São Francisco, 18 de julho de 2043
Nos idos de 1980, na proto-história da humanidade, quando os homens ainda precisavam de tribunais, prisões e guerras, as crianças imitaram-nos, criaram um “tribunal”. Até ao dia em que uma menina de seis anos de idade, advogada de defesa de um colega, assim falou numa sessão do “tribunal”:
“Vós não ouvis dizer que devemos amar-nos uns aos outros? Eu escutei o advogado de ataque dizer que o Marco cospe nos colegas, que lhes atira pedras, que o Marco é mau. Mas o Marco não precisa que digam que é mau. Ele precisa de quem o ajude a ser bom. Algum de nós já ajudou o Marco a ser bom?”
E continuou:
“Estou nesta escola há um ano e só ouço falar de castigos. Proponho que se acabe com o tribunal e se crie comissões de ajuda.”
Nas primeiras semanas na Ponte, o Marco chegava pontualmente atrasado, cerca das dez da manhã. Um dia, quis saber o porquê do atraso. Ele explicou.
“Sabes que a minha mãe é prostituta, não sabes? E sabes que eu tenho uma irmãzinha? Quer dizer… não é bem minha irmã, é assim como meia-irmã, porque o meu pai é o pai dela. Percebes? A minha mãe disse-me que ele era meu pai. E eu pedi-lhe para brincar com a minha irmãzinha. Ele disse que não era meu pai e que eu não me aproximasse da filha. Então, eu nunca pude brincar com a minha irmã.”
“Não pudeste, mas, qualquer dia, vais poder…”
Não me deixou concluir a frase.
“Não! Porque ela morreu atropelada.”
“E por que chegavas tarde à escola?”
“Porque eu não tinha vontade de ir. Quando acordava, ia ao jardim da praça, roubava umas flores, saltava o muro do cemitério, deitava as flores na campa da minha irmã, falava com ela, dizia-lhe que eu estava muito triste e que, quando fosse grande, ia comprar uma pistola e matar o nosso pai.”
Curioso que sou, quis saber o que era isso de “comissão de ajuda”. No dia seguinte, pus-me de atalaia, perto do portão. O Marco chegou, viu uma menina a plantar umas flores. Alçou a perna, para lhe dar um pontapé. Logo um círculo humano o rodeou, dizendo:
“Marco, somos a comissão de ajuda. Estamos aqui para te ajudar. Nós sabemos que tu és bom. Nós somos teus amigos!”
O Marco fez uma cara feia e desistiu de dar o pontapé.
Quando a comissão de ajuda se dispersou, apanhou uma pedra e mirou a cabeça de um colega. Quando puxou o braço atrás, para a atirar, o círculo humano voltou:
“Marco, tu não vais atirar essa pedra, porque tu és bom. Somos a comissão de ajuda. Estamos aqui para te ajudar.”
Cada vez que o Marco ensaiava uma malfeitoria, olhava à volta, porque logo a comissão de ajuda apareceria. De modo que só lhe restou deixar de “ser mau”.
O “mandamento novo” se cumpriu. Nunca mais foi preciso punir qualquer aluno, porque foram criadas regras de convivência.
“Foi bonita a festa, pá”… À iniciativa da Bruna, do Bruno, da Francis, do Gabriel, do Jorge, se juntaram mães da comunidade. E a festa junina se fez singela e bela.
Enquanto as crianças jogavam às argolas e à corrida de sacos, nas traseiras da Casa-Mãe, se cortava cabelo, e na cozinha se preparava um caldinho, que aquecesse as entranhas, naquele fresco fim de tarde.
Amigos chegavam, trazendo alimento e humanidade. Respirava-se comunidade. Ali, o milagre da multiplicação do cuidar crescia. De um saber cuidar que me transportou à Ponte e ao episódio, que nesta cartinha transcrevi.
Quando começou o bingo, o Bruno ergueu o braço. Logo as crianças ergueram os braços e silêncio se fez.
Um visitante perguntou
“Porque ergueste o braço?”
“Porque, quando alguém quer falar, pede a palavra, erguendo o braço.”
“Os professores também erguem o braço, para pedir para falar?”
“Claro!”
E o bingo começou, num ambiente de atento silêncio.
Por: José Pacheco