Algoz, 22 de junho de 2042
Netos queridos,
Quando a eternidade se aproxima, enquanto o discernimento não se esvai por completo e a calma se harmoniza com a urgência, não encontro modo mais fácil de conversar convosco do que através destas cartinhas, que talvez venham a ser lidas por outros netos e por educadores sensíveis.
Como vos disse em outra missiva, nos idos de vinte, os educadores ainda não tinham despertado para o rico patrimônio legado pelos mestres de antanho. E eu dirigia apelos ao educador que existia em cada um de nós, que fizéssemos das obras dos mortos bom proveito, para delas extrairmos elementos úteis para os projetos dos vivos.
Naquele tempo, eu adotara uma escrita em tom coloquial, acessível, a que juntava a sugestão de abordagens ditas científicas, que as universidades poderiam (e deveriam) produzir. Nas entrelinhas, talvez o leitor encontrasse contribuições para repensar a escola e a concebesse como lugar e tempo que, efetivamente, educassem. Á míngua de melhor designação, poderia dar a essa nova construção social o nome de comunidade de aprendizagem.
Pôs Saramago estas palavras no seu “Ensaio Sobre a Cegueira”:
“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”.
Estavam cegos os educadores. Cegos de uma estranha cegueira. E nem refiro á dos olhos que não liam o patrimônio científico legado por eminentes pedagogos. Os educadores não viam sequer os novos e claros caminhos que a lei apontava.
Por exemplo, a Lei de Bases. No seu artigo quadragésimo oitavo, estava escrito:
“O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes”.
Lestes bem. Os professores deveriam viver na comunidade onde residiam. A Ponte bem o tentou. Dispondo da possibilidade de escolher os seus professores, lhes conferia estabilidade e a possibilidade de aprofundar o conhecimento do seu “círculo de vizinhança” (embora não lhe dessem essa designação, no início do século), da sua aldeia, do seu povoado. E de encontrar modos de relacionamento com “círculos de proximidade” (só viriam a dar-lhe esse nome, nos idos de vinte), para se organizarem em comunidades.
O articulado da lei permitia ir além dessa possibilidade, quando “propunha” que, em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino a administração e gestão se orientassem por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo.
Todos! Lestes bem. Para tal, criamos assembleias, comissões de ajuda, acordos de convivência, inúmeros dispositivos de relação horizontal. E cuidamos de elaborar um contrato de autonomia, do qual retiramos resquícios de liderança tóxica.
O artigo da Lei de Bases a que tenho referido dizia ainda que, na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. Ora, aquilo que acontecia era em tudo oposto ao cumprimento deste e de outros artigos da mesma lei. Muitos administradores comportavam-se como “ditadorzinhos de meia-tigela” e havia diretores que se comportavam como “reizinhos donos do pedaço”. Remédio santo: extinguimos órgãos unipessoais e o dever de obediência hierárquica.
Porém, o ministério traiu acordos. Disso vos falarei.
Por: José Pacheco