Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIII)

Brasília, 19 de novembro de 2043

Netos queridos, em outra cartinha, falei-vos de alguns “impactos” sofridos no início da profissão de professor. Como quando aceitei o convite para trabalhar numa universidade, esperando vir a aprender algo que me permitisse melhorar o trabalho que ia sendo feito na Ponte. 

Ledo engano! No primeiro dia de formador, joguei no lixo os papéis encimados pela expressão “registos de presença”. No projeto (escrito) daquela instituição estava escrito que se pretendia “formar professores autônomos e responsáveis”. Como se poderia atingir esse objetivo impondo instrumentos de controle?

Não tardou que enfrentasse animosidade, pois havia alunos, que faltavam às “aulas” de outros professores controladas por registos de presença, para participar nos meus encontros de aprender a ser professor. 

Chegaram notícias de destrutiva crítica, provindas de professáurios, que diziam ser o meu trabalho “uma porcaria” e que ameaçavam os alunos de “reprovar por faltas”. Pedi aos alunos que convidassem esses críticos para um debate franco, através do qual provassem que “dar aula” era o certo e que o meu modo de fazer aprender estava errado. Nunca aceitaram o convite. 

Não conseguia conter a minha perplexidade. Os meus colegas diziam ser montessorianos, freinetianos, escolanovistas… Mas, mais tese, menos tese, mantinham-se tão instrucionistas quanto os meus antigos mestres.

Quando propus desenvolver uma avaliação formativa, contínua e sistemática, com recurso a portfólio, fui surpreendido por um fenômeno, que considerava erradicado. Os meus alunos entregavam-me “trabalhos de pesquisa” enfeitados com citações do tipo: “segundo fulano, conforme Piaget, Vygotsky disse, beltrano disse”

Eu devolvia os textos, dizendo que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram pesquisas, eram cópias. E que eu não era fofoqueiro, não me interessava saber aquilo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes, a produção de conhecimento.

Chegada a era da Internet, reinterpretei o fenômeno. Deparei com o copy past digital, que não dotava os professores de um saber-fazer fecundante de práxis coerentes, nem os habilitava a argumentar num espaço de debate transformado em terra de ninguém. 

A breve passagem por essa instituição de formação foi tempo suficiente para que eu compreendesse por que razão os professores só sabiam replicar aulas. Amiúde, os professores da formação inicial citavam Schön e o amigo Nóvoa, dizendo serem os professores profissionais intelectuais, reflexivos e críticos das suas práticas. Mas, cadê esses profissionais?

Quando recusei “dar aula” naquela faculdade, chegaram a insinuar “prescindir” da minha presença na instituição. Não “prescindiram”. E, quando, ao cabo de meia dúzia de anos, tomei a decisão de ir embora, muitos colegas me pediram que ficasse. 

Quiseram saber o porquê da minha irredutível decisão.

“Vou embora, porque é intenso o “fogo amigo”. E eu não tenho vocação para o martírio”.

Nos anos seguintes, foram muitas as modas pedagógicas adotadas pelos formadores. Houve um tempo em que as vedetas eram as “taxonomias”. Depois, a “pedagogia dos projetos”. Na transição de século, o “empreendedorismo”, a “cultura maker”, o “ensino híbrido”. Mais tarde, a “educação integral” e as “neurociências”. Nos idos de vinte deste século, as escolas continuavam a enfeitar-se de “novidades” em tudo semelhantes aos paliativos cultuados no século XX.

A contragosto vos narro estes fatos. Nas próximas cartinhas, vos falarei de reinvenção, da humanização do ato de educar.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXII)

Mendes, 18 de novembro de 2043

O 12º ENARC foi um separador de águas, uma espécie de balanço de erros e fracassos, juntamente com uma vontade indômita de recomeçar. Foi tempo de distanciamento crítico – o que tínhamos andado a fazer, ao longo de cinquenta anos? 

Enquanto uns tantos, teoricamente, debatiam mudança e inovação, outros as vivenciavam no chão de escola. Eram dois submundos paralelos, que urgia religar. Um currículo eurocêntrico jamais questionado obstava a que se praticasse Darcy. Concursos e premiações como a do “Professor do Ano” eram reflexo de uma cultura profissional feita de solidão e de autossuficiência. Na era das “palestras”, se replicava “lugares-comuns” num discurso pedagógico vazio: 

“Práticas pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI”; “pensamento crítico e autoria; “atender a diferentes ritmos e necessidades dos alunos”; “educação integral”; “trabalho autónomo e diferentes estilos de aprendizagem centrados no aluno.” 

E cadê o “centro no aluno”?

Empresas oportunistas recorriam a um marketing feito de falsidade, repleto de jargão científico e citações de autores consagrados: 

“O professor gere o currículo, estabelece o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem; “estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas”; “uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente”; o professor partilha com os seus pares as estratégias, recursos e práticas, como profissional reflexivo, comprometido e empenhado com a sua profissão.”

E cadê o “profissional reflexivo”?

E por aí seguia o relambório, confirmando que a sofisticação do discurso contrastava com a miséria das práticas. 

Foi nesse contexto que recuperamos uma “carta de princípios” de que a minha amiga Carla fora incentivadora e coautora, nos primeiros tempos dos Românticos Conspiradores”: 

“A educação, que prepara para a democracia deve se dar através de práticas não-autoritárias, que permitam a ampla participação de educandos, dos educadores, das famílias e da comunidade. Só é possível uma educação para a ação cidadã, se a educação for pela e na ação cidadã. As práticas educativas promotoras da liberdade, autonomia, respeito, responsabilidade, equidade e solidariedade, devem estar associadas aos princípios anteriores, para permitir que atinjamos o objetivo maior: a autorresponsabilização social.”

Repetimos o convite formulado na apresentação do Terceiro Manifesto da Educação, apresentado pelo RC na primeira CONANE, a se 2013:

“A você, que ama a educação e concorda que é possível fazer uma educação diferente da que aí está, fazemos um convite: Arregace as mangas e venha desdobrar o Manifesto pela Educação em ações concretas, que beneficiem nossos estudantes, suas famílias e a sociedade brasileira.”

Tinham passado dez anos. À semelhança dos dois anteriores manifestos, também o terceiro não lograra fazer “arregaçar as mangas”. 

Dez anos foram perdidos? 

Não. A criação de círculos de aprendizagem e protótipos de comunidade propiciaria uma efetiva educação integral, contemplaria a multidimensionalidade da experiência humana – afetiva, ética, sócio emocional, cultural, intelectual, espiritual. 

Grupos de Trabalho aprovaram minutas de contratos e termos de autonomia. Gozando de efetiva e responsável autonomia, revistos os regulamentos e os regimentos, professores ajustaram as suas práticas ao teor dos projetos das escolas e a novos modos de conceber e fazer educação, integrando-se culturalmente, e articulando os saberes escolares com os saberes comunitários. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXI)

Mendes, 17 de novembro de 2043

Sempre que alguém a mim se dirigia, pedindo ajuda, eu indicava um rumo. Aos professores, o rumo da assunção de um compromisso ético. Aos pais, um outro rumo – o da escola mais próxima:

“Faça a matrícula do seu filho. Leia o projeto da escola e procure um professor que ainda esteja vivo. Ajude-o. Cuide do seu filho… e do professor.”

Os professores são como os melões. Só os conhecendo por dentro se pode avaliar da sua qualidade. Quando nos deixamos conduzir pela aparência, a surpresa pode ser bem desagradável. Quebrado o verniz da casca, uns revelam-se maduros, outros verdes, outros… quase podres.

Estava cogitando sobre essa matéria, quando a Esperança me telefonou, para me doar mais um pouco de esperança. O amigo António dizia que ela era a última morrer e eu retorqui que a esperança nunca morreria. Felizmente, para as crianças e para os apreciadores de melões, nesse tempo, abundavam esperançosos frutos maduros. 

A Esperança era educadora. Fazia um belo par com outro educador (ledos infantes que a quem tais educadores cabem em sorte!). Como não é por acaso que há acasos, as palavras da Esperança chegaram no momento exato de dever esquecer criaturas que, de tão amargas, não deveriam usar o nome “professor”.

A palavra “professor” só se ajustava na perfeição à Esperança e a muitos outros que, assumindo um compromisso ético,  honravam a sua nobre profissão. 

Eram educadores como a Esperança e o Paulo os coautores de uma reforma marginal, silenciosa, que ia acontecendo um pouco por toda a parte, avessa às modas, impercetível, pródiga em profissionais que antecipavam o tempo profetizado por Tolstoi, há quase dois séculos: 

“A Escola deixará de ser talvez tal como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa”. 

À medida que se aproximava o termo da minha carreira de professor, sentia-me irmanado com os que recusavam aprender a geografia dos comboios para viver na era dos aviões e aceitavam o desafio de repensar a Escola, tarefa sempre coletiva. 

Sentia-me parte de uma fraternidade, agindo à revelia da bricolage normativa. A pedra de toque da suave mutação era a solidariedade manifesta nos encontros anuais dos Românticos Conspiradores. O 12º ENARC (Encontro Nacional) aconteceu na Mendes da minha amiga Maria Paula, nos idos de novembro de vinte e três. O Mauro e a Valéria assumiram a componente organizativa. A equipe da secretaria de educação, brilhantemente, acolheu os RC. 

Catorze anos decorridos sobre o primeiro dos encontros, estavam presentes o Guga e eu. Sobre as cinzas de dezenas de projetos, uma nova e ágil geração despontava. Mas, quem eram os RC?

No início do século, publiquei um artigo no suplemento Sinapse do jornal Folha de São Paulo. A certo passo, escrevi:

“É preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia era realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia”. Esse artigo foi pretexto para alguns encontros de educadores das escolas “invisíveis”, como eu lhes chamava. 

O movimento Românticos Conspiradores constituiu-se a partir de uma rede colaborativa, formada por pessoas que buscavam a transformação da educação pública. A finalidade era a de promover a comunicação e o apoio mútuo entre pessoas, organizações e projetos, que tivessem por objetivo contribuir para a superação de arcaicos paradigmas educacionais.

 

Por: José Pachceo

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXX)

São Gonçalo, 16 de novembro de 2043

Num novembro auspicioso, acompanhei a Vovó Ludi, na primeira das visitas à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Campus de São Gonçalo.

Recebera da Sueli o convite para a visita. A Sueli que havia participado no mesmo grupo de trabalho que, em 2014, a pedido do ministro Renato Janine, inventariou 178 escolas com potencial de inovação. 

Já tinha ouvido falar de gente que, na UERJ, buscava novos caminhos para os descaminhos em que a Educação, nesse tempo, se perdera. Mas, o que sucedeu no encontro de 15 de novembro de há vinte anos excedeu a minha expectativa. Estava perante professores e alunos decididos a interpelar práticas ancestrais e a rever processos e metodologias de formação de professores.

Deixei-os com um convite. Melhor dizendo, dois convites. O primeiro: que se estabelecesse um diálogo, no qual a equipe de educação humanizada, em que me incluía, pudesse auscultar necessidades, saber quais as necessidades por detrás das necessidades, desenvolver teoria e aplicar “soluções”. O segundo: que se criasse uma turma-piloto, gérmen de uma escola de aplicação de… “soluções”.

Recordo com ternura o início desse encontro, a passagem do enfileiramento para a disposição das cadeiras em círculo. Com ternura, porque a inusitada situação me fez lembrar tempos idos. 

A disposição do mobiliário era de somenos importância. Já havia observado boas práticas (de transição) em salas de aula onde se praticava o enfileiramento. Por outro lado, assistira a arremedos paliativos, em “espaços de aprendizagem” (como indevidamente lhes chamavam), com as mesas dispostas em círculo e semicírculo.

No início dos anos setenta, enquanto professor do turno da tarde, com os meus alunos, eu cumpria o ritual da passagem do sentar enfileirado para o sentar em círculo. 

Não tardou a reprimenda da colega mais antiga, que, por ser a mais antiga, detinha prioridade na escolha de turno:

“Senhor Professor, deixe ficar as carteiras na posição normal!”

Assim mesmo: a mensagem escrita no quadro era imperativa. Com respeito pela “antiguidade”, por baixo da ordem dada, deixei esta pergunta:

“Colega, diga-me qual é a “posição normal.”

Na reunião do Conselho Escolar seguinte, o ambiente era de “cortar à faca”. Passei a constituir um incómodo para aquelas professoras, eu era “persona non grata”. Sofri um ano inteiro de insinuações, injustas acusações e outras “violências simbólicas”. Aquele foi o primeiro impacto com uma cultura de escola passadista, com um submundo feito de ignorante arrogância.  

Sofri o segundo impacto, quando, numa escola dos cafundós de Portugal, uma professora propagou um boato e eu quase fui assassinado. Compreendi que o maior aliado de um professor é outro professor. Mas, também, que o maior inimigo de um professor que ousa questionar é outro professor. 

Sofri o terceiro impacto, quando fui trabalhar numa instituição de formação inicial de professores. Recebi um presente envenenado. Logo à chegada, entregaram-me umas folhas contendo os nomes dos alunos com quem iria interagir. Perguntei para que serviam aquelas folhas. Responderam que eram registos de presenças, que os alunos deveriam assinar à entrada e à saída de cada aula. Perguntei:

“Aqui, ainda se “dá aula”? Esta não é uma “escola superior” de formação de professores? No projeto desta escola está escrito que se pretende formar professores autónomos, responsáveis. Como se desenvolverá autonomia numa sala de aula? Como se desenvolve nos futuros professores a responsabilidade, se eles são sistematicamente controlados?”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIX)

Manaus, 15 de novembro de 2043

Numa velha rede social dos anos vinte, o meu amigo Celso publicou versos de um poeta recentemente falecido. Foram escritos por Thiago de Mello, na parede da cela de uma prisão do tempo da ditadura:

“Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar / Vem ver comigo, companheiro / a cor do mundo mudar.

Vale a pena não dormir para esperar / a cor do mundo mudar.

Já é madrugada / vem o sol, quero alegria / que é para esquecer o que eu sofria.

Quem sofre fica acordado / defendendo o coração / Vamos juntos, multidão / trabalhar pela alegria / amanhã é um novo dia.”

Tinham decorrido mais de quarenta anos, quando, num fim de tarde brasileiro, reparti com o autor do poema uma mesa de congresso. 

As palavras daquele homem todo vestido de branco fizeram com que eu regressasse aos idos de sessenta, quando, num escuso recanto de uma livraria “alternativa” (de oposição à ditadura de Salazar), encontrei um poster com “‘Os Estatutos do Homem’. 

Pendurei-o no meu quarto de dormir. Para ele olhava, todas manhãs, durante cerca de dez anos, até que o papel amareleceu e já quase era possível ler os “Estatutos”. Também já não precisava. Tinha decorado o texto. Em momentos críticos, ele saía de mim para a prática quotidiana. 

Quando, no Brasil, se esboçava o espectro da ditadura, em Portugal já sopravam ventos de liberdade. E o poema do Thiago me acompanhava em todos os lugares onde eu ia e onde uma autora de liberdade, de dignidade, emergia de quase meio século de podres poderes.

Em 2004, meio século após o início da ditadura e da escrita dos “Estatutos”, Thiago de Melo publicava o seu último livro de poemas. Á beira do rio Andirá, na floresta, onde quis viver e morrer, ainda preparava dois livros de prosa, porque, há muito tempo já, avisara:

“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar”

Nesse mesmo ano, estava implícita na “carta de princípios” dos Românticos Conspiradores uma ideia de comunidade, de aprendizagem compartilhada, de práticas colaborativas. Muitos núcleos de prática surgiram. Estou a lembrar-me, por exemplo, do núcleo “Quero-Quero” do Rio Grande do Sul, onde a “docência compartilhada” era prática diária. Os RC recriavam espaços de vida em comum e o segundo dos princípios dos RC – “Educar-se em Solidariedade” – era disso evidência: 

“A educação é um processo relacional, possuindo um caráter social que deve ser assumido nas práticas educativas. 

A solidariedade, mais do que um objetivo ético a ser atingido, é uma condição primordial para a realização do trabalho educativo. Portanto, este só se desenvolverá plenamente, se considerar e incluir as diversas relações entre todos os atores envolvidos: educandos, educadores, gestores, famílias e comunidades. 

No caso da escola, é indispensável que abra suas portas à comunidade, a fim de constituir-se em polo integrador e irradiador do saber e do esforço social pela educação.”

Em 2023, os Românticos Conspiradores organizavam o seu décimo segundo encontro nacional. E continuavam animados do espírito dos Estatutos “decretados” pelo poeta Thiago: 

“Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento.

O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente, como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVIII)

Mendes, 14 de novembro de 2043

O Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores se aproximava e as palavras da nossa amiga Tina davam o mote para o que nesse ENARC viria a ser esboçado: uma nova construção social de aprendizagem. Escutêmo-la, num saboroso texto datado de novembro de há vinte anos:

“Anísio Teixeira é o “pai da escola pública”, dizia que a escola não deveria adestrar alunos para passar em testes. Foi assassinado.

Paulo Freire combateu a educação bancária. Foi perseguido e exilado.

Maria Nilde Mascellani defendeu a integração entre escolas e território. Sofreu difamação e foi perseguida.

Rubem Alves defendeu escolas que são asas e combateu escolas que são gaiolas. Foi perseguido e exilado.

Pestalozzi, educador da humanidade, defendeu que a aprendizagem parte do concreto para o abstrato. Foi humilhado.

Darcy Ribeiro defendeu a democratização do ensino público. Foi perseguido e fracassou em tudo que fez.

Atuar pela transformação da educação é uma profissão de risco, pois mexe com as estruturas de poder. Quem quer uma população com pensamento analítico, crítico e criativo?

É uma profissão de risco, sujeita a perseguição, conchavo, humilhação e difamação, manipulada por quem tem poder, por invejosos maus-caracteres, mais interessados em “sair bem na foto”, do que em, verdadeiramente, transformar a educação.

Em escolas de salas de aula seriadas, com ensino padronizado, conteudista e instrucionista, com crianças emparedadas, enfileiradas e uniformizadas, com saberes fragmentados em matérias, apostilas e materiais didáticos com uso padronizado e sequenciado, com professores isolados, controlados e controladores, se reproduz a educação bancária, permanecendo os professores os detentores do saber, com “boas práticas” como: educação sócio emocional, inclusão, combate ao bullying, projeto de vida, escuta empática, gamificação, robótica, maker, tecnologias as mais diversas, metodologias ativas e educação (em tempo) integral… “Boas práticas”, que, não passam de “cortina de fumaça”, paliativos que desviam o foco do que realmente precisa ser modificado nas estruturas do sistema educacional.

Será que é ignorância ou desonestidade?

A cada 100 adolescentes que concluem o Ensino Médio, somente 5 apresentam níveis satisfatórios em matemática. 95% dos alunos terminam sem o conhecimento esperado de matemática.

É básico para qualquer pesquisador saber a diferença entre uma pesquisa qualitativa da quantitativa. A educação deve ser a única instituição que mede a qualidade pela quantidade, fazendo do volume uma falsa demonstração de qualidade. São investidos milhões com palestras, formações continuadas, materiais didáticos, equipamentos tecnológicos etc. E a Educação continua como sempre foi.

Os paliativos são muito desejados pelo poder público, pois trazem um floreado suave, agradável e a certeza da preservação de todos na Zona de Conforto. Servem para disfarçar o desperdício de vidas e a morte de potências criativas.

Quantas crianças alegres, curiosas, exploradoras, viraram bagaços humanos na adolescência, desinteressados, depressivos e com pensamentos suicidas?

Quantos professores sonhadores, idealistas e com muita garra, adoeceram ao se perceberem péssimos aplicadores de apostilas?

A educação está escandalosamente custosa de vidas.”

Vinte anos decorridos, me apercebo de que o texto da amiga Tina poderia ser utilizado como documento-base do encontro, pois era como um “grito de alerta” de alguém que dedicara toda a sua vida ao bem-estar da infância desvalida.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVII)

Camboinhas, 13 de novembro de 2043

Como referi na cartinha de ontem, foram muitas as vezes que disse a professores portugueses e brasileiros que lhes faltava amor próprio tanto quanto sobrava a síndrome do vira-lata e um sentimento de inferioridade relativamente ao estrangeiro. Foram muitas as vezes que pude testemunhar o quanto a melhor educação estava nos dois países onde me foi dado viver, e me desgostava que os professores portugueses e brasileiros desconhecessem a vida e a obra de uma extraordinária plêiade de educadores pátrios.

Haveria explicação para tal fenómeno? Após eu ter descrito a colegas austríacos os feitos de Jacob Rodrigues Pereira, apercebi-me de que a explicação estava a ser dada em alemão, pelos olhares indignados que sobre mim pousavam.

Calei-me. Senti-me penitente de pecados que não cometi e herdeiro de ignomínias. Caía inteiro sobre mim o peso do opróbrio, uma maldição que sucessivas gerações não apagaram. O cicerone, que apresentou a instituição de Viena referia estar Jacob sepultado no cemitério hebraico de Villette, em Paris. E algo se partiu cá dentro. 

Talvez inconscientemente, eu ocultara a dura realidade da diáspora judaica. Jacob Pereira, português, natural de Peniche, fora forçado a fugir de Portugal, para escapar às garras da Santa Inquisição. 

Efetivamente, o nosso país foi berço de génios que não mereceu, desde os filósofos judeus que se refugiaram nos Países Baixos – o caso de Spinoza – até aos que, não sendo judeus, foram eles próprios e pagaram pela ousadia. 

No encontro de Leiria, me reconciliei com tristes memórias, quando escutei falar de Pedro Demo. Esse extraordinário educador e amigo era citado por educadores portugueses. E, após vinte minutos de fala, durante as quais fez mais de vinte citações sobre educar pela pesquisa em novos ambientes de aprendizagem, a formanda finalizou a apresentação, dizendo:

“Peço desculpa de não saber dizer mais. Sou apenas mãe e enfermeira.”

Coube a outra formanda – dessa feita, professora – contar a estória de mais um insigne educador vivo. Começou deste modo:

“Vede se adivinhais qual foi o meu autor…” – e projetou slides com frases de Fernando Pessoa.

“Eu não conhecia este autor. E adorei estudá-lo.

A mão dele era analfabeta

Já conta 90 anos. Está bem vivo. É o Manuel Sérgio!”

Com a alegria estampada no seu rosto, continuou a descrição da vida e obra do Manuel.  

“Foi um estudioso da motricidade humana. Criticava o ensino de educação física dos anos sessenta e dizia que o homem não é meramente físico, é uma pluralidade bio-socio-psíquica, vivendo em interdependência. Também dizia que a transcendência é o sentido da vida.

Afirmava que não há desporto sem ética, sem valores. Que estamos na sociedade do espetáculo e do consumismo. E que o Papa Francisco dissera “Esta Economia mata.”

“Consegui encontrar uma tese sobre ele. O Manuel Sérgio inspirou o treinador Mourinho. Defendia que um treinador deveria ser um educador. E denunciava o que chamava de “maior drama do seu país”: o dos idosos sozinhos, nos asilos.”

“O que mais vos tocou no discurso deste homem?”

E se estabeleceu o diálogo.

Antes do intervalo, ainda houve tempo para ouvir falar de Coménius, que, em 1592, propunha uma educação para todos, no tempo de aprender de cada um, mais a interdisciplinaridade e a aprendizagem ao longo da vida

“Andamos, há mais de quinhentos anos a falar do mesmo. É frustrante. Bom! Quem quiser saber mais, tem aqui um documentário.”

À saída, sorrindo, uma formanda reproduziu uma situação típica das escolas desse tempo:

“Senhor Professor, posso ir fazer xixi? Posso?”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVI)

Inoã, 12 de novembro de 2043

No encontro de Leiria, se falou de insignes educadores portugueses e brasileiros. de personagens da história da educação, de que muitos educadores desconheciam a existência. Escutei uma enfermeira falar de Bento de Jesus Caraça – uma enfermeira!

“Como dizia Bento de Jesus Caraça, “há sábios que não são homens cultos e, por isso, estou sempre pronto a corrigir os meus erros.” 

Esse eminente pedagogo defendia o direito de acesso universal aos bens culturais. E que, para que o povo pudesse ter uma visão geral do mundo e das suas vidas, os bens culturais deveriam de preço baixo e usar de uma linguagem ao alcance de todos.”

Bento nascera em 1901. Aprendera as primeiras letras ensinado por trabalhadores do campo. E alcançara o estatuto de professor catedrático aos 28 anos. Por estar associado a movimentos antifascistas, foi preso, torturado e impedido de lecionar.”

Nos idos de oitenta, no período da adesão à Comunidade Económica Europeia, eram frequentes os congressos de educação, para os quais cada país da “Comunidade” enviava os melhores dos seus projetos. 

Na Paris de 1985, a Ponte foi reconhecida como o melhor dos projetos dos doze países europeus presentes num desses encontros. Em 1996, na cidade de Viena de Áustria, visitei uma famosa instituição. No átrio do vetusto edifício, três enormes telas prenderam-me a atenção. Do lado esquerdo, a figura austera do Imperador Francisco José. Na tela da direita, a delicada fragilidade do imperatriz. Entre ambos, um quadro que refletia um desgaste de séculos. 

A luz do sol, ainda que filtrada, esbatera os tons vivos, restava a pálida dignidade da figura: um homem de ar grave e dócil postura. Quem seria? Que feitos lhe granjearam a honra de estar ladeado de imperadores? Talvez um relevante político austríaco do século XVIII ou XIX, talvez um pedagogo austríaco de nomeada. 

Aproximei-me, coloquei-me em posição de leitura da inscrição em letras góticas douradas. E ali estava um nome quebrado pelas fendas que o tempo imprimiu no verniz: Jacob Rodrigues Pereira. 

Senti que um insuspeito patriotismo se apossava de mim. Ao meu lado, professores de outros países liam a esbatida inscrição do quadro e interrogavam-se sobre quem seria aquela personagem. Antes que o cicerone se adiantasse, eu respondi – confesso que com uma pontinha de orgulho – tratar-se de um pedagogo português, que viveu no século XVIII e que dedicou a sua vida à educação de crianças surdas. 

Para alguns visitantes, tão ávidos de informação como reverentes perante o relevo concedido pela instituição ao dito pedagogo, acrescentei – em inglês e em francês, como mandava a circunstância – mais algumas curiosidades. Que, perante os prodígios operados por Jacob R. Pereira, o rei Luís XV lhe concedera uma pensão avultada, que uma academia francesa se rendera aos seus méritos, que fora repetidamente elogiado por sábios como Buffon, que o pedagogo português – e eu sublinhava a palavra “português” – publicara (em 1762) o estudo “Observations sur les sourds-muets”, que… 

Ali estava eu, português, professor, a reivindicar glórias pátrias. Mas, a mais de dois mil quilómetros de distância, quantos portugueses, quantos professores conheceriam sequer o nome e a obra de tão insigne pedagogo? 

Há mais de duzentos anos, Jacob Rodrigues Pereira disse, por exemplo, o que Piaget haveria de repetir muito mais tarde: que a inteligência (também) passa pelos sentidos. Sem retirar importância à obra de Piaget – em pormenor abordada em compêndios e teses – alguém saberá explicar por que se ostraciza o que é nacional e é bom?

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXV)

Murches, 11 de novembro de 2043

Decorria o mês de novembro de há vinte anos, num Verão de São Martinho mortiço, com suspeitas de corrupção em órgãos do Governo e no rame-rame  da rotineira escola, cenário habitual num país-jardim à beira-mar plantado.

Voltei a Lisboa na agradável companhia da Rita, do Pedro, da Paula Cainço e da Paula Gaspar. Mais uma vez, encontrei abrigo e calor humano na casa dos meus amigos António e Elisa, com um chazinho bem quente a acompanhar. 

Na manhã seguinte, voltaria ao Brasil, levando na bagagem boas recordações. Nos encontros de amigos, partíramos daquilo que nos era familiar, próximo, para um exercício de memória e uma pergunta: o que gostaríamos de ser, quando fôssemos crianças?

A ação de formação de que, ontem, vos falei, decorria “ativa, diversificada e socializadora”. Conversamos sobre a escola que foi a nossa escola. Ali, não havia objetos a capacitar, mas sujeitos de uma aprendizagem “integradora e significativa”, braço erguido, pedindo a palavra, emocionadas evocações de educadores que, em tempos idos, mudando de escola. deixaram projetos pelo caminho… e os retomavam. Com a Vovó Ludi, eles eram a última oportunidade de acreditar. Eu esperava que acreditassem, que fossem a geração do agir, do fazer. 

Na sala de aula da universidade, a Maria ensaiava novos modos de ensinar e aprender. E escutava: 

“Então, a professora não vai dar aula?

“No século XXI, já não se dá aula, caro João” – respondia a Maria.

Naquele dia de formação em equipe, a aprendizagem acontecia, sempre que se comunicava, para partilhar aprendizagens.

“O que aprendemos? O que iremos fazer com isso?” – A Paula redescobria em Nise da Silveira a origem da arteterapia, as razões da incompatibilidade com processos da sociedade psiquiátrica. culminados na lobotomia e nos maus-tratos de Barbacena, na prisão de Nise às ordens de Vargas, quando uma enfermeira a denunciou. 

Em Leiria, educadores portugueses falavam do Engenho de Dentro da década de trinta, de uma carta a Carl Jung, da criação de um museu de imagens do inconsciente, dos feitos de Nise. Na outra margem do Atlântico, educadores portugueses citavam Nise:

“Todo mundo tem um pouco de loucura.”

“Não sou filantrópica. Sou curiosa do abismo.”

E agradeciam:

“Muito obrigado! Não conhecíamos Nise da Silveira.”

Falava-se de “inventários de valores, de círculos de vizinhança, de “parcerias” (escapando à estapafúrdia moda do uso de anglicanismos como “stakeholder”), se descrevia o modo como se fizera levantamentos de potencial educativo das comunidades.

“Colocamos a “lupa” à volta das nossas moradas, reunimos no círculo de proximidade, investimos numa escola próxima, reunimos na Mata de Marrazes, toda a manhã a conversar, ideias a borbulhar. O que poderíamos fazer pelos nossos filhos e pelos filhos dos outros?”

“Descobrimos que temos vizinhos. A minha vizinha do lado tinha um abacateiro. O marido o tinha plantado. “Não sei para que serve” – disse a minha vizinha. Eu peguei num saco e o enchi de abacates.”

“Olá! Criámos um logo, para sentirmos a alegria da tribo. Que tal? Pusemos no ChatGPT os nossos valores… saiu uma pintura” – junto a esta cartinha a “pintura”, que guardei, durante vinte anos, junto de outras maravilhas que o encontro de Leiria me ofereceu – “Definimos os valores da Semente e, agora, estamos a trabalhar com a comunidade, em círculos de vizinhança. 

Criamos um site. “Fomos à Biblioteca Jose Saramago. Saímos de lá às dez da noite. Perguntaram-me “Por que estais ali tantas horas?”

“Porque estamos juntos. Porque ainda há meninos com olhos brilhantes.”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIV)

Leiria, 10 de novembro de 2043

De manhã, bem cedinho, o amigo João me levou da Foz do Arelho até Lisboa. No dia anterior, a Rita me levara para as Caldas, para um auspicioso encontro. 

Este vosso avô continuava tão andarilho como dantes. Porém, convicto de que uma nova geração de educadores (pais, professores, gestores) iria, em breve, prescindir dos meus préstimos e eu poderia (enfim!) descansar.

Depois de um belo repasto e de agradável conversa regada a tinto da casa, na casa da Magda e do Bernardo, lá fui até Leiria. À chegada, a incansável Andreia me esperava, com um farnel a preceito, para que o vosso avô não fosse dormir com o estômago vazio. Eu não tinha casa nem dinheiro, mas era rico de amigos. Seguiu-se um sábado de boas surpresas. 

Em 1996, eu havia desistido de fazer formação. Em 1992, tinha criado o primeiro centro de formação contínua e também tinha o primeiro alvará de formador e de consultor de formação. Eu me senti como o maior responsável pelo caos instalado na formação. 

O Centro de Formação da Associação PROF realizava, única e exclusivamente, círculos de estudo, enquanto os cardápios de outros centros eram preenchidos com velhas modalidades, como o curso, o módulo de curso, seminário, estágio. Chegados a meados dos anos noventa, a formação era uma grande mentira construída sobre vinte milhões de euros. E eu não poderia pactuar com mentiras.

Mas, há vinte anos, educadores da região de Leiria me levaram a preparar uma ação de formação. Com a Hélia, concebi um círculo de estudos. Voltei à formação.

“Professor, está mais animado?”

À primeira pergunta respondi afirmativamente. E o que se seguiu me animou ainda mais.

Partimos do contexto de uma sala de aula da Escola Superior de Educação de Leiria. E, num sábado de há vinte anos, a avaliação da formação foi um ato de partilha de descobertas. 

Consegui ficar seis horas saboreando evidências de aprendizagem, sem abrir a boca, sem julgamento, nem questionamento. Apenas escutando com enlevo e respeito manifestações de uma nova profissionalidade, de uma nova consciência e da prática de necessária mudança. Tinha sugerido que estudassem autores que, de algum modo, tivessem influenciado essa prática, dado que não há prática sem teoria e todos deveriam saber fundamentá-la cientificamente. E as apresentações abriram com… Paulo Freire.

“Antes e durante sermos professores. nós somos pessoas. Freire no disse. Somos todos aprendizes.”

Em seguida, uma Montessori, que foi médica, psicóloga e má aluna, pois só aos treze anos conseguiu completar a instrução primária. Biografia exposta, a par de relatos de trabalho em equipe de professores e pais, vídeo e dramatizações a acompanhar a descrição dessa educadora exemplar, manifestações de criatividade na formação. E o convite:

“Então, colegas, quereis falar? Perguntar?”

E o diálogo corria solto e formativo. O pai Michael até propôs um exercício de “olhos fechados”, com recurso ao “ChatGPT”. Agostinho da Silva foi por ele estudado:

“Agostinho renunciou a bens materiais e incitou ao uso livre da liberdade. Fui à biblioteca da Carreira. Pesquisei. Não encontrei um livro sequer sobre Agostinho. Na Internet, assisti a um filme sobre ele. Entendi o porquê da Festa do Espírito Santo. Agostinho fez-me viajar.”

E, mais adiante:

“Os professores têm falta de poder. Se as crianças aprendessem com liberdade construiriam um mundo gratuito onde não haveria crime. Fui guarda nacional republicano. Quando li Agostinho, me arrepiei. Não tenho apresentação para vos mostrar. Falo com o coração. Alguém quer falar? Partilhar?”

(continua)

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 4
Scroll to top