítas contra a escravização dos índios e tu ias procurar apoio no outro lado do mar. 

Esse teu sermão é revelador da tua ironia e da capacidade de observação dos vícios dos colonizadores e dos esbirros da Inquisição, que lograste ludibriar recorrendo a alegorias. Jesuíta inteligente e moralista exímio, deitaste mão a metáforas memoráveis, que, se eram ajustadas à crítica dos costumes da sociedade do século XVII, continuam atuais – quiseste pregar aos peixes, enquanto os homens não te quisessem escutar. 

Permite, meu Vieira pregador, que transcreva um excerto do teu primeiro sermão: Pregava Santo António e, como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.

Esse trecho era tão eloquente, que qualquer peixe, por menos atento que fosse, lhe conferiria significado. Porém, a educação brasileira, que, em recuados tempos, sofrera os efeitos da Inquisição, continuava cativa de novas inquisições. Se não, repara!

Reconhecendo que os alunos da escola pública estavam “em desvantagem”, se instituiu bonificação de 20% sobre a nota do ENEM, para usufruto dos pobres coitados, que foram objeto de mau trato pedagógico. Debatia-se o ENEM e o Ensino Médio, enquanto professores eram assassinados por alunos e a desigualdade se perpetuava.

Acreditas, António, que até eram formados professores “especializados em bullying”? Mas, fica sabendo que o sonho não esmorecia. Nos idos de vinte, aconteciam encontros de educadores, que dialogavam, refletiam, interpelavam o status quo. Educadores que partiam da escuta, para repensar a educação necessária. E agir!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCIII)

Congonhas, 3 de abril de 2043

Netos queridos, envio-vos uma foto do tempo em que ainda havia sala de aula. Ela acompanhava uma notícia de jornal, que achei no baú das velharias. A notícia era referente a uma vaga de violência, que ceifou as vidas de professores e alunos.

Foi há vinte anos. Jornalistas e “especialistas” comentavam os atos de violência, cada qual a seu modo. Ambos contornando uma das origens das tragédias. Ambos naturalizando os fatos. Ambos cativos de uma cultura feita de violência simbólica e de outros absurdos educacionais correntes em… sala de aula. 

Essa foto não fora publicada por acaso, mas por… distração. Era sinal seguro que que ambos – jornalistas e “especialistas” – permaneciam prisioneiros de caducos valores e velhas crenças. 

Vede o que diziam os jornalistas:

“Aluno cria perfil e ameaça fazer massacre em escola de Águas Claras. Unidade de ensino acionou o batalhão da Polícia Militar para realizar a segurança dos estudantes.”

Três professoras e um aluno foram esfaqueados dentro da escola. O agressor, um aluno do oitavo ano, foi contido pelos policiais.”

“Professora morre após ataque com faca em escola. A Polícia Militar foi acionada para prestar atendimento no local. A Polícia Civil está investigando os fatos

“Um professor foi assassinado numa escola de Minas Gerais.”

“Aluno matou a professora e se suicidou.”

“Professor atacado no interior da sala de aula e ferido gravemente deu o primeiro alerta para o que se estava a passar. Infelizmente este ataque provocou a morte a duas pessoas.”

“A atiradora, que matou três crianças e três adultos numa escola cristã particular era uma antiga aluna do estabelecimento e terá planeado o ataque, indicaram as autoridades policiais.”

A polícia alemã informou que oito pessoas morreram, incluindo o atirador, no ataque realizado contra uma igreja”

Um adolescente de 14 anos foi estuprado, torturado e queimado vivo dentro de uma igreja.

Um pastor foi assassinado dentro de igreja evangélica.”

As consequências da educação (familiar, social, escolar) que, nesse tempo, se fazia iam para além dos assassinatos em escolas e igrejas, os locais preferidos dos assassinos:

Por que seriam as escolas e as igrejas os alvos preferidos dos atiradores?

A violência ia para além de escolas e templos, projetava-se na Guerra da Ucrânia (lembrai-vos dessa barbárie, às portas de uma Europa dita civilizada?) e era notícia frequente na América dita das “oportunidades”:

“Oito corpos de migrantes são encontrados em fronteira do Canadá com os EUA

As autoridades informaram que as vítimas, entre elas duas crianças, foram descobertas perto de um barco virado.”

Lede comentários de “especialistas”:

“A saúde mental de todos os que estão no ambiente escolar, especialmente no pós-pandemia, é assunto urgente!

A cultura armamentista e do ódio estimulada pelo governo que se foi levou a uma exposição de casos nunca visto no Brasil.  Sempre houve violência na escola, mas não nesse nível. 

A Pandemia fortaleceu um clima já existente, mas não parece ser a causa.”

Eram muitas as “causas” e todas interligadas. E os escribas tão longe estavam da compreensão do fenômeno! A causa última passava ao largo da sua compreensão. Escassas vozes se acercavam da raíz do problema:

“Infelizmente, um imprevisto previsto. O trágico retrato de um sistema de educação arcaico e falido e de uma sociedade doente e ignorante.”

Certamente, não seriam jornalistas, nem “especialistas”. E, provavelmente, teriam lido Brecht:

“Dizem das águas de um rio que são violentas, mas nada se diz das margens que as comprimem.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCII)

São José dos Campos, 2 de março de 2043

Queridos netos, de vez em quando, preciso levar-vos notícias de tempos idos, para que não vos instaleis nas novas normose de 2043. A memória é esperta, vai apagando registos de ignomínia e corremos o risco de total esquecimento do que acontecia, vinte anos atrás.

“A diretora de uma escola da Flórida foi forçada a renunciar depois que um pai reclamou que alunos da sexta série foram expostos à “pornografia” durante uma aula sobre arte renascentista que incluía a escultura David, de Michelangelo.

A pobre diretora não resistiu à campanha de difamação e renunciou ao cargo após o ultimato do presidente do conselho escolar.

Um pai reclamou que o material era pornográfico e dois outros disseram que queriam ser notificados sobre o conteúdo das aulas, antes que elas fossem dadas a seus filhos.

Em entrevista ao site Slate, Barney Bishop, presidente do conselho pedagógico, disse que, no ano passado, a diretora enviou um comunicado aos pais avisando que os alunos iriam ver a imagem de David, mas o mesmo procedimento não foi feito este ano. Bishop chamou isso de “erro flagrante” e disse que “os pais têm o direito de saber sempre que seus filhos estão lidando com um tópico ou uma imagem controversa”.

Vivíamos temos sombrios, cativos de fundamentalismo, doentes de ignorância. 

A estátua retrata David com uma funda na mão, indo lutar contra Golias. Recordei-me de ter passado mais de uma hora numa fila à porta da Galleria dell’Accademia de Florença, para contemplar o David de Michelangelo. 

A polêmica deixou florentinos e especialistas em arte renascentista perplexos. A diretora da Galleria dell’Accademia disse estar “impressionada” com a situação e afirmou que pensar que a estátua de David é pornográfica revela não apenas uma má compreensão da Bíblia, mas da própria cultura ocidental.

“Não acredito que isso realmente aconteceu, no começo pensei que fosse uma notícia falsa, de tão improvável e absurdo que era”, disse a diretora do museu. “É preciso fazer uma distinção entre nudez e pornografia. Não há nada de pornográfico ou agressivo no Davi, ele é um jovem, um pastor, que mesmo segundo a Bíblia não usava roupas ostentosas, mas queria defender seu povo com o que ele tinha. Confundir arte com pornografia é simplesmente ridículo. Arte é civilização, e quem a ensina merece respeito.”

Quase contemporâneo de Michelangelo, apesar de considerar ser possível ensinar todos os alunos como se de um só se tratasse”, Comenius advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Porém, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em “estufas calafetadas”, alinhados em classes (pretensamente) homogéneas e tratados como se fossem um só. 

Havia escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sentia – eram as ditas “salas de aula normal”. Sempre que eu deparava com esse dístico afixado na porta das salas normais”, eu perguntava: 

“Cadê as salas anormais?”

Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David.

“Foi fácil” – respondeu o gênio de Florença – “Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, só foi preciso retirar tudo o que não era David”.

Era preciso “retirar do mármore aquilo que não era David”. Era preciso libertar a escola daquilo que não fazia sentido. 

Certo dia, cansado de lembrar aos educadores o que era o óbvio, fiz um livrinho a que dei o título de “Inovar é Assumir um Compromisso Ético com a Educação”. Esse seria o primeiro passo para libertar David do bloco de mármore em que estava encerrado – uma decisão ética, coragem e amorosidade em ato. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCI)

São Paulo, 1 de abril de 2043

O primeiro de abril de há vinte anos foi “dia de desenganos”. Muitos outros se lhe seguiram, feitos de desmonte de um velho e obsoleto sistema de ensinagem, a par de uma homeopática mudança e da criação de condições de inovação.

Passei a manhã desse sábado na companhia da Letícia, do Rodrigo, do António, da Adriana e de outros educadores de excelência, numa escola de São Paulo, onde nasceria um dos primeiros círculos de aprendizagem. Foi, também, aí que 

Os primeiros círculos de aprendizagem surgiram. E me vi na necessidade de partilhar um pouco de uma precária construção teórica carente de legitimação prática. Os educadores envolvidos no processo de mudança eram merecedores de algumas suliações guardadas num computador. 

Os tempos de pandemia tinham exigido que aprendêssemos a viver numa proximidade regulada e a pós-pandemia exigia a reinvenção do modo de aprender. A especulação teoricista dera origem a um conjunto de práticas, que da designação “comunidade de aprendizagem”, indevidamente, se reclamavam. 

A “comunidade de aprendizagem” aparentava ser um conceito de vasto espectro semântico. A título de exemplo, vos darei notícia de alguns significados a ele atribuídos, colhidos na Internet: 

“Comunidade de aprendizagem é um grupo que interage, durante um determinado período de tempo; é uma estratégia que ajuda a superar os obstáculos para o ensino eficaz; é um programa desenvolvido pela secretaria de educação.”

Era reducionista a ideia que se fazia de “comunidade de aprendizagem”. Reparai na ênfase do termo “grupo” no lugar de “equipe” e a tendência para novas regulações, tão do agrado dos burocratas da educação. O Brasil importava mais um modismo, a administração o comprava e a mudança se adiava. Os professores desconheciam a existência do Mestre Lauro. Os formadores de professores não conheciam a sua obra. Nas bibliotecas das faculdades de Pedagogia, nunca encontrei livros do insigne mestre. 

Quando as crianças do Projeto Âncora o quiseram homenagear, fizeram-no no contexto de uma escola, que adotara esta definição do conceito: “comunidades de aprendizagem são práxis comunitárias assentes num modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável e que podem assumir a forma de rede social física, ou virtual”. 

Era uma provisória, modesta e minimalista definição do conceito, aquela que eu criara, numa tentativa de o proteger da influência do mercantilismo. Não alcancei o meu intento. Uma empresa, que apoiava o Âncora, suspendeu o apoio ao projeto e financiou uma proposta de origem anglo-saxônica e catalã. 

Com o patrocínio dessa empresa, universitários operaram cosmética educacional. Caricaturalmente, operacionalizaram o conceito de comunidade de aprendizagem. Revestiram a escola da aula com adereços de desculpabilização curricular. Abriram caminho para que empresas do digital muito lucrassem com a comercialização de práticas “híbridas”. Obstruíram caminhos de uma inovação anunciada.

Já por várias vezes dele vos falei, mas nunca será demais invocá-lo. Nos idos de vinte, a baixa autoestima dos educadores não lhes permitia honrar a herança que esse mestre nos deixou. Educadores iam visitar escolas da Finlândia, sem que soubessem que havia muitas (e melhores) “finlândias” dentro do Brasil. Viajavam para Portugal em busca de uma Ponte, desconhecendo já terem ido além da Ponte. Perdiam precioso tempo, em demanda da Catalunha das ditas “comunidades de aprendizagem”, num tempo em que as verdadeiras comunidades se formavam e transformavam na terra do Lauro.

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXC)

São José d’Imbassaí, 31 de março de 2043

Querida Alice,

Entre os anos vinte e trinta, passavas a vida a cuidar daqueles que a ti recorriam, vítimas de um malfadado sistema de ensinagem. Disso me lembrei, quando remexia no baú das velharias e achei uns recortes de jornal do tempo em que completavas o teu mestrado em psicologia:

“Veja os principais pontos do plano de combate à violência escolar do MEC.

Por causa do caso do garoto de 13 anos, que matou uma professora a facadas na Escola Estadual Thomázia Montoro, na capital paulista, o Ministério da Educação (MEC) propôs, ontem, a criação de um grupo interministerial, para tratar dos ataques nas instituições de ensino.” 

Pelo teor da notícia, me apercebi de que as autoridades iriam acudir ao incêndio juntando-lhe… mais gasolina.

Passado o tempo das escolares tragédias, sinto necessidade de voltar às metáforas, para evitar que  o teu consutório se volte a encher de pacientes. É que, de quando em vez, a praga do fariseismo pedagógico se manifesta. 

Aqui te deixo pedaços da última carta, aquela que te enviei, em 2001, no dia do aniversário do amigo Rubem. Compreenderás por que ta envio.

“Aqui estou, a entregar-te este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens to permitir, hás-de lê-las. São tantas quantos os dias que mediaram o dia de completares seis anos e o dia de ires à escola. Esta é a última das cartas, que não o fim da história. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar.

A vida é uma história sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens. 

Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros. 

Quero que saibas que, quando os homens criam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés. No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. No lugar onde imaginaram situar-se o trono dos seus deuses, não havia uma “pomba estúpida” à medida dos seus medos, mas o espírito dos pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E, quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteróide B 612.

Nos últimos vinte anos, foram muitas as vezes que me refugiei em metáforas, dando a conhecer os pássaros do amigo Tuck e aqueles que habitaram a Ponte, o Âncora, a Escola Aberta. Aqueles que, nos idos de vinte e três, ousaram levantar novos voos, junto à Lagoa das Amendioeiras, em Mogi, em Caçapava…

 

Por: José Pacheco

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