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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXIX)

Comunidade de Aprendizagem da Lagoa das Amendoeiras, 8 de julho de 2043

“Zé, tratam tão mal as crianças! É preciso pôr a boca no trombone.” – assim a Maria concluía a mensagem, que transcrevi na cartinha de ontem. 

Como vos disse nessa cartinha irei contar-vos como entramos na “Idade da Educação”, começando por descrever a etapa final do modelo dito “tradicional”, que se reproduzia como uma praga.

Como se daria uma espécie de mutação genética do sistema educacional? Einstein e outros “maus alunos” eram um início de resposta. Se lêssemos as biografias de grandes vultos da humanidade, concluiríamos que quase todos contornaram a escola, que foram grandes… apesar da Escola. De uma Escola que atravessava uma crise de legitimidade. Já não era o único lugar de produção de conhecimento, mas, apesar da sua mesmice, libertava talentos que transformavam o mundo e alcançavam a dignidade de um Nobel. 

A Escola dos idos de vinte era uma instituição caduca, formatada num modelo de sociedade caduco. Iríamos redescobrir o seu sentido e reconfigurá-la. Ensaiei um princípio de explicação da reformatação no “Pequeno Dicionário dos Absurdos em Educação”, que a Artmed publicou, em 2009. 

Nesse livrinho, tentei entender por que razão a Escola Prussiana se mantinha viva e ativa e perspetivei modos de a redimir:

“Consciente de que “as oportunidades de sobrevivência digna estarão cada vez mais condicionadas pelas possibilidades de criação e multiplicação de redes de conhecimento”, Schwartz (em “As Profissões do Futuro”) resume em três palavras o que a Escola (enquanto construção social) deveria considerar como esteios de projeto: rede, conhecimento e cidadania.” 

A prática da maior parte das escolas terá alguma coisa a ver com isso?  

Agências internacionais investiam na inovação tecnológica, depreciando as capacidades da pesquisa educacional. Os financiamentos patrocinavam, prioritariamente, outras áreas de desenvolvimento humano, porque, apesar dos biliões gastos em estudos, os resultados são dececionantes e a pesquisa em Educação era como “saco sem fundo”. 

Nas últimas décadas, tinham sido esbanjados recursos em “estudos” que nada acrescentaram à qualidade das práticas escolares. Dos estudos maiores aos menores, quase todos incidiam em escolas onde nada se criava e tudo se copiava, produzindo conclusões em circuito fechado. 

Os pesquisadores adotavam um léxico velho de séculos, jogavam com conceitos obsoletos, reinventavam terminologias e nomenclaturas, reescreviam literatura próxima da de ficção científica. O fosso entre a teoria e a prática mantinha-se, aprofundava-se.

O saudoso João dos Santos, pedopsiquiatra, companheiro de estudos de Walon e Pieron, falava-nos da sua tristeza quando, ao voltar em crescido à escola para ver novamente as peças de teatro que um dia havia representado, constatou que tudo se mantinha inalterado e que os professores continuavam a falar em discursos vazios e como únicos donos do saber.

A Velha Escola agonizava. Mais “data show” menos pau de giz, em pleno século XXI, mantinha-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Desperdiçávamos a competência de muitas gerações de professores, mas ainda seria possível suster a tendência para, ciclicamente, a Velha Escola se disfarçar de “inovadora”. Bastaria a amorosidade e a coragem política, uma efetiva autonomia das escolas, e tempo para avaliar práticas que rompessem com velhos vícios. 

Foi isso mesmo o que aconteceu, entre meados de vinte e três e o final de vinte e quatro. 

Netos queridos, ficai atentos às próximas cartinhas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXVIII)

Maricá, 7 de julho de 2043

Nas décadas de setenta e oitenta, a Ponte organizava “colónias de férias”. Centenas de crianças passavam os meses de “férias” num lugar junto ao mar. Mesmo morando a cerca de 30 quilómetros do mar, muitas delas, tal como os seus pais, nunca tinham estado numa praia. 

A associação de pais estabelecia acordos com escolas de Vila do Conde e da Póvoa, e montava cozinhas e dormitórios. 

Na areia, a autodisciplina dispensava imposições, e a autoridade dos professores, pais e monitores não se confundia com autoritarismo. 

Não demorou que outras escolas organizassem as suas colónias de férias. Porém, os perigos resultantes da permanência num local aberto, davam origem a preocupações que professores dessas escolas resolviam com gritos e castigos. Isso não impediu que uma criança de uma escola próxima morresse afogada.

A quase meio século de distância do infausto acontecimento e de outros absurdos balneares, que observara a partir da colónia da Ponte, a sempre atenta e, legitimamente, crítica, Maria me dava conta do que, por sua vez, observara numa praia portuguesa, nos idos de vinte e três. 

“A praia escolar segue a métrica macabra dos muros da escola, mas com para-ventos. As coisas que as educadoras dizem são dignas de registo. Uma diz: “Sais da areia, agora, ou…!” E a criança olha-a com um ar confuso.  

Lembrei-me muito de ti e do quanto irias gostar de aqui estar. São várias escolas, cada qual com uma enorme vedação de para-ventos. Agora, uma educadora deu uma sapatada leve na cabeça de uma criança com no máximo três anos, porque ela demorou a pôr a mochila. Todos gritam, num estado de nervoseira, porque vem aíi o autocarro, para os levar de volta para o colégio. 

A newsletter, que o colégio enviou para os pais a pedir 120€ pela semana de praia, tem fotos de crianças sorridentes.”

Durante um ‘Jornal da Noite’, o locutor protagonizou um momento marcante, quando teve que dar a notícia do caso de Jéssica, uma menina que foi brutalmente agredida e que acabou por morrer, após ter sido mantida em cativeiro por vários dias na casa da suposta “ama”.

Após um curto intervalo, o bloco principal de notícias recomeçou: 

“E voltamos com um dos casos mais tenebrosos que tive de noticiar em toda a minha carreira. Foi hoje ouvida em tribunal a mãe da menina que morreu vítima de agressões monstruosas.”

Chocada com as agressões que encontrou no corpo da menina, uma inspetora da polícia confessou: 

“Estou nos Homicídios há 10 anos e nunca vi um caso assim. A menina foi entregue à tortura pelos próprios pais, supostamente devido a uma dívida relacionada à bruxaria ou drogas.”

Netos queridos, eu sei que ficais incomodados, quando abordo estes assuntos. Mas é por bem que o faço. Em 2043, a quem interessará ocultar a miséria moral dos idos de vinte e três? A corrupção e o ódio eram fenómenos estruturais e estruturantes de uma Sociedade doente e de uma Família não disfuncional (como os teoricistas a designavam), mas que perrdera os contornos de antanho e disso não se apercebia.

Contrariando a afirmação do Brandão (ou de Freire?) – “a educação não muda a sociedade, muda as pessoas, e as pessoas mudam a sociedade” – se a sociedade não mudava a educação, a educação não mudaria as pessoas, e as pessoas não mudariam a sociedade. Num círculo vicioso alimentado por obsoletas práticas escolares, a escola reproduzia múltiplas violências, adoecia os professores e levava jovens a praticar automutilação.  

Seria na Escola que esse vicioso círculo viria a ser interrompido, em diálogo com a Família e a Sociedade. Irei contar-vos como entramos na “Idade da Educação”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXVII)

Sorocaba, 6 de julho de 2043

Netos queridos, eu sei que podereis pensar que eu exagero e que os absurdos de que vos venho falando são fruto da imaginação. Mas, desumanas práticas sociais se sucediam, sem fim à vista. Hoje, vos darei mais dois exemplos.

Um aluno contou ao pai que um professor o havia repreendido. Um homem, que se identificou como delegado da Polícia Federal, chegou à escola numa viatura da corporação, agrediu o docente e apontou a arma para a sua cabeça. 

Também por essa altura, o Movimento Humaniza denunciava uma empresa que criava situações de aparente militarização de crianças. Havia quem inculcasse em jovens seres o culto da violência.

Esse movimento protocolou a denúncia junto do Ministério Público e da Procuradoria de Justiça da Infância e Juventude, pois, o aliciamento de jovens para práticas nocivas ao seu pleno desenvolvimento físico e psíquico indiciava grave infração do “Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Se, em 2043, disso vos falo é para que essa quotidiana tragédia não se apague da memória dos homens. Falo-vos dos conturbados tempos vividos num Brasil doente, que o meu amigo Joelmir assim descrevia, nos idos de 2019: 

Vivemos o vazio deixado pelo apodrecimento do velho paradigma – que já não nos serve, não por ser velho, mas por negar violentamente a vida humana e não humana – e o parto inconcluso de um novo paradigma, em andamento, e que nos permitirá vencer o medo e reaprender a amar. 

Em outras palavras, vivemos tempos de desesperança e medo, porque o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O ódio é, tão somente, reflexo, decorrência do medo. 

A questão central aqui é: chegamos a um nível tal de adoecimento [individual e coletivo] e de imperativo da cultura do medo, que nosso maior desafio no século XXI passou a ser reaprender a amar.” 

O meu amigo Rui Canário dizia-nos que, quando analisávamos o mundo em que vivíamos, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos eram consequências de uma determinada escolarização da sociedade. E de que seria necessária e urgente uma nova escola, para um novo mundo,

Quando os meus amigos teoricistas comentavam a barbárie, eu perguntava: Qual será a nossa quota-parte de responsabilidade? Como teríamos contribuído para a emergência desses tempos de desesperança e medo?

O teoricismo era a doença infantil das ciências da educação, uma espécie de cegueira mental que o Saramago, metaforicamente, glosava como cegueira social. No seu “Ensaio sobre a Cegueira”, apelava ao dever moral dos que enxergam, usando a expressão “cegueira branca”. Não se referia à cegueira física, mas à cegueira moral, uma peculiar “patologia”, e usava o termo para representar o recusar ver: 

O medo cega, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.” 

Sendo a cegueira social uma sutil forma de alienação, o escritor convidava-nos a uma reflexão sobre o estarmos cegos: 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” 

Talvez fosse intenção do autor recorrer à palavra “repara” numa dupla conotação: ao ato de saber “ver”, de saber “escutar”, e ao ato de “reparar”, de nos posicionarmos, agir, para corrigir. 

Por volta do mês de julho de há vinte anos, gestos de ternura e o exercício de antroposófica sensibilidade ficavam em Sampa, enquanto eu rumava a Maricá, ao reencontro de um lugar de crianças e adultos felizes.

Uma Alma Gentil percorria steinerianos caminhos de humanização, preocupada com o abandono a que muitos jovens eram votados e acreditando na remissão de humanos pecados. 

Afinal, nem tudo estava perdido.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXVI)

Votorantim 5 de julho de 2043 

No julho de vinte e três, fui até Votorantim, aprender com secretários de educação e educadores da região como fazer educação integral. Por essa altura, uma notícia aparecia na comunicação social em lugar de relevo, com títulos e subtítulos em carateres grossos:

“A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei, que estabelece o Programa Escola em Tempo Integral.”

Mais uma vez, a montanha paria um rato… 

Já dizia o Piaget que a Educação era a única área das ciências humanas em todo mundo se sentia competente para dar opinião. Os deputados da nação metiam no mesmo saco “educação integral” e “escola de tempo integral”, e não tinham noção do ridículo das suas intervenções. A minha amiga Jaqueline assim comentava o “mal menor”: 

“Seja lá o que entendam por “ensino integral”, significa que conseguimos colocar na agenda deste país as ideias e ideais da ampliação da jornada escolar. Lutemos cotidianamente por escolas de educação integral em jornada ampliada.”

Para quem, porventura, não saiba, a Jaqueline havia coordenado um programa chamado “Mais Educação”, que tinha por objetivo a indução da construção da agenda de educação integral nas escolas da rede pública, ampliando a jornada escolar. Ela nos dizia que a escola, face às exigências da Educação Básica, precisava ser reinventada. 

Deveriam ser priorizados “processos capazes de gerar sujeitos inventivos, participativos, cooperativos, preparados para diversificadas inserções sociais, políticas, culturais, laborais e, ao mesmo tempo, capazes de intervir e problematizar as formas de produção e de vida”. 

A escola tinha, diante de si, o desafio de sua própria recriação, pois os rituais escolares eram “invenções de um determinado contexto sociocultural em movimento”. 

A proposta educacional da escola de tempo integral visava “promover a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas e o compartilhamento da tarefa de educar e cuidar (…) alcançar a melhoria da qualidade da aprendizagem e da convivência social, e diminuir as diferenças de acesso ao conhecimento e aos bens culturais, em especial entre as populações socialmente mais vulneráveis”.

A minha amiga Jaqueline não se cansava de zurzir naqueles que, através de “malabarismos pedagógicos, invencionices curriculares e projetos de lei”, perenizavam um modelo educacional causador de desigualdade:

“A pobreza e a miséria em que vivem milhares de crianças são diretamente responsáveis pelas descontinuidades, reprovações, evasões que vivem ao longo da sua vida escolar (…) Não existe pedagogia salvacionista. Quem vende isto mente”.

Em Portugal, a “jornada ampliada” transformara a rotina das crianças numa dose dupla de tédio. Já não bastava a pasmaceira da sala de aula, ocupava-se o tempo (que deveria ser) livre nas chamadas AEC, “atividades de enriquecimento curricular”, atividades de conteúdo pobre – de enriquecimento curricular, nem vê-lo! – não passavam de uma versão mais barata do que o velho OTL (ocupação dos tempo livres). Tratava-se de atividades de desculpabilização curricular mal pagas a monitores, na sua maioria, sem qualquer preparo para a função. A isso se juntava o “apoio às famílias”, uma espécie de prolongamento da tarefa de “babysitter”, ou de um suave cárcere. E… cadê a “educação integral”?

Quando o dom do desapego me permitiu passar da ribalta para os bastidores da mudança, os educadores da ARCA asseguraram continuidade dos projetos, foram obreiros de uma nova educação, escapando a armadilhas como a de um “tempo integral” sem educação integral.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXV)

Niterói, 4 de julho de 2043

“Adaptar as escolas não seria suficiente; era preciso transformá-las.” Com esta sentença encerrei a cartinha de ontem. Hoje, pretendo retomar parte do conteúdo do manifesto dos jesuítas da Catalunha. Eles sabiam que de nada valeria tentar remendar um sistema de ensino obsoleto. Urgia substituí-lo, gradual e prudentemente, por novas construções sociais, por um sistema de… aprendizagem. 

Despontava uma nova visão de mundo, a busca da cura das chagas de uma sociedade doente. Consumava-se a humanização numa nova educação. Dispositivos primordiais foram instituídos. Os seus autores deram-lhes o nome de “círculos de aprendizagem”. Deles vos farei uma descrição fundamentada. Agora, vos deixarei com os extraordinários educadores jesuítas da Catalunha:

“A Fundação iniciou em 2009 um processo participativo chamado Horizonte 2020 (em catalão, Horitzó 2020) com o objetivo de propor debates sobre como deveria ser a escola ideal para enfrentar os desafios do século 21. Mais de 13 mil pessoas relacionadas direta ou indiretamente à rede de escolas jesuítas foram convidadas a participar, entre elas alunos, pais, professores, diretores, gestores, empresários, funcionários de instituições, políticos e membros da Igreja. Nas atividades propostas, o grupo foi incitado a refletir sobre três questões fundamentais: 

Que escola queremos? 

Que futuro desejamos? 

Como deve ser a escola em 2020?

Em um primeiro momento, os participantes foram orientados a pensar exclusivamente no futuro que desejavam, deixando de lado o “como” fazê-lo. A ênfase estava em explorar o sonho e a imaginação de cada um dos envolvidos para que pudessem surgir ideias sem limitações. De acordo com a Fundação, o objetivo era que, ao final desse processo, fosse construído coletivamente um Ratio Studiorum do século 21.”

Por essa altura, as escolas ditas públicas desconheciam por completo a existência de uma proposta de Ratio Studiorum do século 21, bem como a do século 16. As escolas ditas alternativas pecavam por não atualizar as propostas de Steiner, de Dewey, de Montessori, de Freinet.

O Modelo Pedagógico jesuítico estava baseado em “onze pilares: equipe docente integrada, criativa e inovadora; alunos protagonistas; espaços flexíveis e dinâmicos; participação das famílias; recursos digitais; tempo flexível; avaliação dinâmica; metodologia diversa; estimulação precoce das inteligências; contato com o inglês e integração de valores. 

De todos os pontos, o de maior destaque foi a necessidade de substituir os espaços antigos por outros, mais acolhedores e motivadores, com a intenção de desenvolver projetos globais e diversos para a estimulação das inteligências múltiplas.

O uso do tempo foi igualmente reformulado. Sem horários fixos, os alunos passaram a desenvolver atividades debatidas no início da manhã, com avaliação ao final da jornada. O recreio tampouco ficou com um horário estabelecido: os estudantes passaram a decidir quando sair, de acordo com o momento em que consideravam necessário. Os deveres de casa também não existem. Os alunos passaram a ser estimulados a pesquisar temas relacionados aos projetos.”

E o amigo Pepe comentava:

“Como a intenção não é vincular a aprendizagem à realização de provas, eles estão mais atentos ao que fazem e têm a capacidade de explicar como e por que realizam determinadas atividades.”

Na Catalunha da primeira década deste século, eram desenvolvidas práticas do século 21. No Brasil e no Portugal da terceira década, as escolas desenvolviam práticas do século 16. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXIV)

Silveiras, 3 de julho de 2043

Estávamos no agosto de 2015 e a notícia rezava assim:

“Escolas jesuítas da Catalunha apostam na renovação do modelo pedagógico para se adaptar aos novos tempos. Experiências espanholas mostram como pensam os jesuítas do século XXI”. Na mesma Ibéria católica, que havia engendrado o modelo de ensino, durante séculos, praticado pela Companhia de Jesus, o modelo era questionado. 

Mostrastes surpresa, por terdes verificado que, com algumas “nuances”, a jesuítica Ratio Studiorum de 1552 pontificava em pleno século XXI. Maior surpresa tereis com a notícia, que aqui vos deixo, uma notícia que, nos idos de vinte, não havia chegado ao conhecimento da maioria dos educadores. Era lamentável que a formação de professores não os dotasse com conhecimentos mínimos de História da Educação. 

Mais grave ainda era o fato de, não possuindo esse e outras áreas de conhecimento das ciências da educação, os professores não saberem explicar por que faziam aquilo que faziam. Um médico sabia por que usava um estetoscópio. O pedreiro sabia por que usava o fio de prumo… 

E o que dizer do conhecimento da lei? Foram muitas as vezes que escutei professores dizendo:

“A lei não permite.”

Perguntava pela lei. Não sabiam o que responder. A lei e as ciências da educação tudo permitiam… exceto aquilo que a maioria das escolas fazia.

Sempre que os funcionários do ministério pretendiam impor o meu regresso à sala de aula, perguntava-lhes por que deveria fazê-lo. E lhes dizia que, enquanto profissional do mesmo ofício não aceitaria respostas “achistas”, ou sem fundamento legal e científico.

Eu até não tinha lido muito, mas lido o suficiente para deixar os “superiores hierárquicos” sem saber o que responde os seus “inferiores”. 

Um inspetor, desistindo de me apoquentar, exigiu que eu fundamentasse a minha prática. Já não me recordo dos nomes que lhe apresentei. Hoje, lhe daria um longo rol:

Lauro de Oliveira Lima, Piaget e Vygotsky, da Psicologia da Educação; Agostinho da Silva e Edgar Morin, da Filosofia da Educação; Pedro Demo e Florestan Fernandes, da Sociologia da Educação; Lawrence Stenhouse e Celso Vasconcelos, do Desenvolvimento Curricular; Paulo Freire e Humberto Maturana, da Epistemologia; Simon Papert e Castells, das Tecnologias de Informação e Comunicação; Darcy Ribeiro, da Política Educacional; António Damásio, das Neurociências; Nise da Silveira, da Psiquiatria; Carl Rogers, da Psicanálise; António Nóvoa, da História da Educação; Anísio Teixeira, Freinet, Montessori, Steiner, Dewey, Kilpatrick, Nilde, Decroly e outros educadores escolanovistas.

O inspetor quis saber o que diziam esses autores. Com todo o respeito devido a um “superior hierárquico”, respondi-lhe que os lesse. Era só o que faltava! Ensinar o padre nosso ao vigário? Certo é que os inspetores eram cientificamente ignorantes. E os professores não aproveitavam essa fragilidade.

Regressemos à boa notícia provinda da Catalunha:

“Repensar a escola requer uma postura flexível, autocrítica e aberta às possibilidades de entender a educação a partir de diferentes pontos de vista. 

Imbuídos desse espírito, diretores da Fundação Jesuítas Educação lideraram um processo de reformulação do modelo pedagógico, até então adotado. 

O que motivou a iniciativa foi o reconhecimento da defasagem do sistema, incompatível com as novas maneiras de ter acesso ao conhecimento e de transmiti-lo, com as novas necessidades profissionais e com a complexidade da realidade atual. 

Adaptar as escolas não seria suficiente; era preciso transformá-las.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXIII)

Pitamariça de Baixo, 2 de julho de 2043

Na “sincronicidade” das coincidências dos inícios do Verão português e do Inverno brasileiro de vinte e três, decisões decisivas (e não é pleonasmo…) foram tomadas. Das consequências vos falarei mais adiante. 

Algo inusitado acontecera. Não encontrava explicação plausível para certos fenômenos. E os desfechos não seriam explicados racionalmente, tinham mãozinha do esotérico. 

Enfim! Entre julho e agosto, uma “ARCA” seria constituída, juntando a boa-vontade e a perícia de boa gente nas duas margens do oceano. E, durante esses dois meses, nos encontros das quartas e dos sábados conversaríamos sobre o “quanto baste” de fundamentação teórica do projeto das novas construções socias de aprendizagem e de educação.

Setembro marcaria o reinício do projeto, o voltar a uma formação concomitante com a mudança. Era o primeiro dia do resto das nossas vidas de profissionais de um desenvolvimento humano humanizador, do exercício da solidariedade a partir de dificuldades e obstáculos encontados, pois qualquer dia seria um bom dia para recomeçar, mais uma oportunidade de tomar uma decisão ética. 

Hoje, continuarei a descrição da origem remota (embora a mais remota se situe na Antiguidade Clássica) do velho modelo de ensino. Nos colégios seiscentistas, era comum a prática de denúncia ou delação. Era permitido e estimulado denunciar ao Principal as faltas cometidas por colegas. Os alunos estavam divididos em grupos comandados por um decurião e a distribuição dos alunos, por ordem de mérito, estava relacionada com a divisão desta em várias decúrias.

O ensino praticado nas Universidades foi adotado nos Colégios, em regime de internato, sujeito a horários e regulamentos precisos. 

Herdeiro da escolástica, o modus parisiensis adotava a lectio e momentos de disputatio. As vitórias davam direito a prémios, louvores e condecorações. Nas repetitiones, os alunos repetiam as lições ouvidas ao professor. Eram aplicados castigos corporais, corrigindo faltas disciplinares e, também… como incentivo aos estudos. 

Em 1552, a Ratio Studiorum passaria a uniformizar o funcionamento dos Colégios. E, em 1599, foi publicada a edição definitiva da Ratio Studiorum, o modelo de ensino praticado durante séculos pela Companhia de Jesus. As quatrocentas e sessenta e seis regras, que a compunham, abordavam temas como: formação dos professores, relações com os pais dos alunos, manuais de ensino, metodologias, plano de estudos de humanidades, filosofia, história, ciências físicas e matemáticas, orientações pedagógicas, regime de avaliação, regras administrativas e disciplinares, prémios e castigos. 

Ao longo dos séculos, com uma acentuada degradação da Ratio Studiorum, a velha escola já nem conteúdos conseguia transmitir. As adaptações operadas na velha proposta jesuíta foi desvirtuada – no século XXI, poder-se-á aceitar, por exemplo, a reprovação de alunos com 100% de assiduidade? 

Pedia-se à escola “educação financeira e para o consumo, pedia-se que educasse para para a saúde, mas ela engendrava inadimplentes e alunos com obesidade mórbida. Pedia-se que houvesse educação sexual, e alunas eram estupradas em “trotes”, dentro das universidades. Falava-se de autonomia, e os professores cativos de uma platônica caverna, para onde uma “formação” deformadora os atirarau, semeavam heteronomia em sala de aula. Compeiae-lhe “educar para a cidadania”, mas era imposto o voto obrigatório,. Naturalizava-se a violência, num país onde se matava professores e alunos, dentro das escolas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLXXXII)

Vale de Ansa, no primeiro dia de julho de 2043

O autor do livro “Why Don’t Students Like School?” afirmava:

“Aprendemos mais sobre o cérebro humano nos últimos vinte e cinco anos do que nos dois mil e quinhentos anteriores.”

Isso significa que, nos idos de vinte, deveríamos dispor de conhecimento suficiente para melhor ensinar e aprender. Na verdade, tínhamo-lo, mas não o praticávamos. Se o conservantismo tardio tentava “tornar as aulas mais cativantes”, o alternativo roussoneano acreditava que bastaria deixar a criança descobrir as coisas por si mesma. 

O obsoleto condutismo e o ingénuo não-diretivismo ignoravam que a criança não fazia aquilo queria, mas que queria aquilo que fazia.

Nos anos setenta, resolvi fazer uma experiência não-diretiva radical. Fiquei fora da sala de aula, enquanto os meus alunos, dentro dela, aprendiam do modo que eu considerava ser “autónomo”. Na década seguinte, repetiria a experiência, para nunca mais a fazer. Um sem-fim de dispositivos “substituía” o professor. Nada de autónomo ali havia. Compreendemos que o exercício da autonomia não era aprendizagem individual, era uma prática relacional. Compreendemos que a aprendizagem acontece na relação, no estabelecimento de vínculos.

No dizer de Freire, “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica”. E a Cláudia reencontra Freire, quando escreve na sua tese de doutoramento: 

“Nuno é como as demais crianças da Ponte, que desde cedo são encorajadas a inaugurarem o diálogo, apreendendo a importância de compreender “o que fazem e por que fazem (…) não há relação, quando o professor tem que interagir com mais de uma dúzia de alunos. Inegavelmente, com escolas e salas superlotadas abrem-se os caminhos para a exclusão.”

Nos dicionários diz-se que respeito é “sentimento que leva alguém a tratar outrem com grande atenção, profunda deferência; consideração, reverência”. Partindo dos pressupostos ilustrados por Agostinho em “Sanderson e a Escola de Oundle”, a convivencialidade marcada pela preocupação com os outros, tinha em si impressa a marca do amor: 

“Não há para o espírito do homem, ou no espírito do homem, nada que não seja relação. O que acontece é que chamamos desordem à ordem que nos não agrada, ao conjunto de relações em que não entendemos ou não aceitamos a relação connosco.”

Para melhor entenderdes, a raíz dos equívocos e fundamentalismos pedagógicos, nas próximas cartinhas, pretendo falar-vos da origem dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação. Tarde, mas ainda a tempo, cheguei à conclusão de que a aprendizagem não estava centrada no professor, nem no aluno, mas na relação. E que, ao invés de refutar propostas de qualquer dos paradigmas, dever-se-ia integrá-las. 

O instrucionismo, que correspondera a necessidades sociais do século XVIII e XIX, jamais deveria ser praticado em pleno século XXI, mas continuava hegemónico, obsoleto e sem fundamento científico. Filosoficamente, remontava ao século XVII, mas a proposta de Comenius tinha sido antecedida pela escola jesuíta. 

No “modus parisiensis”, como foi chamado, os alunos distribuídos por classes, instados a exercícios escolares constantes, sujeitos a um regime de incentivos ao trabalho escolar e “à união da piedade e dos bons costumes com as letras”. Imperava a ordem, a rapidez e a disciplina. 

Em 1509, no Colégio de Montaigu crê-se que, pela primeira, vigorou a divisão dos alunos em classes. Cada disciplina era segmentada em níveis, sete classes de Gramática organizadas numa complexidade crescente.

(continua)

 

Por: José Pacheco

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