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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXLIII)

Freixo do Meio, 23 de julho de 2042

Estávamos no ano em que celebraríamos o centenário do Darcy. E eu invocava Anísio, outro dos injustiçados da educação brasileira, juntamente com Agostinho, o português mais brasileiro de quantos para o Brasil emigraram.

Esse trio fantástico se reencontrou na Universidade de Brasília, quando o Distrito Federal começava a tomar forma. Aí, fundaram um protótipo de uma nova universidade, que a Ditadura viria a desmantelar. Anísio viria a ser atraído a uma cilada e assassinado. O sonho de uma nova cultura académica o tempo a consumiu.

Agostinho viria a escrever quase um “epitáfio” da universidade sonhada por Anísio e Darcy:

“O grande drama da Universidade brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são efetivamente de outras economias, de outros estágios educacionais e que de maneira nenhuma podemos adaptar ao Brasil”.

E, nos idos de sessenta, estas considerações teceu: 

“Podemos dizer que a Universidade atual, que vem da Universidade medieval, é uma Universidade que se alicerça sobre a idéia de fraternidade, sobre uma idéia, digamos, de caridade, sobre uma idéia de esforço comum para atingir uma verdade que não é já uma verdade puramente intelectual, mas uma verdade também de sentimentos, uma verdade de unidade entre os homens”.

O Paulo Borges comentaria o sonho agostiniano da “mais perfeita das Universidades”:

“Agostinho da Silva vislumbrava os tempos em que nela sejam formadas “novas gerações de cientistas com a noção de história da cultura, dos limites da atividade científica e de sua real grandeza” e os homens de cultura literária ou histórica com a idéia do que seja a ciência, sua axiomática e seu progresso e convencidos de que filosofia é fundamentalmente uma reflexão sobre a ciência”.

A missão específica que Agostinho da Silva atribuía à Universidade de Brasília era a de “integrar a cultura nacional”, a de preparar os quadros para o ensino superior no país, aliada à missão de assessoramento do governo, e a de produzir o pensamento, fazendo valer a sua opinhão “sobre os problemas com que o Brasil se defronta”. 

Os princípios, as bases deveriam ser, portanto, universais, mas a estrutura deveria corresponder ao particular histórico, econômico e cultural do Brasil, o que já não acontecia. Nos idos de vinte, apenas o meu amigo Isaac e outros notáveis educadores tentavam recuperar o espírito Anisiano, enfrentando a indiferença da sociedade e umo obsceno silêncio dos emudecidos pelo medo. Em tempo de crise moral, Anísio morria pela segunda vez, pois matavam a sua memória.

Assumindo as contradições da época em que viveu, Anísio defendia a aplicação do conhecimento científico na educação. Considerava ser a pedagogia uma arte, algo mais complexo do que uma ciência, crente de que a educação poderia atingir o nível das belas-artes. 

Criticava a “aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas, que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional”

Não imaginaria como o Brasil viria a sofrer com a invasão maciça de modismos e o transplante de produtos de ciência de laboratório para o chão das escolas, mantendo-se intocável o essencial do modelo instrucionista. O aluno era tratado como algo abstrato, “manipulado por critérios de classificação em grupos supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXLII)

Freixo do Meio, 22 de julho de 2042

Parece que terei entrado numa espécie de “onda”, como disse o Marcos, de invocação de mulheres ilustres. Hoje, vos falarei de uma poetiza (ou poeta, como se diz no Brasil), que viajou do Rio para Lisboa ao encontro de outro poeta, que não conseguiu encontrar.

No dezembro de 1934, uma notícia de jornal anunciava “o desembarque em Lisboa da “poetisa do Brasil”. Chegada a Lisboa, Cecília Meireles foi até ao café “A Brasileira”, local combinado de encontro. Após uma longa espera, regressou ao hotel. Na recepção, foi-lhe entregue um livro autografado pelo poeta que faltara ao encontro. 

O presente estava acompanhado por um bilhete, no qual Fernando Pessoa apresentava a razão da ausência. Pela manhã, ele tinha lido o seu horóscopo e havia concluído que aquele não era um bom dia para encontrar a Cecília. Nessa noite chuvosa de tempos sombrios, foi grande o desapontamento da Cecília. Seria a última oportunidade de conhecer o poeta, pois Fernando Pessoa estava no penúltimo ano de sua vida.

Outro poeta português – Ary dos Santos –  nos dizia que, “quando um povo acorda, é sempre cedo”. Quando um país tende a renascer de tempos sombrios, acontecem reencontros e se torna atual o apelo lançado em versos pela Cecília: 

Vem, retira as algemas dos meus braços / Porque a vida só é possível reinventada”.

Também eram tempos sombrios aqueles em que a poetisa os publicava. E, decorrido mais de um século, eles continuam a ecoar como exercícios de indignação, perante as injustiças do cotidiano. 

A Cecília pedagoga foi contemporânea de um Freinet consciente de que “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiçados, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos”. 

As suas crónicas rompiam a apatia de quem não se apercebia de que a Escola reproduzia iniquidades. Cecília denunciava uma velha construção social, que dava pelo nome de “Escola”, feita de edifícios rodeados de grades, feitos de salas habitadas por solidões, qual cadáver adiado suportado por enfeites paliativos. 

Para a Cecília, ser professor consistia em, permanentemente, viver na idade dos porquês, ousar perguntar: 

Por que razão há crianças que não aprendem? 

E, depois, ter a coragem de mudar. 

Queridos netos, hoje, voltei à leitura da poesia e das crônicas da Cecília. Já as lestes? 

Nnunca encontrei as suas corajosas “crônicas da educação” nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Comprei os cinco volumes da coleção num cebo virtual e os fui oferecendo. No baú das velharias, apenas resta um deles, à mistura com leituras do Darcy, que fazia eco das palavras da sublime poeta, ao denunciar “gente ruim, sem pudor, sem escrúpulos”

Cecília Meireles ousou romper com tabus de uma sociedade tão moralmente doente quanto a dos idos de vinte. Num julho de há mais de cem anos, denunciava um regime, que invocava “a Liberdade como sua padroeira”, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”. 

Ser poeta é o mesmo que ser educadora e, pelos seus dezesseis anos, a Cecília se fez professora. Quando se candidatou à cátedra de literatura da Escola Normal, foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. Foi alvo de perseguições, porque expressou a sua rebeldia nas páginas dos jornais do Rio da década de trinta, quando pugnava por uma efetiva renovação educacional, por “uma reforma de finalidades, de democratização da escola (…) todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXLI)

Freixo do Meio, 21 de julho de 2042

Voltei a remexer o baú das vleharias e encontrei a fotografia, que junto a esta cartinha. 

Quando entrávamos na ágora do Freixo, sobre as prateleiras de uma biblioteca, Agostinho nos fitava. E nos sentíamos pequenos perante aquele olhar, inaptos educadores incapazes de concretizar o que o Mestre propunha. 

Naquele tempo, já seria possível passar do consumo de currículo à produção crítica de conhecimento e à sua fruição, gerando embriões de uma democracia digital solidária. As tecnologias digitais poderiam ser colocadas ao serviço da humanização da escola, mas apenas serviam para a mercantilização da escola pública. 

A Escola permanecia parada no tempo, constituía-se em obstáculo a um desenvolvimento humano sustentável, ignorando que os contributos das neurociências e a emergência da Web 4.0 prefiguravam mais do que uma revolução tecnológica: uma revolução social e cultural. 

Quando tocava a sirene anunciadora do intervalo das aulas, os jovens corriam para os seus telemóveis, sentavam-se no chão, alheados de tudo o que os rodeava. Enquando o “toque de entrada” não soava, os corredores das escolas eram arquipélagos de solidões. A relação com a tecnologia substituía os espaços dos afetos, das relações onde se poderia estabelecer o sentido de uma nova humanidade.  

A Lei de Bases  dizia-nos que a educação, dever da família, da sociedade e do Estado (através da escola), inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tinha por finalidade o pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para um exercício pleno de cidadania. Também dizia ser dever do Estado garantir a educação de todos. E eu me questionava: 

Quanto tempo mais demorariam os professores, as escolas e os donos do “sistema” a compreender que a escola que (desgraçadamente) ainda tínhamos não conseguiria atingir tais desideratos? 

Quanto tempo decorreria ainda, até que se apercebessem da necessidade de assumir múltiplas e urgentes medidas, como a de interpelar o modelo hierárquico de relação, de modo a propiciar uma relação comunicativa, e de conceder dignidade ao exercício da profissão de educador? 

Ontem, vos falei da Eunice. Hoje, quando caminhava, meditando sobre o sem sentido da escola, outra extraordinária educadora me veio à mente (ou seria ao coração?). Na década de 1970, Maria Nilde implantara um programa para mulheres de baixa renda, nas favelas de São Paulo. Essa e outras iniciativas dotaram-na de uma formação experiencial que desembocou numa extraordinária tese de doutorado. Cinquenta anos decorridos, os seus colegas universitários esbanjadores de vã erudição nada tinham acrescentado, nada haviam contribuído para ajudar a escola a libertar-se do marasmo instrucionista.

Os teoricistas habitavam um sétimo céu, muito acima do submundo do comum dos mortais. E, entre a retórica dos teoricistas e o glamour de congressos e teses, pouco, ou mesmo nada mudara, desde então. Continuávamos à mercê das diatribes dos novos governantes, e dos maus tratos dos áulicos.

A morte levaria Nilde, no último ano do século passado. Mas, ainda viveria tempo suficiente para escutar a confissão do Mestre Darcy: 

Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”. 

Também escutara o seu repto: 

Tudo o que eu não consegui fazer ficam vocês encarregados de realizar. Mas façam!”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXL)

Carias, 20 de julho de 2042

Um dia, há muito tempo, escrevi uma cartinha para o amigo Florestan. Poderia parecer inverossímil aquilo que lhe iria contar, mas era a mais pura verdade. Um Governador de Estado inaugurara uma escola construída no “Padrão Século XXI” (sic). Pouco tempo após a pompa e circunstância da inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) escola modelo. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida. A diretora disse que “o rapaz tinha comportamento normal e boas notas”

O colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde esses alunos estudavam. Um serralheiro colocaria as placas em volta da escola, “mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”. A Polícia Militar ficaria na porta da escola, até que o projeto de segurança fosse implantado. 

Culminando a insana sequência de fatos, “a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar”. Famílias e governo comemoraram “o plano de recuperação da qualidade da escola”, crentes de que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna. 

Tirei o Florestan do seu etéreo sossego, porque, como deputado federal, se batera pela melhoria da escola pública. A morte o impedira de votar a nova lei. Darcy e poucos levantaram a sua bandeira, com as cedências que conferiram aos legalistas e burocratas argumento para adiar a concretização de justas disposições.  

Mal grado os avanços que a lei consentira, nos idos de vinte, a escola continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites. Mas, eis que chegavam tempos novos e educadores com instrumentos de emancipação. 

Enviei uma cartinha ao Florestan, porque sentia uma quase veneração pela sua obra e pela sua vida. A sua origem humilde moldou o teu caráter. Foi filho de mãe imigrante e analfabeta e começou a trabalhar como engraxate aos seis anos de idade. Forçado a abandonar a escola aos nove anos, fez as primeiras aprendizagens sociológicas na escola da vida. Mas, nunca deixou de acreditar que a educação poderia ser uma experiência transformadora e que as escolas deveriam formar “um sistema comunitário”. 

Quem dera que os educadores brasileiros se orgulhassem do seu exemplo e se opusessem a políticas públicas pedagogicamente desastrosas. Que fossem aquilo que Florestan dizia dever ser um professor: “um cidadão e um ser humano rebelde”.

Com Roger Bastide, Florestan desenvolveu um profundo estudo  sobre o negro e o preconceito racial. Daí passou para pesquisas sobre a urbanização, a industrialização e a nova estrutura de classes em construção no Brasil. 

Outros mestres desenvolveram estudos afins, num diálogo profícuo entre a sociologia, a história, a ciência política, a antropologia, em cujo campo sobressaía a obra de Eunice Dhuran. Lado a lado com Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes, Eunice participou na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

No julho de há vinte anos, Eunice Ribeiro Dhuran faleceu. Quantos professores saberiam do infauto acontecimento? Quantos professores conheceriam a sua análise do sistema educacional? Quantos professores teriam lido a sua obra e a do Florestan?

Em meados do século XX, o Mestre Florestan criticava a prática em sala de aula, a concepção do professor como transmissor do saber e a hierarquização da gestão. Talvez por que aos professores tivese faltado tempo para se inteirar do que o Mestre escrevera, permaneciam na solidão da sala de aula… no julho de vinte e dois.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXIX)

Azoia de Baixo, 19 de julho de 2042

Setembro de vinte e dois foi um verdadeiro “separador de águas”. Se cruzase metaforas com o que Bauman diria, não foi uma “pororoca” o que aconteceu, mas um lento mesclar de “líquidas” trajetórias. Hoje e à distância de duas décadas, talvez se possa considerar o fenómeno como uma saudável “inundação”, uma incontida correnteza, que soltou amarras e arrastou grades e silêncios. Era chegado o tempo de se cumprir um sonho alimentado ao longo de mais de meio século.

Num linguarejar mais prosaico e acessível ao comum dos mortais, o teor do documento-base das transformações operadas – o “plano de inovação” – abria com uma perspícua citação do “Currículo em Movimento da Educação Básica”:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio; a escola começa a sentir-se pertencente àquela comunidade e começa a criar, planejar e respirar projetos de interesse de sua gente, da sua realidade” 

Nítidos eram, também, os objetivos:

“A Comunidade de Aprendizagem não é mais um projeto, ou mais um paliativo de um modelo de ensino. É uma nova construção social de aprendizagem, que concretiza o disposto na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos da Criança”. O objetivo geral será o de conceber uma nova construção social de aprendizagem, que a todos garanta o direito à educação, através da criação de uma rede de protótipos de comunidades de aprendizagem”.

Em Portugal, esse documento concorria para que se cumprisse o estabelecido no Decreto-Lei 55/2018, de 6 de julho de 2018. No Brasil, entre outras leis, a Resolução Nº 60, de 18 de novembro de 2021, da Secretaria de Educação de Mogi das Cruzes, bem como a Portaria Nº 276, de 16 de agosto de 2019, da Secretaria do Diatrito Federal. Esses normativos instituíam “grupos de trabalho para a proposição de diretrizes de política pública para a implantação e implementação de comunidades de aprendizagem”.

O “plano de inovação” visava contribuir para concretização dos objetivos inscritos nos projetos educativos das escolas, a saber: promover o crescimento do educando em todos os aspectos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele possa interferir, atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspectiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integra, reconfigurar práticas educativas, que não se enquadrem na concepção de novas construções sociais de aprendizagem e de educação; produzir práticas integradas (na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação), religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Cultura, Saúde e Educação, em projetos de educação integral.

Enquanto esse promissor  futuro era deliniado nas duas margens do Atlântico, no extremo da Europa dita civilizada, aeronaves militares sobrevoavam a cidade ucraniana de Mariupol. No chão contíguo ao teatro municipal, onde centenas de mulheres e crianças aterrorizadas se escondiam, alguém havia pintado um enorme pedido de misericórdia: “CRIANÇAS”. 

De nada valeu o apelo. À semelhança do que sucedeu com escolas e hospitais, o prédio do teatro foi bombardeado, centenas de pessoas foram mortas. A comunicação social propalava as atrocidades cometidas juntando às notícias fotografias de valas comuns e de corpos estendidos nas ruas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXVIII)

Santo Aleixo, 18 de julho de 2042

Os encontros do périplo português dos idos de vinte tinham sido oportunidades de voltar a acreditar. E de confirmar que o principal obstáculo à mudança era eu, ou cada um de nós, enfermos de uma cultura pessoal e profissional reprodutora de um determinado modelo escolar e social. 

Não se afigurava fácil a reelaboração cultural comunitária, sobretudo quando havia quem contaminasse o debate de novas práticas com exóticas palavras e expressões, como: “sala de aula”, “turma”, “vaga”, “carga horária”…

As palavras produziam e reproduziam uma cultura inculcada no pensamento e no espírito, tanto nos adultos, quanto nas crianças. Era o caso do Domingos, que, no seu primeiro dia na Ponte, veio ao meu encontro, contorcendo-se, com ar de quem tinha a bexiga cheia. Perguntei:

“Queres saber onde é o quarto de banho, meu menino?”

Respondeu:

“Ó chefe, onde é que se mija?”

O seu grupo de integração já havia sido referido por duas vezes no dispositivo “Acho Mal”: 

“O Domingos disse cagadeira”. “O Domingos chamou panasca ao Rafael”.

Acaso alguém registasse uma terceira asneira proferida pelo Domingos (ou palavra que fosse considerada “palavrão”) o grupo de acolhimento e integração iria inteirinho para “tribunal”. 

Nos primórdios da Ponte, os jovens criavam dispositivos inspirados em arcaicas instituições dos adultos. Mais tarde, através de um enorme investimento no domínio sócio emocional, o tribunal viria a ser substituído pela criação de “comissões de ajuda”. Na Ponte, todos respondiam por todos. Individualmente, cada aluno ou professor era responsável pelos atos do seu coletivo. 

Conscientes do risco de virem a ser convocados pelo “Tribunal”, por via dos impropérios proferidos pelo Domingos, os seus companheiros levaram-no a incluir uma singular tarefa na sua planificação. O Domingos deveria procurar no dicionário as palavras “proibidas”. E assim fez.

A primeira palavra era “cagadeira”. Procurou-a na letra C. não a encontrou. Os companheiros sugeriram que procurasse na letra S a palavra “sanita”. Apareceu. O Domingos apagou o dito “palavrão” e no seu lugar escreveu o novo termo. Depois, trocou “cagar” por defecar. E por aí adiante…

“Diz aqui “expelir fezes pelo ânus”. O que é “expelir?”

“Vê no dicionário” – retorquiram os colegas.

“E o ânus é o cu?”

Pouco a pouco, o Domingos foi montando um novo glossário. Mas, forçado a modificar o seu léxico, jurou vingança. 

“Não fica assim” – murmurava entredentes. 

Concluída a tarefa, dirigiu-se ao dispositivo “Acho Mal” e nele escreveu:

“Eu acho mal que os meninos vão à casa de banho e, depois de defecar as fezes, deixem a sanita toda cagada”.

Uma reelaboração da cultura pessoal, profissional e comunitária começara no mês de outubro de 76. O André, vosso pai, nascera nesse mês. E o vosso avô começara, nesse mesmo mês, a “travessia da Ponte”. Em escassos anos, a escola ficou preparada para acolher o vosso pai e outros filhos de pais desejosos de que a escola de todos fizesse pessoas sábias, seres humanos felizes. 

Outro passo fora dado fora de Portugal, quando um esboço de comunidade de aprendizagem se implantou naquilo que foi o Projeto Âncora e, mais tarde, a Escola Aberta de São Paulo. 

Portugal voltaria a inovar, há exatos vinte anos. Um convite “especial” foi dirigido a centenas de educadores. Já não era um professor juntando-se a outros professores, para cumprir um projeto. Uma nova geração de pais e outros educadores idealizaram e fundaram novas construções sociais de aprendizagem e de educação, viabilizada por uma formação concomitante com a mudança. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXVII)

Canelas, 17 de julho de 2042

Ficastes surpreendidos – “chocados”, como disse o Marcos – com aquilo que escrevi na cartinha de ontem. Mas, crede que preencheria dezenas de cartas só com notícias de múltiplas violências. E ficai sabendo que, no julho de há vinte anos, paralelamente à desumana tragédia, brotavam e cresciam projetos de humanização. Esta cartinha versará musicais frutos do engenho humano, pretende ser como que um contraponto da fealdade exposta na missiva de ontem.

O congresso de Gaia começou com as canções interpretadas por um grupo de jovens com trissomia 21 e por um professor de música sensível e solidário. Escutei-os cantar versos de Pessoa, beleza pura reencontrada no Brasil, que foi mátria de uma segunda vida.

O Mestre Agostinho dizia ser o Brasil um grande laboratório do mundo. Até entre músicos encontrei fundamento dessa afirmação. Á maneira de Monsieur de La Palisse, diria que educador é aquele (ou aquela) que educa, que exerce uma práxis coerente e, enquanto fundamenta a prática com o quanto baste de teoria, contribui para a melhoria da educação. 

Aquele professor de música não recebia o devido reconhecimento pela beleza que produzia. À semelhança de um compositor de nome Heitor, que juntou centenas de pessoas num estádio, num pedagógico espetáculo musical. 

Heitor foi alvo de críticas por ter reinventado as fundações de uma comunidade musical brasileira.  Acrescentou o Canto Orfeônico, que integrava um projeto educacional mais vasto, a que juntou um “Guia Prático”, reunião de canções de várias influências musicais, para ser trabalhado nas escolas. 

Villa-Lobos traduziu os sons do Brasil. E, ao implantar o canto orfeônico nas escolas públicas, promoveu o encontro de vozes e culturas, divulgando o rico folclore do Brasil, do coco à ciranda e ao repente, cultivando manifestações populares, como o chorinho, porque sabia que a arte e a educação eram as bases da construção de uma sociedade. 

A data de nascimento de Heitor Vila-Lobos é, hoje, celebrada como o “Dia Nacional da Música Clássica”. Ele criou uma linguagem musical brasileira em obras que contemplam culturas regionais. Na sua obra se podia escutar o cantar dos pássaros e perceber a diversidade de influências e culturas. A ele se deve a fundação da Academia Brasileira de Música, pois acreditava que a música era um direito do povo e que “uma nação alfabetizada pode ter incorporada a sua personalidade princípios éticos a partir de um senso estético”.

Perdoai que acrescente algumas considerações mais ou menos didáticas a uma cartinha aberta, que acredito que alguns professores possam ler. Aproveito o ensejo para dizer aquilo que já sabeis, mas que, porventura, outros precisem saber. Considero que, pela via da música, da cultura musical o Heitor ajudava a fazer comunidade. 

Isso mesmo! A música tem um papel agregador. Moradores de um lugar geográfica e axiologicamente definido, conscientes de atuar em busca de um objetivo comum, promoviam coesão, cimento de comunidade. No compartilhamento de determinada visão de mundo, na visão de um mundo novo, uma nova humanidade renovava o conceito de laço familiar e revia a história (mal contada) dos vencedores.

Buber dizia que a tradição e as normas comunitárias não poderiam ser o único elo formador de uma comunidade. Existia uma constante renovação entre o real e a representação do real, que fazia com que o elo fundante de uma comunidade estivesse para além do campo dos dogmas e regras. Falava-nos de uma lei intrínseca da vida, de um processo criativo, que respeitava as tensões entre subjetividades. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXVI)

Cortiçadas de Lavre, 16 de julho de 2042

“Se a alma for deixada na escuridão, pecados serão cometidos. O culpado não é aquele que comete o pecado, mas aquele que causa a escuridão.” 

Em meados do século XIX, Victor Hugo isso dissera. Em meados de um julho do século XXI, notícias da “escuridão” enxameavam as páginas dos jornais.

“Médico é preso em flagrante por estuprar paciente durante cesárea. O ato foi filmado após funcionárias do hospital, que desconfiavam do comportamento do anestesista, se organizarem para expor o crime.

Dois homens são presos com material de pornografia infantil no Distrito Federal 

Mo Farah, atleta britânico que venceu quatro medalhas de ouro em Jogos Olímpicos, diz ter sido traficado ilegalmente para Inglaterra, onde foi escravizado.

Estudante de 18 anos é estuprada na Universidade de Brasília.

Três homens encapuzados executaram duas pessoas, quando ocorria uma partida de futsal entre times amadores.

Mulher morta e marido ferido com gravidade por familiar, em Bragança.

Comissão Independente criada para investigar abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa já recolheu 352 testemunhos de vítimas desde que foi criada, há seis meses.

Alunas denunciam estupro por professor de educação física.

Brasil perde duas crianças abaixo de 5 anos por dia para a Covid, diz estudo. 

Um bebé acabado de nascer foi encontrado, durante a noite passada, em Cascais. O alerta foi dado pouco antes da meia-noite, mobilizando equipas de emergência médica, que encontraram a criança enrolada num lençol, junto a uns arbustos.

Homem que matou irmãos de cinco e sete anos morre em confronto com a Polícia Militar.

Com 33 milhões de brasileiros sem comida, fome pede soluções urgentes.

Genro mata sogros a facadas e é preso em flagrante.

Polícia confirma seis mortos e mais de 20 feridos em Chicago. Atirador em fuga

Ataque aconteceu durante um desfile do Dia da Independência dos Estados Unidos da América.

Jovem grávida é encontrada morta dentro de mala em estrada de chão. “Quem a matou estava com um sentimento de muita raiva. Foi agredida com muita violência, antes da morte”, afirmou o delegado do caso.

Menina de 11 anos grávida após ser estuprada consegue fazer aborto legal.

Vinte e um anos de cadeia por matar vizinho, em disputa de caminho agrícola.

Latrocínio: travesti encontrada amarrada em casa foi estrangulada com lençol.

A Universidade de Aveiro suspendeu temporariamente um docente acusado de ter feito comentários homofóbicos na sua página da rede social Facebook.

Encontradas 46 pessoas mortas no interior de um camião no Texas.

Pelo menos 20 jovens são encontrados mortos em discoteca na África do Sul. As vítimas têm entre 18 e 20 anos. 

Autópsia a menina de três anos que morreu em Setúbal indicia abuso sexual.

Neste ano, em Portugal, já foram mortas 14 mulheres por um companheiro ou ex-companheiro.

Sem-abrigo assassinada a tiro, após pedir esmola. Mulher terá pedido um real, para comprar pão e foi baleada mortalmente. O caso aconteceu em Niterói. O agressor retirou uma pistola de uma mala e disparou contra a mulher que caiu inanimada no chão. Na altura, uma mulher que passava no local tentou ajudar a vítima, mas o agressor prosseguiu o seu caminho.

Muitos mais exemplos de desrespeito pela vida humana poderia acrescentar. Como o do assassinato de um jornalista e um indigenista, no Brasil de 22.Como se não bastasse esse cortejo de horrores, a OTAN dizia “estar a preparar-se para a guerra com a Rússia”.  

Maria Montessori bem dissera que uma educação fundada na competitividade negativa era a causa remota de todas as guerras.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXV)

Azoia de Cima, 15 de julho de 2042

Estava a chegar ao fim o longo périplo português de 2022. Passara por dezenas de lugares onde uma nova educação surgia. Dava por bem empregado o tempo gasto em viagens e reuniões, pois nessas andanças, a Vida me deu a conhecer extraordinários seres humanos. Entre eles, uma Ana, tão generosa como outras mães, que conheci, mas um pouco mais…

Com a minha amiga Mariana, eu combinara realizar um daqueles encontros virtuais dos idos de vinte, de que talvez vos recordeis e que nos levavam, de vez em quando, a dizer “Caiu!”? Pois foi num desses encontros que tive ensejo de encontrar essa Ana, que se ocupava em estudar a consciência em harmonia. Com ela, desfrutei da possibilidade de descobrir mais uma das minhas ignorâncias e de aprender.

A Sofrologia era uma ciência criada por um neuropsiquiatra colombiano de nome Alfonso Caycedo, que “conseguiu que as pessoas pudessem passar de uma consciência patológica para uma consciência sofrónica”, na qual pudessem viver o fenómeno extraordinário que elas são (“um tesouro único”) e maravilharem-se com isso. Caycedo definia um sofrólogo como um “pedagogo da existência”.

Nas palavras da Ana:

“Com a prática (e porque na sofrologia o corpo passa pela vivência) muda-se a forma como se vê a vida, os outros e, naturalmente, a forma como cada um se vê a si mesmo. No fundo, a sofrologia permite que cada um possa desvelar a sua consciência, conhecer-se melhor, gerir stress, fazer escolhas alinhadas com a sua natureza.

As atitudes, as escolhas, a relação com o mundo transforma-se honrando os valores profundos da existência. A sofrologia tem um método que leva ao saber ser. Isso leva tempo, prática, repetição, é certo. Mas, quando conquistado é duradouro, eficaz e muito consistente. Em Portugal, já existem alguns professores sofrólogos (poucos, mas bons) e algumas crianças a praticar sofrologia caycediana. 

Acredito que se a sofrologia fizesse parte da vida dos professores, eles seriam pessoas mais equilibradas, mais realizadas, e a escola outro lugar para as crianças, porque as escolas são as pessoas.

Sou uma mãe que teve sempre interesse nestes temas talvez por ter tido a sorte de ter uma avó e um pai professores. Ontem levei comigo o meu pai e hoje levo-o novamente e acrescento o marido e a filha de 8 anos (aquela que pensa tirar um ano sabático entre o 4º ano e o 5º ano).

Ontem quando o ouvi naquela pequena simulação, quando nos mostrou como passar do ser para o fazer, não pude deixar de pensar que no meu trabalho ensino como passar do fazer para o ser… Que coisa tão curiosa esta complementaridade!

Grata por dispensar o seu tempo a ler estas palavras. Desculpe se me alarguei, mas faço-o por ser uma apaixonada por aquilo que faço e porque vejo, todos os dias, adultos a relembrarem-se quem são, com os olhos brilhantes de entusiasmo, vivos.

Um grande abraço de gratidão por tudo o que tem feito pela humanidade.”

Queridos netos, pensei retirar da transcrição do email da Ana, a última frase. Decidi que ficasse, só para avaliardes a dimensão da humildade da Ana. Por mais que o vosso avô fizesse, ou tivesse feito, ficaria muito aquém daquilo que a Ana e outras extraordinárias mães fizeram pelos seus filhos.  

Quarenta e seis anos após um primeiro impulso inovador, brotavam novos focos de transformação. A Ana viria a abrir novas portas de sabedoria e a facilitar o surgimento de novas práticas educacionais.  

No mês seguinte, atravessei o mar, ao encontro das Anas brasileiras. Com a certeza de que, quando voltasse, encontraria um país melhorado pela generosidade das Anas portuguesas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXIV)

Santarém, 14 de julho de 2042

No julho de há vinte anos, Portugal continuava a arder. Um incêndio num campo agrícola me chamou a atenção. Quando chegaram ao local, os bombeiros não encontraram um incêndio “normal”, mas “uma pequena coluna de fumo num campo de milho e um corpo já carbonizado”. Era de “uma mulher com cerca de 50 anos”. Junto ao corpo encontrava-se um pequeno altar em madeira, algumas figuras de santos e velas.

Estranho, não é? No julho de há vinte anos, tudo era estranho: a repetição da tragédia dos incênciaos florestais, o silêncio nos lares, a violência nas ruas, uma guerra na Europa dita vivilizada.

Nesse mês, voltei a Santarém, num trânsito escalabitano de reencontro com a incansável Mariana da Comunidade de Aprendizagem Lezíria. Esta maravilhosa equipa viria a criar e a recriar projetos e, num deles, a ajudar uma excepcional Presidente de Junta a fazer regressar à Escola Alexandre Herculano a infância que dessa comunidade nunca deveria ter saído.

Imaginar modos de construir futuros mais promissores consiste em revisitar o passado. Voltemos, pois, a um passado em que eram organizados congressos, para debater a crise climática e a crise educacional – eram crises indissociáveis – nos mesmos termos de congressos ancestrais. Quem olhasse o cardápio dos congressos dos idos de vinte estaria a ler réplicas de programas de congressos das décadas de 70 ou 80. Apenas se dava nomes novos a velhos temas. 

Colhi um exemplo, ao acaso, no prospeto anunciador de uma convenção universitária. Quarenta anos antes desse evento académico, o vosso avô havia apresentado uma comunicação, num encontro em tudo idêntico à referida convenção. Em 1975, numa região rural, ganhei fama de bom professor (fosse lá isso o que fosse…), era muito querido pelas famílias dos meus alunos e com fama de bom professor, sofri perseguição. 

Por ser um professor “diferente”, descobri que, se o maior aliado de um professor é outro professor, o maior inimigo de um professor diferente” é outro professor. Uma professora da minha escola lançou um boato. Fez constar que eu havia posto duas crianças nuas, simulando o ato sexual, para explicar como nasciam os bebês. Tal e qual!

Alguns pais de alunos acreditaram que eu tivesse sido capaz desse hediondo ato. Foram ao meu encontro, para me matar. Escapei por um triz. E tudo se esclareceu num dramático encontro. Tomando consciência de que poderiam ter assassinado alguém inocente, os pais dos meus alunos queriam ir à casa da professora boateira, para a agredir. Opus-me a que fossem (apesar de desejar que ela apanhasse uma sova, confesso)

Nos idos de setenta, para que se prevenisse situações de calamidade, eu tinha chamado a atenção para o maior obstáculo à mudança educacional. Afirmara que o maior obstáculo era eu, ou cada um de nós. Se a cultura profissional dos professores não se alterasse, verões incendiários e fantasmas de novas guerras regressariam.

Quatro décadas decorridas, muitas teses publicadas, muitos cursos e congressos realizados, pouco ou mesmo nada se alterara na formação e na cultura pessoal e profissional dos professores. 

Na referida convenção universitária dos idos de vinte, um pesquisador apresentou uma comunicação subordinada ao tema “O pior inimigo dos bons professores são seus próprios colegas de classe”. Cito:

“O pior inimigo dos bons professores são seus próprios pares. São eles que colocam obstáculos, que criticam secretamente ou mesmo abertamente as iniciativas que querem empreender”.

Nos idos de vinte, por que haveria quem se surpreendesse com guerras e verões assassinos?

 

Por: José Pacheco

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