Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXX)

Lisboa, 7 de outubro de 2043

Para que não fosse cerceada a autonomia dos alunos, no processo de transição para novas práticas, a abertura organizacional estabelecida foi sendo matizada por um conjunto complexo de dispositivos que, a par e passo, se foram explicitando em relação às várias dimensões de organização do trabalho escolar. Entre eles, o “debate”. 

Era um dispositivo de trabalho coletivo onde cabiam, entre outros, a discussão de assuntos do interesse dos alunos e a gestão de conflitos. Realizava-se no final de cada dia, exceto à sexta-feira, dia em que todos os alunos se reuniam em assembleia. Mais tarde, esse dispositivo tomaria a forma de “roda de conversa”.

A Assembleia da Escola tinha um cariz mais formal e mais abrangente. Obedecia a uma convocatória, que estabelecia o rol dos assuntos a tratar. Decisões e conclusões eram registadas em ata, no final de cada reunião. 

Uma Mesa da Assembleia era eleita, no início de cada ano. Nos nove anos de escolaridade básica, os alunos participavam em cerca de duas mil rodas de conversa e em quatrocentas reuniões de Assembleia, espaços e tempos de aprendizagem de cidadania. Nesses encontros, se preparavam projetos, se resolviam problemas, se analisava e votava os relatórios dos “Grupos de Responsabilidades”.

A organização de meios e a gestão do bem-estar eram responsabilidade coletiva, de acordo com categorias de tarefas a que se dava o nome de “Responsabilidades”. O cumprimento das tarefas era incumbência dos alunos, sem interferência de adultos. Havia, por exemplo, o “grupo dos murais” (a quem competia manter os murais atualizados e organizados), o “grupo do recreio bom” (a quem cabia velar pelo bem-estar de todos, nos intervalos), o dos “responsáveis pelo material comum”, pelo “terrário” etc. Quinzenalmente, todos os grupos de responsabilidades apresentavam na reunião da Assembleia um relatório contendo a descrição de tudo o que tinham realizado.

A par da assunção de autonomia pelos alunos e professores, decorreram processos de reivindicação de autonomia da escola e comunidade. A lei nos era favorável. A fundamentação científica nos dava razão. E, em 2004, a Ponte celebrou um contrato de autonomia com o ministério da educação. 

Mas, vinte anos decorridos sobre a celebração desse contrato, na relação entre escolas e ministérios ainda prevalecia o autoritarismo e a burocracia:

“Entendemos que a melhor alternativa seria matricular nossas crianças na escola pública e eles frequentarem o espaço que já existe, onde teríamos possibilidade de uma educação verdadeira

Participei dos encontros de sábado li o “plano de inovação” e o documento “novas construções sociais”, mas ainda não entendemos as implicações legais.

As famílias estão inseguras e queríamos entender melhor como isso poderia ser executado. Muitas famílias têm receio do Conselho Tutelar, algumas estão em processo judicial, lutando pela guarda dos filhos, por exemplo. Seria possível nos orientar mais detalhadamente sobre isso?

De que forma se poderia exigir professores para essa turma? Quais as implicações legais e quais as providências teríamos de tomar?

Como proceder, quando a escola não nos envia o seu PPP? Eles se fazem de mortos, dizem que “está sendo reformulado” e fica por isso mesmo. Esse é o relato da maioria das famílias

Seguimos ansiosos para avançar com o trabalho do coletivo.”

Embora desgastado por décadas de resiliência e de ver destruídos nobres projetos, acedi a novos pedidos de ajuda. Num sábado de outubro, pela enésima vez, expliquei o que explicara… cinquenta anos atrás.

 

Por: José Pacheco

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