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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIII)

Aterro do Flamengo, 29 de novembro de 2043

Felizmente, já lá vai o tempo da incoerência comentado por Niemeyer. Um tempo em que muitos amigos e muitas amigas aplicavam a freriana “receita” – usavam de amor e de coragem. Outros havia que nem por isso… E eu chegava a duvidar da amorosidade de muitos dos educadores que dela se reclamavam. Quanto à coragem, estávamos falados. Enquanto os primeiros sofriam as agruras do chão de escola e pagavam com isolamento a ousadia de cumprir Freire, freirianos não-praticantes exibiam nos palcos de congressos uma amorosidade delicodoce e sepultavam a coragem em inúteis teses, que apodreciam nos arquivos das universidades.

O meu amigo Paulo era exemplo de amorosa e corajosa desocultação da incoerência de órgãos de administração e de gestão e era, por isso, votado ao ostracismo:

“A escola na qual fui estudante, a quem dei parte dos anos mais provectos da minha vida, para quem trabalhei, de forma graciosa, durante 10 anos e para quem, também, elaborei guiões, a troco de nada, decidiu, através de quem lhe gere as redes sociais, bloquear-me. 

E bloquear-me por que razão? Porque, várias vezes, dei conta da minha não concordância, de forma ordeira e educada, sobre algumas das suas ações (ou falta delas), e porque apontei essa incongruência gritante da vaidade de tiro-no-pé que é destacar o ranking (e os prémios de mérito). Não é esse (ou nunca poderá ser) o serviço de uma escola pública. 

As memórias ninguém mas tira, e não vou passar a desgostar de um local que me moldou de uma certa forma (sem nunca me vergar). Mas não aceito, nem quero, ser um dado adquirido. E foi assim que a Escola me tratou, a partir de um determinado momento. Não esqueço que me deixaram, por duas vezes, em apresentações para as quais fui convidado, a pregar sozinho. Não quero ser essa pessoa, nem aceito refugos. Aquele velho adágio da “má Mãe, boa madrasta” assenta como uma luva. 

Não levo a mal, e palavras vão com o vento que passa, mas a mim, garanto-vos, nunca mais me vêem as costas. 

Tenho ótimas memórias e amizades que ainda duram, começadas algures dentro daqueles muros e paredes. 

Não guardo rancor. Sejam todos felizes (mesmo que num 24 de abril qualquer).”

O 24 de abril a que o meu amigo Paulo se referia era a véspera do dia da dita “Revolução dos Cravos”, em que participei ativamente. Cinquenta anos decorridos, não me arrependia de ter pegado em armas e ajudado a acabar com uma ditadura de 48 anos, que me roubou muitos amigos e deixou o país em estado deplorável. 

Lembro-me de, no mesmo dia – 25 de abril de 74 – numa reunião realizada ao cair da tarde, quando já se sentia que “ditadura nunca mais”, eu ter dito aos meus companheiros de armas que o povo não adormeceu fascista no dia anterior, nem acordou democrata nesse dia. Seria necessário investir numa Educação, que nos livrasse do regresso a tenebrosos tempos. 

O que aconteceu no campo da Educação durante aqueles cinquenta anos? O amigo Nóvoa o disse, várias vezes, nomeadamente, numa conferência realizada em 2006:

“Quando eu nasci, há 51 anos, a escolaridade obrigatória terminava na terceira classe. Em 1964, esta obrigação tinha aumentado para seis anos. Depois, um longo interregno. 

Quando o meu filho nasceu, há 21 anos, tudo continuava na mesma. Décadas de atraso (…). A Lei de Bases do Sistema Educativo, de 1986, colocou esta obrigação em nove anos. Releiam-se os debates da época. A ambição parecia excessiva para um país que sempre se contentara com uma “escola mínima”, com níveis baixíssimos de qualificação académica e profissional.”

Amanhã, completarei a citação do discurso do amigo Nóvoa. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXII)

Matinhos, 28 de novembro de 2043

Reagindo ao “puxão de orelha”, que destes ao vosso avô, e tentando redimir-me de velhos pecados, fui remexer no baú das velharias. De lá saíram registros de prodígios. O primeiro provindo de uma mensagem recebida do amigo Valdo: 

“No segundo semestre de 2014, dois avós se encontraram para falar da vida, de desafios e de vivências educacionais. Sentados no chão do Museu do Brinquedo do Instituto Libertad, passaram horas brincando, feito crianças, falando dos netos, contando histórias e tecendo utopias. 

O tempo que contava era só o tempo de brincar e de sentir as identidades, para além das idades. Após o longo tempo não controlado, decidiram que aquela alegria ali sentida, de avós e sonhadores de outros mundos educacionais, deveria ser compartilhada com mais amigos, que também se identificavam com o viver amoroso, fraternal e desafiador dos campos educacionais emancipatórios. 

Ali nascia a UniProsa: a universidade que versa a prosa. A prosa que humaniza e dá sentido ao viver, numa sociedade complexa e contraditória. Uma entidade educacional comunitária, informal, Intergeracional, Interexperiencial, Intercultural.

No dia 21 de março de 2015, acontecia o Primeiro Encontro da UniProsa. Assim rezava a ata da reunião: 

Após muitos afetuosos prolegômenos e rodadas de prosa, foi empossado o avô El Rei Thor Celsius Primeiro e único Magnífico Reitor da UniProsa. Nessa ocasião, fui designado pelo Magnífico Rei Thor, secretário de El Rei.” 

O amigo Valdo sofria e reagia perante desmandos de políticos, que cediam a imperativos de uma economia predadora: 

O que mudou em dois mil anos? Continuará assim a saga dos humanos, no embate entre humanidade e crueldade? Entre solidariedade e ambição? De minha parte, não. Eu sigo na trilha, acreditando que o único caminho para a humanidade é um caminho que contemple a todos!

Brevemente completarei 66 giros ao redor do sol. Atuo há mais de 40 deles numa Universidade Pública Brasileira. Nunca vivenciei antes na minha história, nem encontrei nos meus estudos de história, das outras épocas históricas da caminhada humana, um único e microscópico organismo vivo que tenha desafiado tão profundamente, no limite, todos os conhecimentos, ideologias e saberes acumulados pela humanidade. 

Estamos todos, com todos os recursos disponíveis mundialmente, enfrentando essa microscópica espécie viva: o coronavírus. Estaremos nós, humanos, ancorados em todos os diferentes conhecimentos e saberes acumulados até hoje, à altura desse desafio? Eu estou vivendo isso intensamente. Nós todos estamos vivendo isso. O sentido, a identidade, a responsabilidade e a solidariedade da espécie humana trarão a resposta e determinarão o nosso futuro!” 

Conheci o Valdo, quando ele tentava fazer da UFPR Litoral um instrumento de humanização. Ele sabia e sabe da importância da relação humana na educação e que o fim último da educação é o bem da humanidade. 

Como me fazia bem ir até Matinhos, para com ele conversar! Como foram gostosos e fagueiros os encontros na casa do amigo Celso! Os primeiros almoços bem regados, completados com música e amena cavaqueira reuniram meia dúzia de uniproseanos. Outros foram chegando e “a prosa humanizadora” se expandiu.

Quase uma década decorrida sobre a fundação da UniProsa, a reflexão sobre a “Educação Democrática e Humanizadora” permanecia central nas mensagens de WhatsApp. E o que tínhamos feito, que contribuísse para a prática de uma educação humanizadora? Para humanizar, necessário seria prosear. Mas, prosear seria condição suficiente?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXI)

Tijuca, 27 de novembro de 2043

Queridos netos, achastes “exagerada”, “virulenta” a crítica lavrada na cartinha de ontem. Carinhosamente, dissestes ser o vosso avô um “velhinho insuportável”. Pois ficai sabendo que não “exagerei”, que pequei por defeito. E, hoje, apetece-me ser ainda mais insuportável. 

Há vinte ou trinta anos, havia tabus e interditos, que ninguém ousava interpelar. Quando, nos idos de oitenta, o vosso avô se lançou na escrita de uma dissertação, desocultou alguns “dogmatismos”, que sustentavam uma precária formação de professores.  

Acompanhei o percurso académico de muitos jovens candidatos a professor. Todos passaram por licenciaturas em química, filosofia, engenharia, matemática e outras disciplinas. No final dos cursos, eram exímios no domínio da “matéria a lecionar”, mas as ciências da educação eram para eles ciências ocultas. 

Em Portugal, chamavam-lhes “setores”. Na hierarquia académica, ocupavam o patamar de licenciado. Não eram doutorados, mas exigiam que os seus alunos lhes chamassem “setôr”, abreviatura de “doutor”. Eram dadores de aula. Estavam professores, não eram professores. E não sabiam que não o eram.

Quando fui trabalhar no “ensino superior”, não me afastei do “inferior”. Os meus colegas – formadores de jovens candidatos a professores – avisavam-me que eu iria ter mais trabalho do que aquele que tinha na Ponte, mais dificuldades a “dar aula”. Estavam enganados. Na universidade, nunca precisei de planejar aula (até porque já não “dava aula”, há mais de vinte anos). 

Aqueles jovens, desprovidos dos mais elementares conhecimentos de ciências de educação, ansiavam por obter um diploma. Por isso, se submetiam à imposição de horário-padrão e à clausura da sala de aula (com obrigatoriedade de assinatura em “lista de presença”). 

Os seus professores não ensinavam aquilo que diziam. Eles transmitiam aquilo que eram, veiculavam competências de que estavam investidos. Eram pedagogicamente eruditos, autores de teses escolanovistas, arautos do pedocentrismo, mas continuavam mais magistrocêntricos do que o Coménius –~ no século XVII, esse bispo já falava de pedocentrismo.

Nessa instituição de formação, escutei desabafos de “professoras primárias” forçadas a fazer um complemento de formação, para ficarem equiparadas a licenciadas:

“Olha, Zé, todos os dias, faço três horas de estrada, para vir ouvir uns doutores a falar de “paradigmas emergentes” e outras coisas que para nada nos servem.”

Escutava-as com profunda compreensão e até ternura. No final de uma carreira de trinta e mais anos de chão de escola, aquelas mulheres sabiam mais do ato de ensinar do que os formadores. Mas, eram obrigadas a colocar num teste o Thomas Khun e a “Estrutura das Revoluções Científicas”, embora isso nada acrescentasse ao seu saber-fazer.

Nos idos de setenta e de noventa, como nos anos vinte (deste século!) a formação ia de mal a pior. À míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiavam na segurança do que melhor dominavam. Replicavam aulas em sala de aula, permaneciam cativos de um obsoleto modelo de formação cartesiano. 

Ainda havia quem ignorasse a existência do princípio do isomorfismo, quem acreditasse que a teoria precedia a prática, quem considerasse o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação. Nos idos de vinte, prevaleciam práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, feitas de competitividade negativa, das quais estava ausente o trabalho em equipe.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXX)

Rio do Ouro, 26 de novembro de 2043

Aquele “dejá vu” formativo de vinte e três nos mostrava que ainda não chegara um tempo propício à reflexão fecunda. 

Tal como nos idos de setenta, no tempo em que eu ainda acreditava poder aprender algo nos cursos que, então, o ministério disponibilizava.

Algo bizarro acontecia. Os formadores desciam da universidade (ou subiam?) ao submundo do ensino básico. Com o apoio de retroprojetor (não havia computadores), projetavam “acetatos” com as mesmas citações, que, na década de vinte, voltaríamos a ler no power point das palestras e formações.

Nos idos de vinte (deste século!), ainda não ficara para trás um tempo de congressos feitos de saliva e power point. Entre o uso do retroprojetor e o do computador, eu assistira a monótonas ou espetaculares palestras, nas quais os palestrantes citavam teóricos, reciclando lengalengas do discurso das ciências da educação. 

Conheci dadores de aula, que não conseguindo fazer, na prática, aquilo que a teoria recomendava, desistiram do chão de escola. Fizeram doutoramento, conseguiram emprego na universidade. Fabricaram power point feitos de citações e venderam palestras e ações de formação, nas quais ensinaram os formandos a fazer aquilo que eles próprios não tinham conseguido fazer.

Em 2023, eu escutei uma live, na qual uma doutorada em Vygotsky repetia as mesmas citações de uma palestra que eu a ouvira dar cinquenta anos antes. Com uma agravante: a doutora nunca pusera em prática o Vygotsky de que dizia ser “especialista”.

Com perplexidade, assistia a “lives” feitas de power point e saliva, nas quais pedagógicos eruditos (que ainda davam aula) dissertavam sobre “protagonismo discente” e outros assuntos idênticos aos de cinquenta anos atrás, mas com nova roupagem. 

Entre o espanto e a indignação, via-os lendo teoria requentada, como se os ouvintes fossem analfabetos e não soubessem ler frases projetadas numa tela. Com surpresa e desgosto, via-os ser aplaudidos pelos formandos e elogiados pelos seus pares. 

Escandalizado, eu assistia ao degradante espetáculo da venda de “planos de aula”. Na Internet, era frequente encontrar disparates como este anúncio:

“Você já conseguiu identificar quais habilidades precisam de um reforço neste ano letivo? 

Pensando em facilitar essa tarefa, para você que quer finalizar 2023 dando check nas habilidades que ainda precisam ser melhor exploradas com seus alunos, são mais de 4.000 Planos de Aula, do 1º ao 9º. 

Encontre o plano de aula perfeito para o tema que deseja, para transformar sua didática em sala de aula.”

“Em sala de aula”!… em pleno século XXI? 

Havia uma explicação para o que parecia paradoxal. Os formadores não sabiam, mas a formação era isomórfica: o modo como o professor aprendia era o modo como o futuro professor ensinaria. Se não, reparai…  

O engenheiro completava o seu curso e fazia estágio. O médico completava o seu curso e fazia estágio. Algo diferente acontecia com os candidatos a professor. Começavam o estágio, antes de fazer o curso de pedagogia. Ao cabo de doze anos de estágio feito em sala de aula, seguiam-se quatro anos de curso de formação inicial, em sala de aula. E novo estágio, em sala de aula. 

Quando, numa instituição de formação inicial, coordenava estágios, escutava enormidades deste jaez:

No estágio, somos obrigadas a seguir os planos à risca. A maior parte dos alunos não consegue acompanhar. Mas, se nós demorámos mais um bocado com um ou outro aluno, a professora dizia logo: “Minha senhora, já está atrasada cinco minutos. Olhe para o plano! Já deveria ir no exercício de aplicação.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIX)

Itaipu, 25 de novembro de 2043

Nos idos de vinte e dois, recordo-me de o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman ter lembrado aos seus conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 60 anos de existência. Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo ano de vida da universidade, tinham sido comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as omissões”. E a “Comissão UnB.Futuro” surgiu, para pensar a universidade de outro meio século. 

Na década de cinquenta, acadêmicos sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro”. Mas, o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro “A Universidade Interrompida 1964-1965”

Nos idos de sessenta, no seu depoimento na Câmara dos Deputados, Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade, que enfrentasse os desafios dos tempos presentes (estávamos na década de sessenta) e futuros:

“A Universidade atual, que vem da Universidade medieval, é uma Universidade que se alicerça sobre a ideia de fraternidade, de esforço comum, para atingir uma verdade, que não é puramente intelectual, mas uma verdade de sentimentos, de unidade entre os homens. 

O grande drama da Universidade brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são efetivamente de outros estágios educacionais e que de maneira nenhuma podemos adaptar ao Brasil.”

Nesse corajoso discurso perante a Câmara, Agostinho da Silva denunciou a falta da liberdade e da autonomia, gerada pelo “regime de medo”, que fazia com que a Universidade não pudesse cumprir a sua missão criadora. 

Em pleno “maio de 68”, num ano em que o mundo passou por profundas transformações, Agostinho vaticinava aquilo que viríamos a vivenciar, algumas décadas depois:

“Cada vez creio mais que o Brasil é de todas as nações aquela que mostra no mundo, neste momento, mais capacidade criadora, mais capacidade humana, mais possibilidade de convivência. Mas, de nenhuma maneira nós podemos ter a esperança de ter uma Universidade nova, se não tivermos um Brasil novo”.

Volvido meio século, novo “regime de medo” se instalou. Nesse tempo de negacionismo, sinais de ressurgimento criador surgiam. 

Mas, o sonho de Anísio e Darcy, não morrera. Outros insignes mestres o retomaram: Vladimir Carvalho, Aldo Paviani, Adalgisa Rosário, Isaac Roitman e outros vultos, que tive oportunidade de conhecer. A UnB “estava viva”. Contudo, resquícios de “regimes de medo” afetavam a universidade, corroendo o sonho de Darcy, ignorando a reflexão de Agostinho:  

“A Universidade não é capaz de responder mais aos anseios da juventude, que quer encontrar um estímulo de criação, alguma coisa que a encaminhe para o mundo e não encaminhe apenas para a sua profissão”.

Nos idos de vinte, essas palavras ressoavam carregadas de triste atualidade.Na academia, a formação dos educadores permanecia ancorada em práticas instrucionistas. Pagava-se muitos reais a norte-americanos, que “deram cursos” (deram aulas), para os professores “adotarem novos modelos de aula, adotarem novos tipos de aula, para que os alunos pudessem absorver melhor os conteúdos”. Peremptório, um desses professores afirmava: 

“Não dá para abandonar as aulas tradicionais de uma só vez”. 

Pois não! Nem as “tradicionais”, nem as “modernas”. 

Nas salas de aula de 2023, uma ensinagem desprovida de sentido, sem fundamento científico, reproduzia um modelo arcaico de sociedade. Caberá perguntar: Se a universidade era produtora de ciência, não deveria abandonar práticas desprovidas de fundamento científico?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVIII)

Marina da Glória, 24 de novembro de 2043

Voltava do Rio com uma estranha sensação de “dejá vú” e, num cantinho da Internet, me aguardava um textinho do amigo Matias com o título “O supermercado, a escola e a guerra civil”.

“Para evitar o desespero e criar novos entusiasmos, para libertar as iniciativas e suscitar a criatividade, acreditamos que é hoje mais razoável decidir mudar de viatura do que esgotarmo-nos a consertar um motor definitivamente desconsertado. 

A escola transformou-se num supermercado onde os adultos distribuem conhecimentos que apenas servem para ter sucesso na escola.”

Esta é a tese de Philippe Meirieu e de George Marc, desenvolvida na obra “L’école ou la guerre civile”. Segundo os autores, as escolas são hoje máquinas, que tanto integram como excluem, e os professores que escolhem a profissão não têm condições para responder positivamente à imensidão de pedidos e mandatos sociais, trabalhando no mesmo modelo (no mesmo molde) escolar.

Para evitar o stress e a depressão profissionais, a fuga da escola e o
desinvestimento na profissão, parece urgente construir um novo sentido para a escola (sustentam os autores que o principal problema da escola é o seu projeto educativo e não a carência de meios), experimentar novas formas de organizar os saberes, de distribuir os tempos e ocupar os espaços escolares,
desmistificar a “excelência” dos exames, instituir novas modalidades de trabalho docente, de aprender e praticar a democracia deliberativa que promova e consagre os direitos das pessoas (cada vez mais ameaçadas pelas novas exclusões sociais).

Trata-se, ao fim e ao cabo, de mudar de viatura porque esta está já, irremediavelmente, gasta. De mudar de paradigma porque este já nem sequer serve a ordem taylorista para que foi criado.

E só os professores – esses seres frágeis e excecionais, como tenho vindo a escrever – podem protagonizar estas mudanças. Mas para isso é preciso um projeto político forte que os envolva e mobilize. O que, desde há muitos anos, não tem vindo a acontecer.

O José Matias escrevera esse texto em 2011. E já estávamos no novembro de 2023. Durante uma dúzia de anos, os seus colegas universitários repetiram esse jargão, na génese de leis e de pareceres, sem que nada tenha mudado. Durante cinquenta anos – refiro-me ao tempo entre a dita Revolução dos Cravos e o ano de 2023 – palestrantes tinham repetido a mesma lengalenga, nos palcos dos congressos. Milhares de cursos ministrados por competentes formadores não tinham logrado mudança, muito menos inovação. Esta só surgia nos slogans publicitários e em teses guardadas nos arquivos das universidades. 

Sempre que ouvia falar de escolas “inovadoras”, de imediato, ia á sua procura. De inovação nada tinham. Não apontavam “um novo sentido para a escola”, nem nelas se experimentava” novas formas de organizar os saberes, de distribuir os tempos e ocupar os espaços escolares, desmistificar a “excelência” dos exames, instituir novas modalidades de trabalho docente, de aprender e praticar a democracia deliberativa”.

Como dizia o amigo José Matias, tratava-se, afinal, de “mudar de viatura”, porque aquela estava, irremediavelmente, gasta, de “mudar de paradigma”, porque aquele que vigorava nas escolas já nem sequer servia a ordem taylorista para que fora criado.

Talvez não por acaso, quando regressava da Marina da Glória, o amigo António, que andava observando práticas e tomando notas no chão de escolas, me ligou. Combinamos encontrar-nos na minha mátria brasileira, para repensar a Escola e tentar encontrar modos de “mudar de viatura”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVII)

Lagoa de Piratininga, 23 de novembro de 2043

Dizia-se que o Brasil era o país com mais leis. Havia quem dissesse serem elas mais de milhão. O país da Educação não era pobre em regulamentação. Infelizmente, a regulamentação da lei-mãe manifestava caráter técnico-instrumental, continha laivos de uma racionalidade burocrática, instrucionista. Na prática e em contradição com o discurso, rejeitava-se a ideia de que as escolas poderiam constituir-se em espaços coletivos de criação de novas realidades. Por força de atavismos e vícios, todas as escolas deveriam ser “iguais à face da lei”. E até onde nos conduziria essa pretensa “igualdade”?

Na busca de “resultados”, escolas particulares antecipavam as férias, “para que os professores pudessem ser preparados para as aulas online”. Empresas de ensinagem praticavam um marketing agressivo, explorando a fragilidade do sistema público de ensino, tirando partido das dificuldades sentidas pelas famílias, prometendo soluções mágicas. Inclusive, ensinando as crianças a… brincar. O asqueroso anúncio assim rezava:

“Você poderá reunir seu filho (a) e seus amigos (cada um em sua casa) através de uma sala de reunião online onde um de nossos recreadores irá comandar brincadeiras e diverti-los por 40 minutos a uma hora. É necessário que o cliente tenha um computador, tablet ou celular com boa conexão de internet.” 

Seguia-se uma lista de preços, para diferentes tempos de consumo do brincar: um preço “para 40 minutos de Recreação On-Line (até 3 crianças no mesmo local), outro para criança adicional na sala em local diferente, até no máximo 12 crianças na sala. Ou duas sessões de 30 minutos de Recreação On-Line (com intervalo de 10 minutos) etc.” O pagamento deveria ser efetivado por transferência bancária, até a data da live.

No dia em que este absurdo anúncio foi colocado na Internet, muitos educadores me dirigiram e-mails, em que manifestavam surpresa e revolta. A Carla escreveu:

“Um mundo que contrata pessoas para brincar com os filhos online!!! Quero ir embora desse planeta!!! Desculpe o desabafo.”

Respondi: 

“O desabafo é legítimo, querida amiga. Mas não vás embora do planeta, porque o planeta está carente de pessoas, de educadoras como tu.” 

A Carla não estava sozinha. Era uma “romântica conspiradora” – já vos falei deles – remando contra uma maré de insanidade, defendendo as crianças da sanha persecutória da administração educacional e dos mercadores de ensinagem. 

Talvez te recordes, Alice, das personificações, que este avô usava, para te falar de sinistras criaturas: 

“Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem ecos de infâmia. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos.”

Havia técnicos amorosos e críticos, na administração do sistema. Porém quando os Românticos Conspiradores colaboravam com a administração, esses técnicos eram intimidados, ameaçados pelos “papagaios” e proibidos de cooperar. 

A maioria obedeceu aos “superiores”. Outros “administrativos” assumiram uma atitude ética, consubstanciada em mensagens como esta:

“Infelizmente, não tenho boas notícias. Também puxaram meu tapete e, depois de muito sofrimento e reflexão, decidi solicitar minha saída da secretaria da educação. Percebi que estava cercada por pessoas incompetentes e más e não quero mais ficar num lugar onde eu não tenho espaço, apoio e autonomia para trabalhar. (…) Sinto-me envergonhada e triste por ver que a premência está em resolver coisas burocráticas e deixar a educação em segundo plano.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVI)

Inoã, 22 de novembro de 2043

Como já vos contei, há alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma “utopia” que, em equipa, íamos ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbação que eu semeava por tudo o que era colóquio ou congresso, lançou-me um desafio:

“Por que não vais desassossegar espíritos para uma instituição de formação inicial de professores?” 

Acabei por aceder ao repto. Confesso tê-lo feito por curiosidade, apenas “à experiência” e desconfiado de que não iria manter-me por lá por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas à minha irremediável tendência de (fraternalmente) provocar. 

A primeira surpresa foi a de constatar o drama de jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de docência não deixam durar muito, aderindo, entusiasticamente, às ideias do Freinet, do Dewey, do Rogers, do Freire, para que não fossem apenas matéria a decorar para os exames, nem fizessem desses egrégios autores múmias dissecadas em dissertações.

Em sucessivas fornadas, concluído o curso, lá foram em busca do projeto do seu sonho. Foram muitos os chamados e escassos os escolhidos. Dos que se perderam em opções fáceis não rezará a história, nem eu. Só lamento o tempo perdido e desejo que, um qualquer dia, venham a encontrar-se. 

Ontem, dei-vos a conhecer a mensagem recebida de um aluno que desistiu de ser professor, que optou pela “solução mais simples”. Confesso que essa desistência foi causa de grande perturbação. Ele era um jovem inteligente, generoso, idealista.

Quando a mediocridade se sobrepõe à generosidade, a indignação é coisa pouca. Sempre que me confronto com a amargura da desistência, do insucesso de um ex-aluno, sinto-me o mais miserável dos professores. O insucesso de um jovem e de um professor jovem é algo que me custa a digerir. Tanto mais que me assaltava algum sentimento de culpa. Contribuíra para a tragédia. Não fizera tudo o que devia. Falhara. 

Apesar da injeção de paliativos, o sistema ia de mal a pior. E, dado que se continuava a confundir argumentos com especulações, todos ralhavam e ninguém tinha razão. Por esse e por outros bons motivos, vinha defendendo ser inadiável criar condições para que aqueles que buscavam fazer uma escola diferente, mais fraterna, mais digna, a pudessem concretizar. Alguma coisa teria de mudar nas escolas, para que ninguém, por ignorância, preguiça, ou acomodação, ousasse “não querer” e pudesse impedir os que quisessem. 

Quantos mais verdadeiros professores teriam de desistir? Quantos mais verdadeiros projetos seriam liquidados com a chegada à escola de um “professor não sensibilizado para o trabalho cooperativo”? 

Os professores envolvidos em projetos (que não fossem apenas de papel) não procuravam a obtenção de privilégios. Bem pelo contrário: para viabilizarem a formação de equipas de projeto, muitos que conheci fizeram opções de vida que acarretaram prejuízos para a sua vida pessoal e profissional. Poderei prová-lo.

Muitos outros, por via de uma legislação obsoleta, viram ser-lhes negado o direito a participar (como diria o saudoso Paulo Freire) nos projetos dos seus sonhos, e já se aposentaram. Viram a burocracia aliar-se aos que “não queriam” e que tinham o “direito de não querer”. 

Ao longo de cinco décadas, vi o trabalho de equipas de professores ser destruído, em escassos dias, por outros professores, que, por não estarem atentos à necessidade de reelaboração da sua cultura pessoal e profissional, se mantinham cativos de uma cultura de funcionário público. 

Mas, au bout du chagrin, une fenêtre ouvert…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXV)

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2043

Perante o entusiasmo dos meus jovens alunos do curso de formação inicial de professores, pedia que, às primeiras contrariedades no exercício da profissão, não transformassem o idealismo em pragmatismo e o pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a refugiar-se no “dar aulas e manter a disciplina”, mudassem logo de profissão. Só desse modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianças e jovens que lhes coubessem em sorte educar. 

Aqueles a quem os acasos da vida conferiram coerência defrontaram obstáculos e reveses, que as escolas não são bem aquilo que vem nos livros. 

A partir de meados dos anos noventa, passei a receber telefonemas, cartas e mensagens por uma Internet, que nesse tempo nascia.

Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como professores. Outras mensagens eram restos de uma esperança dissolvida no ácido da vida real. Havia algumas em que pediam conselho, davam notícia de sucessos e, quase sempre, de insucessos. 

Em finais do século passado, um jovem aluno, um dos mais promissores entre aqueles que por mim passaram, isto escreveu:

 “Pois é, tudo tem uma razão de ser e mesmo a minha demora em responder tem razão de ser. As coisas aqui estão muito piores, infelizmente. Uma colega nossa, que está a dar apoio, tem que olhar várias vezes para o lado, porque, dentro das salas onde ela dá apoio, os profes batem nas crianças. 

Temos que continuar um bocado discretos para não termos problemas no final do ano. Toda a gente é muito simpática, mas só consegue ver um tipo de trabalho à frente dos olhos: aquele que dá pouco trabalho (pensam eles). 

Logo no início do ano pude verificar algumas coisas que me deixaram muito desagradado. Os miúdos sentam-se todos virados para a frente em carteiras individuais e começa-se o ano com três semanas de grafismos. 

Não interessa se existem miúdos repetentes dentro da sala de aula. Sugeri que se fizesse trabalho diferenciado e a resposta foi: 

“Nem pense numa coisa dessas! Você é jovem, utópico, mas isso passa… Faça o mesmo trabalho com todos.”

Se falo em criar uma associação de pais: 

“Nem pense nisso! Na escola do Manuel deu muito mau resultado. Fazemos uma reunião com eles no início do ano, faz-se duas ou três festinhas e chega.”

Falo em marcar reuniões com os pais: 

“Não dá muito jeito, porque a Dona Filomena é que fica com a chave da escola. E a senhora diretora também não gosta muito de reuniões. Sabe como é…”

Logo em setembro, dizem-me: 

“Lá para o Natal, o colega coloca os alunos que precisam de apoio numa lista, porque, assim, depois, tem desculpa para os reprovar, no final do ano.”

O que custa mais é mesmo ter de trabalhar numa sala de aula, onde nada se pode fazer de diferente. O que fazer, então? 

Tendo em conta que todos os princípios pedagógicos, que adquiri ao longo destes últimos anos contrariam frontalmente tudo aquilo que era obrigado a fazer, decidi embora. “Ter a lucidez para dar conta e ir-me embora”, lembra-se?

O ânimo com que ia para as aulas era muito pouco. Penso, sinceramente, que para trabalhar deste modo existem muitas pessoas com mais vontade e facilidade do que eu para lidar com esta situação. Sei que, se calhar, optei pela solução mais simples e que deveria ter lutado mais. Ainda tentei levantar os assuntos de várias formas, mas o resultado foi sempre o mesmo. 

Por outro lado, o que se ganha é tão pouco que se torna relativamente fácil conseguir o mesmo rendimento de outras fontes. 

Quando falou comigo, já eu tinha tomado a decisão e por isso é que fiquei meio engasgado (…)”

E a carta continuava no mesmo tom.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIV)

Bosque Fundo 20 de novembro de 2043

Creio ser oportuno fazer um pouco de história, para que uma memória tradicionalmente curta não apague  

Há uns quarenta anos, professores, secretários de educação, famílias me pediam que fizesse “uma Escola da Ponte”. Eu já lera o Darcy antropólogo e o Darcy educador. Já ia perdendo o meu etnocentrismo europeu e ajudando a desfazer mitos. Nunca faria réplicas de uma escola onde, em três décadas de resiliência e sofrimento, contra ventos e marés de maldade, tinha sobrevivido. 

Em Campinas, São Paulo, Natal, Contagem, Lajeado, São José do Rio Preto, Brasília, Belo Horizonte, Cotia e em outros lugares onde despontavam projetos com potencial inovador, logo surgiam manobras de destruição. 

Visitava escolas “montessorianas”, “waldorfianas”, “freinetianas”, “freirianas” e lá não via vestígios de Montessori, Steiner, Freinet ou Freire. O “centro” continuava a ser o professor. E, se retirássemos das salas de aula os raros vestígios de escolanovismo, precários paliativos e modismos, as práticas seriam idênticas às do século XIX, revestidas de digital. 

Começava a intuir que o aluno não seria o centro de projetos neoliberais, que não havia “centro”, mas relação. E que, no contexto de uma relação pedagógica e antropagógica, a aprendizagem aconteceria através da criação de vínculos multidimensionais.

Para tal, seriam, gradual e prudentemente, erradicados dispositivos sem sentido, como sala de aula, turma, carga horária, prova etc. A implantação de círculos de aprendizagem marcaria a transição de um ciclo de mudança para um ciclo de inovação, apoiada numa rede de espaços de referência, para “imersões”, facultar “vivências” formativas. 

Estando assegurada a sustentabilidade legal e científica dos projetos, as práticas fundamentar-se-iam naquilo que de útil identificássemos nas propostas fundadas nos paradigmas da instrução, da  aprendizagem e da comunicação, contemplando o desenvolvimento no domínio pessoal e sócio moral, apoiando a redefinição do papel do professor, na transição entre o modelo “tradicional” e  uma profissionalidade assente na prática do “designer  educacional”, através de projetos de produção de vida e de sentido para a vida. 

Estaria assegurado o crescimento do educando em todos os aspetos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que pudesse atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspetiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integrava.

Apesar das precárias condições de intervenções iniciais, concretizou-se a introdução de tutorias, bases de reconfiguração das práticas escolares, bem como contatos dialogantes com famílias e comunidade. 

Por essa altura, em Portugal, acreditando nas boas intenções de um ministério, professores e comunidades se movimentavam. O Governo assumia como prioridade a concretização de uma política educativa centrada nas pessoas, que garantisse sucesso educativo e igualdade de oportunidades. Reconhecia que “nem todos os alunos veem garantido o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo”. 

No Brasil, era preparado mais um Plano Nacional de Educação. Tentava-se que os “sete eixos” do novo PNE não tivessem o mesmo destino das “vinte medidas” do plano anterior (que não tinham sido cumpridas).

Estavam reunidas as condições para uma adequação gradual a novos modos de conceber e fazer educação, transformando as escolas em espaços de produção de conhecimento e cultura, conectando os interesses dos estudantes com os saberes comunitários. 

 

Por: José Pacheco

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