Sorocaba, 6 de julho de 2043
Netos queridos, eu sei que podereis pensar que eu exagero e que os absurdos de que vos venho falando são fruto da imaginação. Mas, desumanas práticas sociais se sucediam, sem fim à vista. Hoje, vos darei mais dois exemplos.
Um aluno contou ao pai que um professor o havia repreendido. Um homem, que se identificou como delegado da Polícia Federal, chegou à escola numa viatura da corporação, agrediu o docente e apontou a arma para a sua cabeça.
Também por essa altura, o Movimento Humaniza denunciava uma empresa que criava situações de aparente militarização de crianças. Havia quem inculcasse em jovens seres o culto da violência.
Esse movimento protocolou a denúncia junto do Ministério Público e da Procuradoria de Justiça da Infância e Juventude, pois, o aliciamento de jovens para práticas nocivas ao seu pleno desenvolvimento físico e psíquico indiciava grave infração do “Estatuto da Criança e do Adolescente”.
Se, em 2043, disso vos falo é para que essa quotidiana tragédia não se apague da memória dos homens. Falo-vos dos conturbados tempos vividos num Brasil doente, que o meu amigo Joelmir assim descrevia, nos idos de 2019:
“Vivemos o vazio deixado pelo apodrecimento do velho paradigma – que já não nos serve, não por ser velho, mas por negar violentamente a vida humana e não humana – e o parto inconcluso de um novo paradigma, em andamento, e que nos permitirá vencer o medo e reaprender a amar.
Em outras palavras, vivemos tempos de desesperança e medo, porque o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O ódio é, tão somente, reflexo, decorrência do medo.
A questão central aqui é: chegamos a um nível tal de adoecimento [individual e coletivo] e de imperativo da cultura do medo, que nosso maior desafio no século XXI passou a ser reaprender a amar.”
O meu amigo Rui Canário dizia-nos que, quando analisávamos o mundo em que vivíamos, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos eram consequências de uma determinada escolarização da sociedade. E de que seria necessária e urgente uma nova escola, para um novo mundo,
Quando os meus amigos teoricistas comentavam a barbárie, eu perguntava: Qual será a nossa quota-parte de responsabilidade? Como teríamos contribuído para a emergência desses tempos de desesperança e medo?
O teoricismo era a doença infantil das ciências da educação, uma espécie de cegueira mental que o Saramago, metaforicamente, glosava como cegueira social. No seu “Ensaio sobre a Cegueira”, apelava ao dever moral dos que enxergam, usando a expressão “cegueira branca”. Não se referia à cegueira física, mas à cegueira moral, uma peculiar “patologia”, e usava o termo para representar o recusar ver:
“O medo cega, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.”
Sendo a cegueira social uma sutil forma de alienação, o escritor convidava-nos a uma reflexão sobre o estarmos cegos:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Talvez fosse intenção do autor recorrer à palavra “repara” numa dupla conotação: ao ato de saber “ver”, de saber “escutar”, e ao ato de “reparar”, de nos posicionarmos, agir, para corrigir.
Por volta do mês de julho de há vinte anos, gestos de ternura e o exercício de antroposófica sensibilidade ficavam em Sampa, enquanto eu rumava a Maricá, ao reencontro de um lugar de crianças e adultos felizes.
Uma Alma Gentil percorria steinerianos caminhos de humanização, preocupada com o abandono a que muitos jovens eram votados e acreditando na remissão de humanos pecados.
Afinal, nem tudo estava perdido.
Por: José Pacheco
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