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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLVII)

Porto, 4 de setembro de 2043

Aquele foi o setembro de todas as inquietações e de todas as mutações. Como vos disse, o descontentamento deu o lugar à determinação. E, mais uma vez, vos falo pela voz de quem agiu, de quem fez. 

Um sentimento misto de saudade e orgulho me invade, quando remexo o fundo do baú das velharias e me reencontro com restos de palavras trocadas no velhinho WhatsApp. No setembro de vinte e três, recebia da Joana notícia de ter criado um site: 

PORTUGAL | Rede Aprendizagem (formacaopacheco.wixsite.com)

Nele, começava a localizar projetos com potencial inovador. Logo a Maria inquiria:

“Joana já falaste com o Manuel na outra página do Telegram das turmas piloto? Ele, o Luís e o João vão arrancar com esse trabalho, em setembro. Sempre me surpreendeu lutarmos aparentemente sozinhos quando, na realidade, há tanta gente a lutar a nosso lado.”

Da Dora chegava esta mensagem:

“Bom dia! Para quem não conhece, que espreite este texto do Professor Zé:

“Os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares que ainda temos, carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos. Exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender. 

Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência e diálogo, enquanto condições de aprendizagem. Será oportuno falar de novas construções sociais. A partir do que somos, do que sabemos e do que sabemos fazer, urge afirmar a possibilidade de conceber “comunidades de aprendizagem”. Urge inovar. Mas… o que é inovação?

Urge humanizar a educação, conceber novas construções sociais de aprendizagem, nas quais, efetivamente, se concretize uma educação integral. Urge constituir redes de aprendizagem, que promovam desenvolvimento humano sustentável. A educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem, desde que se concretize a transição de práticas fundadas no paradigma da instrução para práticas fundadas no paradigma da aprendizagem e da comunicação.”

Palavras soltas, palavras vivas circulavam em redes sociais feitas de autores das práticas dessas palavras. Como dizia a Maria – “Muitas vezes, explicamo-nos mal. Complicamos o que é simples” – e apelava ao re-ligare das intenções: 

“Embora exagerando, olho para todas as investidas deste modo: os montessorianos não aceitam os waldorfs; os do movimento da escola moderna acham-se sempre na frente; os forest school imbicam com quem não tem quintal; os de um agrupamento fazem x e os de outro agrupamento fazem y…

Assim, perdemos todos. Não é de todo claro que somos iguais na diferença? Deveríamos ser mais humildes e operacionais, mais diversos, mais sérios, fazer o que dizemos, e fazer acontecer o que queremos. É possível! 

Os grupos são muitos e desorganizados. Torna-se cansativo. E os progressos são lentos. Mas, creio que é assim que se fazem os caminhos. Respirar fundo, ter calma, conseguir explicar muito claramente o que se pretende e como se faz, aguentar a barricada e nunca baixar os braços. 

Um abraço enorme para todos, estou ao vosso e nosso serviço para o que for preciso. E descansai um pouco, antes da histeria do início do ano. Os miúdos merecem-nos fortes e flexíveis.

SOMOS MUITOS! Não esquecer!”

Bem verdade, minha amiga! O pântano educacional se agitava com uma enxurrada de águas livres. Chegava o tempo prometido do ressurgir de um instinto de verdade honesto e puro.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLVI)

Lagoa de Piratininga, 3 de setembro de 2043

Reza a lenda que Diógenes andava pelas ruas de Atenas, durante o dia, carregando uma lanterna acesa, dizendo estar à procura de um homem honesto. 

Era dia claro. No entanto, Diógenes andava de lanterna acesa na mão, em busca de seres humanos verdadeiramente humanos. 

No setembro de vinte e três, fui até Portugal, pois de lá vinham boas notícias. Até talvez fosse possível estabelecer um paralelo entre o afã de muitas famílias e a busca de um Diógenes do século IV AC. Também elas procuravam educadores éticos em lugares onde os poderiam achar. O certo é que os encontraram. E – o que é mais admirável – acompanhados de gestores ainda vivos, ainda éticos.

Reencontrei ex-alunos gerindo câmaras municipais, em órgãos de governo, no  desempenho de cargos na administração educacional, na direção de agrupamentos de escolas. Já entrados na casa dos cinquenta, permaneciam resilientes, dispostos a pôr em prática aquilo que, poucos anos antes, se assemelhava a uma missão impossível.

A Marta, a Rute e a Ana tinham abdicado de uma semana de férias, para atravessar o mar e fazer uma vivência na Escola Aberta. No início do ano letivo – naquele tempo, ainda havia ano letivo – a Ana escreveu no velhinho WhatsApp:

“Já com os pés em solo português, faço esta partilha com o coração cheio e com memórias incríveis desta experiência, que jamais esquecerei. Irei encontrar-me com a querida Andreia, que está ansiosa para receber e eu ansiosa para partilhar!”

Nos encontros de sábado, enviei recados para a Dora, a Carla, a Rita, a Cátia, a Eunice, a Fátima, o Hernâni, a Sara, o JdB… e mesmo para o amigo João, que cuidava da recuperação da sua amada Catarina. Chegava o tempo prometido do ressurgir de um instinto de verdade honesto e puro.

Nesses encontros, tentei conferir exatidão à palavra dita, esboçando um glossário. Porque, por exemplo, sempre que entrava na Internet, deparava com a expressão “comunidade de aprendizagem” aplicada a experimentalismos que nada tinham a ver com a prática dessa construção social. Um dos verbetes desse arremedo de glossário isto dizia:  

“Comunidade de Aprendizagem – Práxis comunitária assente num modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável. Pode assumir a forma de rede social física, ou de rede virtual. Nas palavras de Lauro de Oliveira Lima, são divisões celulares da macroestrutura em microestruturas federalizadas num conjunto maior, mais complexas, que facilitam o encontro entre pessoas, espaços-tempos de preservação da unidade da pessoa, em lugar de dividir a pessoa para assegurar a unidade da sociedade.”

E vos ofereço o verbete de outro conceito, que, nessa altura, também era mal usado:

“Projeto – Processo dinâmico, que perfilha uma ideia de futuro, potencializa recursos existentes, e promove desenvolvimento pessoal e social.”

Amiúde, também ouvíamos falar de “educação de qualidade”. Só não se dizia se se tratava de boa, ou de má quanlidade. A aus~encia do adjetivo gerava alguma incerteza… E, como não havia duas sem três, cá vai mais um verbete da letra B:

“Boa Qualidade de Educação – Aquela que, no contexto restrito da escola, garanta o pleno acesso e o sucesso de todos os alunos (o Manifesto de 1932 já reivindicava uma educação pública democrática, que garantisse acesso e sucesso) e que, em senso lato, assegure a todos uma educação integral. E a boa qualidade seria aquela que resultasse da fecundação do sistema com práticas de uma nova construção social de aprendizagem.” 

À distância de duas décadas, podereis atualizar esses e outros verbetes. Eles bem precisam!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLV)

Camboinhas, 2 de setembro de 2043

Então, cá vai, netos queridos, mais uma cartinha “chata” (como ousastes dizer…), porque não poderei prescindir da explicitação de uma gramática de mudança. 

Vivíamos um tempo em que as famílias se preocupavam com a educação escolar dos seus filhos e nela exigiam participar. Não encontravam resposta em escolas de uma rede pública mercantilizada, no sucateamento da Escola Pública. Mas, também, já não encontravam resposta em projetos “alternativos”, ou no recurso do “ensino doméstico”. E os “centros de explicações” já recebiam alunos de… escolas particulares.

A minha amiga Tina caraterizava, na perfeição, a decadência da ensinagem e denunciava os seus efeitos:

“A prova, a nota vermelha, a reprovação, o bilhete para os pais, a punição do erro, a carteira enfileirada, o pontinho a menos, a ida para a sala da diretora, perder a hora de brincar, o castigo na biblioteca, o caderno de ocorrências, o olhar repressor e desaprovador, a cuidadora que grita, a diretora brava…
Medo é um estado emocional que surge em resposta à consciência perante uma situação de eventual perigo. A ideia de que algo ou alguma coisa possa ameaçar a segurança ou a vida de alguém, faz com que o cérebro ative, involuntariamente, uma série de compostos químicos que provocam reações que caracterizam o medo.

As escolas estão repletas de adultos que vivem na defensiva e reproduzem um ambiente repleto de ameaças, de medo e opressão.

É urgente humanizar a educação.”

Nos idos de vinte, por iniciativa da Tina e de outros educadores, se abriram caminhos de humanização. Há, precisamente, vinte anos, retomamos a prática dos encontros de formação, nos mesmos moldes daquela que havíamos realizado em projetos anteriores. 

Não se tratava apenas de assegurar consistência e vida longa a projetos de mudança. Essa seria a derradeira e exitosa tentativa de correção de erros de percurso. Não era nosso intuito colmatar déficits da formação inicial, ou da dita continuada. Não admitíamos separação entre formação inicial e continuada, porque, a nosso ver, toda a formação deveria ser contínua. Se não, para que serviria a formação?

O objetivo último seria o de garantir a todos o direito à educação, a uma educação integral em tempo integral, algo tornado possível mediante a gradual substituição de um sistema de ensino prussiano por um sistema de aprendizagem, graças ao labor de profissionais do desenvolvimento humano, ao serviço de projetos de humanização da educação adotados por comunidades.

Uma “educação integral”, muito debatida e jamais concretizada, impossível de efetivar no quadro do sistema de um sistema de ensino hegemonico e absoleto, ou através de uma via reformista, de adesão a modismos e paliativos, viria a consolidar-se numa nova construção social.

O encontro decorreu como se fora uma aula, mas uma aula de caráter isomórfico, como vos disse, na consideração do outro educador, não como objeto de formação, mas como sujeito de aprendizagem, na concretização dos princípios de uma aprendizagem dialógica.

Iríamos praticar modalidades de formação adequadas a processos de mudança. O círculo de estudos (e de aprendizagem) viria a constituir-se na modalidae principal. Projeto e oficina seriam complementares. E ainda se colocou a hipótese de organizar tertúlias. Seriam erigidos alicerces de uma nova educação, através da criação de núcleos de projeto, da definição de valores e princípios,da negociação de acordos de convivência, da reivindicação e assunção de autonomia, e da instalação dos primeiros dispositivos de relação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLIV)

Leiria, 1 de setembro de 2043

Quando setembro chegava, sucediam-se as adesões ao projeto “Novas Construções Sociais de Aprendizagem” e, també, pedidos de ajuda e esclarecimento.

Naquele tempo, a palavra ainda era fonte de mal-entendidos. Se eu pronunciasse a palavra “escolas”, a maioria dos meus ouvintes, mentalmente, representava as “escolas” como prédios feitos de salas. de aula e solidões, e eu pretendia que compreendessem que escolas eram pessoas. Se eu pronunciasse a palavra “projeto”, entenderiam que eu não estava a referir-me ao mero plantar de uma horta, ou a “aulas de meditação” 

De que estaríamos a falar, quando falávamos de escola, de inovação, de educação integral, de círculos de aprendizagem, de turmas-piloto, ou comunidades de referência? 

Face à dificuldade de me fazer entender, resolvi redigir um glossário. Já o amigo Rubem perguntara à Bárbara por que estava a fazer um glosssário. 

“É que nós estamos a estudar a Carta do Pero Vaz de Caminha. E há palavras em latim deturpado, que os mais pequenos não conseguem entender.”

“Foi uma professora que te disse para fazer o glossário?” – inquiriu o Rubem.

“Não! – exclamou a pequena – fui eu que quis fazer, para ajudar os meus colegas.”

Perante a solidariedade ativa daquela criança, o Rubem foi até à janela, olhou lá para fora, para que ninguém visse que estava a chorar de emoção. 

Eu vi. E, quando um homem chora de emoção alcança o primeiro lugar do meu ranking de humanidade. Aproximei-me dauqele visitante, conversei com ele. Nessse momento, sem que soubesse, estava dar o primeiro passo da minha diáspora brasileira.

Cito de memória alguns dos verbetes de um glossário composto, lá pelos anos noventa, numa linguagem que todo mundo entendesse. Comecemos pela letra E.

Escolas: Pessoas, que aprendem umas com as outras. no contexto de uma organização social dotada de autonomia, em todo e qualquer lugar com potencial educativo. Pessoas que aprendem no exercício de uma intersubjetividade geradora de vínculos estabelecidos com um objeto de estudo e com mediadores. 

Educação Integral: Será aquela que contemple a multidimensionalidade do ser humano: a formação no domínio cognitivo e uma plena formação pessoal e social (afetiva, emocional, ética, estética, dentre outras). 

Não deverá ser confundida com mais tempo passado dentro ou fora de um prédio, em atividades de desculpabilização curricular. 

Há quem refira fazer esse tipo de educação em sala de aula. É abusiva tal referência, Em sala de aula não é possível desenvolver “educação integral”, pelo que não se deverá usar essa expressão em vão.

Na intenção de clarificar o léxico de uma educação do século XXI, recuemos para a letra D.

Desenvolvimento Sustentável: Teia da qual defende nossa vida, projetada considerando a natureza. Pressupõe que o crescimento (ou uma humanização com referência a um “decrescimento”) benfazejo deve ser baseado nas energias renováveis, favorecer a comunidade local, ser crescimento qualitativo.

Design de Sistemas Sustentáveis: Conceito que pressupõe “envolvimento”, pois envolve soluções sistêmicas integrando as dimensões social, cultural, econômica e ecológica, com o objetivo de promover sustentabilidade na micro e na macro escala, isto é: uma boa qualidade de vida. 

Dispositivos pedagógicos: Estratégias e materiais a que se pode recorrer na prática educativa, concebidos criticamente e elaborados como propostas educativas adequadas às características socioculturais identificadas pelos professores como estando presentes no grupo de alunos com que trabalham.

(continua) 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLIII)

Tavira, 31 de agosto de 2043

Recordo-me de, em meados dos anos oitenta, um pesquisador francês ter passado alguns dias na Ponte, xeretando tudo. Numa precária “tradução simultânea”, ajudei-o a dialogar com alunos, pais e professores. E lá se foi o visitante, deixando um papelinho escrito, que passo a traduzir:

“Quando for feita a História da Educação do século XX, dever-se-á considerar a existência de dois períodos distintos: antes da Escola da Ponte e depois da Escola da Ponte.”

O francês já tinha passado por Reggio Emilia e por outros lugares onde um escolanovismo tardio havia assentado arraiais. E chegara à conclusão de que a Escola Pública da Ponte tinha sido a primeira a concretizar a transição entre práticas instrucionistas e práticas fundadas no paradigma da aprendizagem. O processo de aprendizagem passara a estar “centrado no aluno”, enquanto sujeito de aprendizagem. 

Decorridas algumas décadas, em quase todas as escolas, o professor ainda era o centro, cativo de práticas instrucionista enfeitadas de projetos paliativos. E havia quem dissesse:

“Não há direito de não nos deixarem trabalhar de maneira diferente. Os diretores impedem o nosso trabalho. Se a Ponte não tem sala de aula, por que nos obrigam a continuar a trabalhar em sala de aula?”

Mas, da lamentação e desse perguntar os descontentes não passavam. Havia sempre um “impedimento”, um pretexto para justificar o imobilismo reinante. E o André confabulava:

“Vivemos um longo e terrível período de aberrações e atentados diretos contra o Direito de Aprender de milhões! Profundamente lamentável! 

Debray contou-nos esta estória: Um imperador chinês pediu ao pintor principal da sua corte para apagar a cascata que tinha desenhado nas paredes do palácio, porque o barulho da água o impedia de dormir.” 

Que imagens nos impedem de dormir? E quais são aquelas que nos embalam o sono?

Gostaríamos de ver outros retratos no espelho da nossa história? Gostaríamos que ele nos devolvesse uma outra visão da escola que fomos (in)capazes de construir? Ainda conseguiremos, neste tempo em que o excesso de visões asfixia o olhar, deixar-nos instruir pelas imagens?

Deveremos tolerar a incoerência entre o pensar e o fazer, ou aceitar a necessidade de fincar barreiras perante procedimentos moralmente contraditórios e antiéticos? 

Poderá haver educação em práticas sociais que impedem a assunção de uma vida plena, quando não fazemos aquilo que se pode e sonha fazer? No setembro de vinte e três, ainda havia profissionais críticos, reflexivos e éticos. Juntos, materializamos um “novo início”. 

Sempre oportuna nas suas intervenções, a minha amiga Tina apontava “a oportunidade de repensar processos e fazer diferente, de deixarmos de estar “enclausurados” nas quatro paredes de uma sala de aula. 

Precisamos rever a imposição padronizada do conteudismo instrucionista, que destrói a curiosidade e impede o desenvolvimento do pensar crítico e criativo.

Que o velho normal da educação não volte nunca mais”. 

E a Teresa questionava: · 

O que nos impede de pensar a Escola Pública em conexão profunda com a comunidade, com as suas gentes, os seus saberes?

O que nos impede de acreditar na proximidade, no envolvimento, no diálogo, como fatores de aprendizagem?

O que impedia a mudança éramos nós! E, nos encontros de sábado, nos desimpedimos. 

Assim rezava o convite para os encontros de setembro de 2023:

“Novas Construções Sociais de Aprendizagem e Educação”

11:00 às 12:00 horário de Brasília/ 15:00 às 16:00 horário de Portugal

Link da videochamada: https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLII)

Coimbra, 30 de agosto de 2043

“Da Alice para avô Zé” – foi aquilo que escreveste junto ao cartãozinho que de ti recebi, no dia do meu aniversário e que, religiosamente, eu guardo. 

Há uns vinte anos, no dia em que completava vinte e duas primaveras, enviei-te uma cartinha contendo o início e o final de um livrinho que escrevi quando nasceste. Como o tempo passa! Em 2043, as palavras ganham novos significados, mas aqui recordo alguns trechos desse livrinho, como singela homenagem e amoroso gesto. Parabéns!

“Algures, em 15 de setembro de 2007, 

Querida Alice, aqui estou, a entregar-te este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens to permitir, hás-de lê-las. Esta é a última das cartas, que não o fim da história. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar. A vida é uma história sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens. 

Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros. 

Quero que saibas que, quando os homens criam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés. No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E, quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteroide B 612. 

Para ti, querida Alice, é natural o modo doce como a escola te acolhe. Neste primeiro dia do resto da tua vida parece que sempre assim foi. Mas, para que pudesses amar o ir à escola, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão e vigiados nos seus mínimos gestos. 

Por mais inverosímil que possa parecer, era mesmo assim, querida Alice. A infantil curiosidade acabava desfeita em submissões. 

Busca a sabedoria dos pássaros. Deixa fluir a torrente dos dias invulgares que vem de muito dentro de ti. Deixo-te histórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. 

A vida é um constante recomeço. Se a cidade de Tecla nunca foi concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se preocupam os homens em imprimir uma moral e dar desfecho às histórias que inventam? 

Te contarei outras estórias e tu hás-de extrair a moral dessas estórias – A tua moral, é claro!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLI)

Cabuçu, 29 de agosto de 2043

Há uns vinte anos atrás, o amigo Mauro questionava:

“Sempre fico me perguntando como podemos ser assertivos naquilo que o amigo Zé tem reiterado: o rompimento definitivo com o instrucionismo e suas marcas: padronização, seriação, aulas.”

Exatamente, meu amigo. O dito “sistema” é hábil, manhoso, e dispõe de muitos artifícios e financiamento. Assimila e digere as “novidades”. “Especialistas” lhe conferem cobertura “científica”. E o ministério adota paliativos, anunciando-os como “inovações”.

Falando para os seus botões, o amigo Mauro fazia a mesma pergunta, que eu fizera ao longo de mais de meio século. Com a passagem do tempo, o “sistema” foi introduzindo nos seus projetos palavras como “autonomia” e “cidadania”, ou expressões do tipo “metodologias ativas” e “educação integral”. 

Mas, cadê a autonomia, a cidadania, a educação integral e as metodologias ativas? Em sala de aula, praticava-se uma “metodologia inativa”. A educação integral era confundida com doses duplas de tédio escolar. A autonomia era incompatível com o dever de obediência hierárquica. E da cidadania praticada entre as quatro paredes de uma sala de aula nem é bom falar.

De nada adiantava António Nóvoa afirmar, há mais de quarenta anos que, pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. E enquanto dizia que não haveria salas de aula no futuro, “especialistas” “inventavam salas de aula do futuro”. 

O “sistema” fazia ouvidos de mercador, quando Pedro Demo dizia que o lugar do professor não era o centro do processo. Talvez o amigo Pedro fosse o mais esclarecido cientista da educação da sua geração. Era, sobretudo, um pesquisador ético, rigoroso. Sabia que seria preciso sair do sistema de ensinagem e “fazer outro”. Nos seus livros, abordou o conceito de “autoria”. Para Pedro Demo, o “protagonismo juvenil”, a “autonomia do estudante” e outros modos de recriar a escola tinham sido “atos falhos”:

“A escola que temos, do início do século passado, de molde fordista reprodutivista (…)  é uma fabriqueta instrucionista, devotada a reproduzir conteúdos curriculares, sistematicamente. 

Enquanto não falta aula, aprendizagem é apenas eventual. Os conteúdos, devidamente codificados alfanumericamente (para que nenhum escape ao controle instrucionista), serão, provavelmente, transmitidos como sempre foram, porque é isto que o sistema, ao final, exige, não aprendizagem, e mormente porque os professores foram “deformados” para este tipo de atividade instrucionista na faculdade.

Toda mudança proposta é armada dentro do sistema, para aprimorá-lo ou adaptá-lo, nunca para o superar. O sistema instrucionista atual de ensino não faz sentido, porque é completamente inepto em termos de produzir aprendizagem.”

Edgar Morin assim resumiu a situação: 

“A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola?” 

No setembro de há vinte anos, havia quem, como a Vovó Ludi, erguesse uma voz clara no caos de um desconcerto organizado:

“Em qual espaço orbita a voz de quem educa?”

Numa amena conversa, a educadora Fabi ergueu a sua voz, para interpelar outros educadores: 

Qual é afinal a escola que NÃO queremos? A escola é mesmo violenta!” 

Logo deparou com olhares de espanto. Como se o óbvio, como dissera a Tina, tivesse de ser esquecido, as orientações óbvias tendessem a ser descartadas e as declarações óbvias negligenciadas perante “evidências”.

Naquele setembro, denunciamos: 

“O que é evidente… mente!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXL)

Santa Rosa. 28 de agosto de 2043

Netos queridos, admiro a vossa sinceridade. E não fiquei zangado por terdes dito que as últimas cartinhas foram “muito chatas”. É bem verdade! Por vezes, consigo ser mais “chato” do que é habitual. 

Volvidos vinte anos sobre  acontecimentos marcantes, ainda sinto necessidade de trocar o discurso da prática por uma leveza teórica desprovida de jargão académico, para lembrar que não foi fácil trocar o certo pelo incerto. 

Já isso vos dissera nas “Cartas para a Alice”, 

“Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações. Prevejo impossível explicar-te o emudecer do canto dos bosques, esmagado por letais silêncios e sombras.”

Setembro se aproximava. E recebíamos notícias já esperadas de reações negativas à proposta das novas construções sociais:

“Ando com o coração apertado, com receio de que as turmas piloto não se concretizem. Não tenho conseguido falar com a doutora, que é diretora do agrupamento”.

A generosa Vovó Ludi me pedia que não fosse rude para com “lideranças tóxicas” e eu fazia um esforço sobrehumano para atender ao seu pedido. Tinha gasto mais de meio século envolvido em confrontos com saldo de muitas perdas. Não poderia consentir que mais uma infantil ou juvenil geração se perdesse nas malhas do instrucionismo. Mas, deveria buscar por outras vias a escola que a geração do Theo e da Analu merecia.  

A Educação do Sul andava distraída, “sem perceber que era subtraída
em tenebrosas transações”. E o que poderia fazer um imigrante do Norte, despido da etnocêntrica arrogância, mas ainda endurecido pela memória de europeias contendas? 

Talvez devesse ouvir o que a Vovó Ludi me dizia. Escutá-la, para aprender a bonançosa gramática do sul. E assim fiz. Segui-lhe os passos, na Casa Reviver e em Maricá, por onde andasse semeando novas práticas. Chegara o tempo de o vosso avô ser apenas um aprendiz de utopias. E de partilhar alguns (poucos) saberes, para evitar que outros fizessem as besteiras que eu fizera.

Propunha que, tão logo aderissem a algum projeto, negociassem autonomia,  que se criasse um GT (Grupo de Trabalho), a quem competiria criar condições de fundamentação legal e científica. Que nada começasse sem garantia de autonomia! 

Entre as décadas de vinte e de trinta, numa formação de novo tipo, não considerávamos os professores como objetos de formação. Deles cuidávamos na dignidade de sujeitos de aprendizagem. 

Lidávamos, sobretudo, com um grave problema: o analfabetismo. No agosto de vinte e três, a Rede Latino-americana de Alfabetização emitia um comunicado nas redes sociais, lamentando o falecimento de Emília Ferreiro. Ainda não tínhamos feito o luto da partida da Magda, e a Emília se lhe foi juntar. 

Vivíamos de perdas e danos, procurando juntar à memória de insignes educadoras a prática dos seus legados. Emília fora a referência maior para aqueles que buscavam a compreensão do processo de alfabetização e a aquisição da linguagem em crianças, que buscavam entender o pensamento das crianças em desenvolvimento e como elas construíam seu próprio conhecimento. 

A sua abordagem construtivista gerou evolução paradigmática, a partir de propostas de Piaget, seu mestre e orientador de doutoramento. Porém, só mais tarde, muito após a sua morte, a sua obra (onde avulta a “Psicogênese da Língua Escrita”) foi objeto de estudos de profundidade e fertilizou práticas. O seu exemplo de hábil e exigente pesquisadora ainda perdura, neste ano da graça de dois mil e quarenta e três.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIX)

Morro do Estado, 27 de agosto de 2043

Encontrei no fundo do baú das velharias uma mensagem reencaminhada pela minha amiga Tina. Já lá vão vinte aninhos e creio ser oportuno vo-la dar a conhecer. Ela me fez recordar o tempo passado na velha faculdade de psicologia, às voltas com tentativas de “explicação” de certos comportamentos e atitudes de seres humanos considerados “normais”.

A Tina referia-se a um filme recomendado pela Cássia – o “Experimenter” – enquanto refletia sobre relações humanas e concluía que nos conectamos mais com a ordem e menos com a dor. 

“Em 1961, na Universidade de Yale, o psicólogo Stanley Milgram realizou uma série de experiências sobre a obediência. 

A investigação, que decorreu ao mesmo tempo que o julgamento de Eichmann (o criminoso de guerra nazi que alegou obediência como defesa durante o seu julgamento), pretendia explicar a relação das pessoas com a autoridade. A violência da experiência agitou a comunidade científica, e gerou admiração por Milgram, mas também acusações de sadismo e de manipulação.

Os professores “fazem o que fazem”, com a compreensão de que estão cumprindo ordens. O sistema os obriga a controlar as crianças de forma a padronizar o currículo e a aprendizagem, a tratar a escola como uma esteira de linha de montagem de uma fábrica. Se a criança por ela passar e não aprender, culpada deverá ser a esteira, que foi rápida demais.” 

Uma profunda normose se instalara, ao longo de décadas de incitamento a uma competitividade negativa e ao conformismo. Mas, estávamos prestes a entrar na última semana de preparação de profundas mudanças. Começara a contagem decrescente para o início de setembro e o reinício de um ciclo formativo e performativo. Dessa vez, irreversível, incoercível, irrefreável, porque, durante mais de vinte anos, o vosso avô havia contraído cumplicidades, sintonias, sincronicidades. 

Estou sendo, voluntariamente, gongórico, para sublinhar a importância de ter criado uma equipe. A Tina, o Leo, a Edilene, a Claudia, a Valéria, o Mauro, a Zizi, o Bruno, o Antônio, a Cecília, a Paula, o Vinícius, a Karina, o Conrado, a Vovó Ludi e muitos outros educadores e educadoras iriam assumir a pilotagem de processos de mudança, chegava o tempo de o vosso avô manifestar o dom do desapego. 

A essa fraterna equipe competia assegurar a materialização de um vasto conjunto de intenções, começando por se efetivar a corresponsabilização na construção e gestão dos projetos a estruturação do trabalho em equipe, para assegurar o efetivo cumprimento dos projetos das escolas.

Esses projetos eram desenvolvidos em espaços de cultura, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade individual, ou de exclusiva produção numa escola-prédio.

O estímulo do diálogo e a mediação de conflitos, tanto quanto a valorização da diversidade e das diferenças, foram valiosas contribuições para a promoção de equidade. Urgia providenciar sustentabilidade social, econômica, ecológica e cultural, que conduzissem a uma nova forma de relação do ser humano com o contexto planetário, a uma nova visão de mundo.

À semelhança do que na Ponte se fizera, anos antes, se outorgava efetiva participação às comunidades, nomeadamente uma representação maciça nos órgãos de direção e de tomada de decisão, no âmbito local, extinguindo, gradualmente, órgãos unipessoais, como o de diretor, por serem desprovidos de autonomia – diretores e gestores estavam submetidos ao “dever de obediência hierárquica”. cativos do “fantasma de Milgram”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVIII)

Ingá, 26 de agosto de 2043

Em pioneiras aplicações de acordos de convivência, havia quem se queixasse:

“Eles são ingratos. Fizemos combinados e eles não os respeitam. Por exemplo, o erguer o braço para pedir a palavra. 

Ontem, estive mais de dez minutos de braço erguido, até que acabasse a zoeira.”

Práticas de diálogo e gestão de conflito, praticar sociocracia, interiorizar acordos, era processos longos, que requeriam dos educadores o equilíbrio entre amorosidade e firmeza, em doses adequadas a cada situação.

Educadores e educandos deveriam definir e vivenciar dispositivos e práticas, que, de forma articulada, buscassem cuidar de princípios e valores, pesquisar e exercitar procedimentos e práticas de diálogo, a gestão de conflitos intra e interpessoais, a sociocracia e a não-violência, a partir de valores e princípios. E isso não acontecia da noite instrucionista para o dia-a-dia comunicacional.

Era tarefa ciclópica, que requeria tempo, paciência, resiliência, o exercitar de ferramentas de facilitação de processos participativos, que promovessem o engajamento e o desenvolvimento do trabalho em equipe, bem como o cuidar dos conflitos e estabelecer redes de apoio.

O desenvolvimento de competências socioemocionais não era tão fácil como era descrita e proposta nas teses produzidas sobre o assunto e elaboradas por académicos distantes do chão de escola. E era ainda mais complexa a missão, quando se tratava de inserir nas novas práticas mecanismos de envolvimento e participação da comunidade. A começar por libertar o professor do gueto da sala de aula e do prédio-escola, no reconhecimento de que o ethos organizacional de uma escola dependeria da sua inserção social e de relações de proximidade com outros atores sociais.

Assumindo que as escolas eram as pessoas agindo em espaços públicos, em nodos de redes comunitárias incubadoras de sustentabilidade, se devolvia as escolas às comunidades, na partilha da responsabilidade de educar. Se concebia novas construções sociais de aprendizagem, que integrassem as dimensões escolar, familiar e social, e contemplassem necessidades sociais contemporâneas, a participação ativa de agentes educativos locais, dentro e fora do prédio-escola, contribuindo para a coesão social.

Se não houvesse professores vivos nas escolas, eram criadas redes de voluntariado e de engajamento comunitário no processo educativo. A propósito, ficai sabendo que, na Escola da Ponte dos idos de setenta, todos os professores morriam (profissionalmente) aos vinte, sendo enterrados aos sessenta ou setenta. Restou-me erguer um projeto com os pais dos meus alunos.

O mesmo aconteceu nos idos de vinte, quando projetos inovadores marginais partiam da iniciativa de famílias conscientes dos nefastos efeitos de um cortejo de horrores a que chamavam “administração pública”. O “sistema” era desgovernado por secretários de educação que agiam como aprendizes de feiticeiro. Uma secretaria juntou a um já longo rol de disparates a regra de reprovação de alunos que faltassem às aulas em quinze dias seguidos. 

Como se não bastasse a contínua imposição de uma “educação bancária”, essa medida restringia ainda mais o direito básico à educação assegurado pela Constituição.

Netos queridos, naquele tempo, a Educação e as escolas permaneciam à mercê de políticos debutantes e da corrupção intelectual de “especialistas”. Sei que custa a crer que isso tenha acontecido. E, se perguntais o que fazíamos perante o descalabro, vos responderei que, feitos beija-flor, lá íamos fazendo a nossa parte. 

 

Por: José Pacheco

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