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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCII)

Portela do Fojo, 25 de fevereiro de 2042

Como, ontem, vos disse, a última semana de fevereiro de há vinte anos ficou marcada pelo início de um amplo movimento de renovação pedagógica. Após dezenas de anos de incúria e sucateamento da escola pública, urgia defendê-la, libertá-la de obsoletos atavismos. A escola pública deveria ser um serviço público, gratuito – uma gratuidade decorrente da cobrança de impostos – e ter caráter universal. Para se manter fiel à sua origem, deveria ser geradora de igualdade de oportunidades e legar valores como a liberdade, igualdade e fraternidade.

O estado impunha padrões de educação idênticos para a dita “escola pública” e para a particular. Embora dispusesse de maior margem de autonomia, as escolas privadas respeitavam regras comuns à “escola pública”. Não era gratuita, visava fins lucrativos e era considerada veículo transmissor de valores religiosos, militares, elitistas, entre outros. Efetivamente, a quase totalidade das escolas ditas privadas correspondiam a esse perfil. Mas havia excepções.

Por que insisto em colocar aspas na expressão “escola pública”? Porque a maioria das escolas ditas “públicas” desse tempo não eram escolas públicas, na verdadeira acepção da palavra, pois negavam o direito à educação a milhões de seres humanos. Perante ambiguidades e contradições, operamos uma redefinição do conceito de Escola Pública – Seria aquela que a todos assegurasse o direito a uma boa educação, que educasse segundo uma nova e humanizadora visão de mundo, independentemente de ter origem estatal ou privada.

Nesse sentido, a maioria das escolas ditas “públicas” não eram públicas. E, nesse tempo, havia escolas ditas particulares que eram… públicas. Entre ela, a Escola Aberta, gratuita, filantropicamente sustentada pelo maravilhoso ser humano Arturo Lazarte. E a Open Learning, iniciativa de um pai preocupado com a educação dos seus filhos. Eram escolas de excelência acadêmica e inclusão social, que viriam a conferir projeção internacional a projetos verdadeiramente inovadores. 

Nesse fevereiro, descobri outras escolas particulares realmente públicas, de que vos falarei em outra cartinha. E acompanhei secretarias de educação compostas de educadores éticos, que abriram caminhos para uma indispensável revisão normativa. 

A regulamentação da lei engendrada por um sistema educacional hierárquico, autoritário, intelectual e moralmente corrupto, estava fundado no paradigma da instrução, não servia propósitos de mudança. Se pretendíamos operar inovação pedagógica, seria necessário, indispensável operar inovação normativa. 

As portarias e resoluções criaram grupos de trabalho, aos quais foram atribuídas competências como: “viabilizar a infraestrutura adequada à implantação de comunidades de aprendizagem; elaborar proposta de diretrizes de política pública e validar indicadores de melhoria da qualidade da educação; propor e acompanhar ações de formação; elaborar e adequar normativos para concepção e prática de novas construções sociais de aprendizagem e de educação”. 

A saga iria culminar no 26 de outubro de há vinte anos. Nessa data, Darcy Ribeiro completaria cem anos de idade. No Darcy político convergiam contribuições de Freire, Nilde, Anísio, Nise, Lauro, Cecília, Milton, Amanda, Florestan, Agostinho… 

Condignamente, celebramos esses mestres, mas fomos além de celebrar um centenário. A mudança não aconteceria por via de teses feitas de teoricismo estéril, nem nos palcos dos congressos, mas praticando Darcy no chão das escolas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCI)

Chã de Álvares, 24 de fevereiro de 2042

Lá, pelos idos de vinte, a Lei de Bases dizia-nos que a educação era dever da família, da sociedade e do Estado, através da escola. Inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, a lei reafirmava que a educação tinha por finalidade o pleno desenvolvimento do educando. 

Decorridas muitas décadas sobre a data da sua publicação, ainda lidávamos com os efeitos do analfabetismo funcional, com a exclusão escolar e social e com outras manifestações de subdesenvolvimento educacional. O rendimento escolar mantinha-se num nível muito baixo e era um dado preocupante, dado que a maiores investimentos, à introdução de inúmeros projetos de “intencional melhoria do sistema” e à intensificação das ações de formação de professores, não correspondia um significativo aumento dos índices de aprendizagem. 

Se os resultados não correspondiam à proposta da lei vigente, isso se ficava a dever… ao “sistema”. Não bastava mudar as leis, por melhores que fossem as alterações. Somente conseguiríamos melhorar a educação dos nossos jovens, quando mudássemos as práticas. 

A reprodução do modelo dessa escola, universalmente conhecida, era tão aceite pela sociedade que, raramente, despertava possibilidade de pensá-la diferente. Estruturado há mais de duzentos anos, o modelo se reproduzia de forma tão natural, que parecia perpetuar-se. A sua estrutura e funcionamento remontavam ao tempo da Primeira Revolução Industrial e atendia às características fabris – bancadas individuais, sinais sonoros marcando os tempos de trabalho, fragmentação do objeto a ser fabricado – e a necessidades sociais do século XIX. 

A fragmentação materializara-se no currículo. Organizado em disciplinas, o conhecimento foi recortado, tornando quase impossível a compreensão das relações entre as partes. O conhecimento dividido era “ensinado” ao longo do ano letivo, por etapas: ano, bimestre, trimestre, semestre, sem que se percebesse quaisquer indícios de fundamentação científica para tal prática. 

Se a família terceirizava a educação dos seus filhos e a escola não ensinava, uma sociedade doente considerava normal que assim fosse. A normose instalara-se, porque todo hábito, uma vez adquirido, se afundava no subconsciente, transmitido pela educação familiar, social e escolar. A crença nas virtudes da velha escola mantinha os professores na ilusão de uma possível melhoria de um modelo educacional em acelerada decomposição. 

As medidas de política educacional sofriam o efeito da descontinuidade, da definição de metas de curto prazo e projetos abandonados, a cada mudança de partido no poder, sem que uma avaliação dos efeitos fosse concretizada. Há cerca de vinte anos, o que havia produzido o modelo de educação predominante? Escassa aprendizagem, indisciplina, muitos milhões desperdiçados na crise da escola da modernidade. 

A melhoria da educação era reivindicação de educadores conscientes, evidenciando a urgência da reconfiguração das práticas escolares. O envelhecimento da profissão de professor, o contraste entre grandes investimentos e baixos resultados, uma gestão hierárquica e não-democrática eram alguns dos indicadores que validavam a má qualidade da educação. 

Era esse o saldo de uma desastrosa condução do “sistema”. O que fazer diante desse cenário? Como fazer das escolas lócus de desenvolvimento sustentável?

Na última semana do fevereiro de há vinte anos, centenas de educadores se uniram num denodado e definitivo processo de mudança. Contar-vos-ei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCC)

Machio, 23 de fevereiro de 2042

Estávamos no início dos anos setenta e o episódio passou-se no “Estádio 28 de Maio”, em Braga. A curiosidade levou-me a um dos magnos encontros de professores promovidos pelo Estado Novo. Contrariando o ambiente de ardente apologia da situação e das louvaminhas ao governo da Nação, cometi o atrevimento de formular uma pergunta dissonante, daquelas que ninguém no seu perfeito juízo ousava sequer pensar. 

A pergunta tinha a ver com algo que, já então, me causava estranheza: o facto de o vencimento dos professores aumentar em função do tempo de serviço. Eu considerava estranho que não fosse proporcional ao número de horas de trabalho, ou que não tivesse relação intrínseca com a qualidade do desempenho. 

Nesse dinossáurico tempo de denunciantes, era perigoso pensar, e bem pior dizer o que se pensava. Mas disse-o. 

Jamais se vira tal desaforo! Ficou-me bem cara a proeza, porque a polícia política não era mansa no tratamento dos dissonantes. 

Um colega mais velho, salazarista convicto, afastou-me do microfone, puxou de galões e foi ovacionado: 

“Olhe que eu já levo vinte e tal anos de serviço e você é novo nisto. Ouviu? Quando chegar à minha idade, há-de dizer-me se ainda pensa da mesma maneira!” 

Creio já ter chegado à “sábia idade da experiência”, pois já conto muito mais que os “vinte e tal anos de serviço”. Gostaria de reencontrar aquele colega para lhe dizer que continuo a pensar do mesmo modo. O que a experiência me ensinou foi que não deveria aproveitar a experiência da formação inicial, nem a experiência das rotinas instaladas, que em muitas escolas encontrei. No lugar do apelo à experiência eu colocaria o valor da solidariedade, que ajuda a aprender com os outros. Nos idos de vinte, cinquenta anos volvidos sobre esse episódio, eu continuava a irritar os guardiães do templo corporativo, questionando o divisionismo, que consentíamos e que enfraquecia a nossa profissão. 

Convidava os professores à reflexão sobre sacrossantos critérios adotados em concursos e estabelecimento de salários: “anos de experiência”, “graduação”, “doutoramento” e outros que tais. Não estava provado que um doutoramento ou a experiência acumulada “no decurso de tempo de serviço” conferisse maior qualidade ao exercício da profissão. Que não se confundisse “experiência” com “formação experiencial”, porque eram conceitos bem diversos. Quem dava aula só tinha um ano de “experiência”, porque repetia a “experiência”, ano após ano. Essa “experiência” acumulada em anos de mesmice de nada servia. 

E o que tinha sido a chamada “avaliação de desempenho”? Algo que jamais passou de rotina administrativa, que em nada concorreu para a valorização profissional. Nada se avaliou, ninguém avaliou coisa nenhuma, ninguém foi avaliado. 

A nota final de curso o que representava? Nos trinta anos de Ponte, nem sempre (ou quase nunca, melhor dizendo) os professores com melhor nota foram os melhores professores na prática. 

Que valor tinha uma lista graduada? O critério “tempo de serviço” significava “quanto mais tempo me servires, mais te promovo e te recompenso”? Estaria tão enraizada a tacanha mentalidade de funcionário público e a obediência cega ao Estado-patrão? 

O “legalismo” formatou-nos numa profissão espartilhada em sectores e categorias hierarquizadas, em diferentes componentes letivas, em vencimentos desiguais para trabalho igual. Por essas e por outras, nos contratos e termos de autonomia constava a necessidade de estabilidade das equipes de projeto, independentemente da quantidade de “anos de experiência”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLIX)

Figueira de Castelo Rodrigo, 22 de fevereiro de 2042

Nos idos de vinte, um inquérito conduzido pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revelou um país de fortes desigualdades sociais e educacionais, no que tocava ao acesso à cultura. Apurou que, no ano 2021, quase dois terços dos portugueses não leram um só livro. As desigualdades territoriais e socioeconómicas moldavam as práticas e os hábitos culturais dos portugueses. 

Foram aplicados inquéritos a cidadãos residentes no país, com quinze ou mais anos de idade. O estudo abordou áreas como: consumos culturais por meio da Internet, televisão e rádio; hábitos de leitura em papel e em formato digital; frequência de bibliotecas, museus, galerias de arte e monumentos; ida a espetáculos, a concertos e ao cinema. E, como viria a dizer o José, era revelador de “lacunas, há muito verificadas”.

Nos 12 meses anteriores ao início da pandemia, 80% dos portugueses não tinham frequentado uma biblioteca sequer. Só 31% e 28%, respetivamente, visitaram algum monumento histórico ou um museu, e apenas 6%, galerias de arte e sítios arqueológicos. Entre os espetáculos ao vivo, os mais frequentados foram os festivais e as festas locais (38%), os concertos ao vivo (24%) e o teatro (13%). Os 7% que iam ao circo eram mais do que aqueles que assistiam a eventos eruditos como concertos clássicos (6%), dança ou ballet (5%) e ópera (2%). 

Os portugueses passavam mais horas na Internet, a trabalhar ou estudar, do que em atividades de lazer. Mas, a percentagem dos que se ligavam à rede por lazer era de 82%, muito superior aos que a ela acediam para estudo ou trabalho. A internet constituía, também, uma porta de entrada para diversos interesses culturais:

“Pelo menos uma vez por semana, 35% dos inquiridos ouviram música a partir da Internet, 33% leram sites de notícias, 27% procuraram informações precisas, 16% fizeram buscas na Wikipédia e outras enciclopédias online e 15% procuraram informação sobre livros, música, cinema e espetáculos”. 

A percentagem daqueles que, diariamente, preferiam ver filmes, séries e telenovelas na televisão era de 90%, o dobro dos ouvintes diários de rádio. Mas, os números críticos (chocantes!) desse estudo eram aqueles que se referiam aos hábitos de leitura. 

A percentagem de inquiridos que não tinham lido um único livro impresso era de 61%. A maioria dos inquiridos “não beneficiou do estímulo à leitura gerado em contexto familiar”. A origem socioeconómico era determinante: 

“Os mais assíduos leitores de livros eram os que tinham ensino superior, ou cujos pais o atingiram”. 

Era muito elevada a percentagem daqueles que, na infância e adolescência, nunca tinham ido a uma livraria (71%), a uma biblioteca (77%) ou a uma feira do livro (75%), sendo alto, também, o número dos que nunca tinham recebido um livro (47%) ou a quem ninguém lera uma história, em criança (54%). 

Era relevado que:

“Se [o inquérito] revela que quanto mais jovem se é e quanto mais elevadas as qualificações académicas dos pais maior é a probabilidade de ter usufruído, na infância e na adolescência, de experiências de contacto com o mundo do livro e da leitura espoletadas pelos progenitores ou por outros familiares, importa frisar que a maioria dos inquiridos ‘raramente’ ou ‘nunca’ desfrutou, até aos 15 anos de idade, da leitura de histórias e da oferta de livros por parte da família ou, inclusivamente, de um conjunto de práticas exodomiciliares como idas a feiras do livro, livrarias ou bibliotecas”.

O que teria isto a ver com a educação que se fazia nos idos de vinte?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLVIII)

Moimenta da Beira, 22 de fevereiro de 2042

Perto do final da primeira pandemia deste século, investigadoras previram que a pandemia seguinte seria proveniente da Amazônia. A deflorestação tornava, cada vez mais, possível que ela surgisse da maior floresta tropical do mundo.

A Mariana, professora de ecologia, afirmava que a deflorestação em zonas tropicais era, talvez, das maiores fontes de emergência de novas doenças, se não mesmo a maior. No janeiro de 2022, a deflorestação na Amazónia brasileira bateu um novo triste recorde: 430 quilómetros quadrados de vegetação nativa destruídos, um aumento de 419% em relação ao mesmo mês de 2021. E a Márcia avisava:

“O potencial está lá, temos um ‘reservatório’ de diferentes vírus em animais selvagens, que estão lá a viver, sem incomodar ninguém”.

Epidemiologistas, economistas, ecologistas e biólogos ligados à conservação da natureza, nos Estados Unidos, na China, no Brasil, na África do Sul e no Quénia, trabalharam durante quase um ano nesse estudo.

“À medida que começamos a invadir o ambiente dos animais selvagens, aumenta a possibilidade de vírus ainda desconhecidos infetarem seres humanos. 

A pandemia seguinte poderia ter proporções maiores do que a covid-19 e a Humanidade parecia não ter entendido a mensagem de um vírus. A educação familiar, social e escolar ia na contramão da prevenção. E a Márcia lamentava negacionismos, fundamentalismos conservantismos e outras pragas:

“Os modelos de desenvolvimento para a Amazónia são totalmente errados, focam-se na exploração, ignorando por completo a população, as necessidades e o conhecimento locais”.

O Reino Unido exportava para o Brasil, México, Índia e Indonésia um herbicida altamente tóxico fabricado na cidade de Huddersfield… proibido para uso na União Europeia. O Brasil era o lixão mundial do agrotóxico.

A autora denúncia foi obrigada a deixar o Brasil, após a publicação do seu estudo. 

O Maurício criador da Turma da Mônica, era conciso, quando dizia:

“Seu filho não pode chegar à Internet sem passar pelo livro. Se não for capaz de escrever aquilo que pensa e de entender o que lê, vai para a Internet para virar um idiota”.

Hábitos de leitura e a produção de conhecimento eram fundamentais para a conscientização. Mas, cadê a criação de tais hábitos? 

Percorri corredores de ministérios, visitei divisões de educação de câmaras municipais, entrei em secretarias de educação, vivi no chão das escolas. Raramente, vi alguém dentro das bibliotecas. Apenas funcionários, conversando, batendo teclas num computador, trocando mensagens em redes sociais.

Por duas ou três vezes, assisti à pesquisa feita por alunos, assistidos por solícitos bibliotecários, por não saberem localizar os livros necessários. Também escutei a conversa de um ruidoso grupo de técnicos de uma secretaria de educação, que invadiram a biblioteca, por não haver… sala disponível para reunir. 

Uma criança segredou-me ao ouvido que os professores “mandavam de castigo para a biblioteca”. E acrescentou:

“Mas, a senhora da biblioteca é boazinha, deixa a gente ficar no computador, na internet e a fazer jogos no telemóvel”. 

Um ministro fez chegar a todas as escolas e departamentos da administração educacional uma biblioteca dos professores, constituída por mais de uma centena de obras de indispensável leitura. Muitos professores ignoravam a existência dessa excelente coleção de livros. Os cartões de registro de “empréstimo” colados na contracapa dos livros estavam em branco. Ninguém lera tais livros.

A quem conviria ocultar essa triste realidade?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLVII)

Pampilhosa da Serra, 20 de fevereiro de 2042

Como vos disse, netos queridos, a discussão em torno dos exames, provas, testes e afins era uma espécie de passatempo muito do agrado dos responsáveis pela gestão de um malfadado sistema educacional, que vigorou até aos anos trinta. 

Um normativo de 1976 fora certidão de óbito dos exames da “quarta classe”. Malgrado as frequentes viagens a uma Finlândia da moda, que os havia, quase totalmente, erradicado, os exames retornaram das catacumbas da pedagogia e se mantiveram vivos nas representações sociais e ativos nas práticas escolares. E, em 1977, ministeriais orientações viriam a abrir caminho para a proliferação de ambiguidades: 

“Talvez que, em Portugal, quando na escolaridade obrigatória para todos não houver diferenças tão significativas, o problema se coloque de modo diverso; talvez o termo exame venha a ser substituído pelo de prova, teste, ou outra designação adequada”. 

Pelo subido coturno desse normativo se depreendia que, para o ministério da educação, tudo não passaria de uma mera questão de terminologia. O resultado de décadas de fatais hesitações estava à vista de quem quisesse ver: para um “ensino em massa”, planejamento de aulas para o “aluno médio” e reprovação para os “menos aptos”. Restava saber a quem seria dada aula, acaso o “aluno médio” faltasse à escola. Ou como se reprovaria aqueles que a abandonavam.

Ciclicamente, se legislava absurdos, bovinamente aceites por professores legal e teoricamente desarmados, por via de uma formação de péssima qualidade. 

“Que lhes valeu todo o curso que fizeram durante longos anos? Em vão leram livros copiosos, beberam a caudalosa erudição dos catedráticos imponentes, fizeram provas escritas de inúmeras laudas, com letra miúda. Palavras, palavras, palavras que o vento levou”. 

Quem assim nos falava era a Cecília Meireles. Em 1930! 

Nos idos de vinte, os professores acumulavam certificados de “capacitações”. Se a competência desses professores fosse medida pelo número de cursos frequentados, a sua qualificação seria extraordinária. Se a qualidade das escolas pudesse ser medida pelo peso de diplomas e certificados, já teria acontecido uma revolução em cada escola. 

A acreditar numa pesquisa do Naércio Filho, de 2007, os professores que tinham feito muitos cursos não tinham melhorado a aprendizagem dos seus alunos. As conclusões desse estudo explicavam a inércia dos professores:

“Quando se trata do ensino público e dos cursos de capacitação oferecidos aos professores dessas redes, a constatação é que eles não estão fazendo diferença no desempenho dos alunos, apesar de serem divulgados como uma das iniciativas para melhorar o ensino. O professor vai, fica ouvindo sobre várias linhas pedagógicas e, no fim, não aprende nada que consiga usar.” 

Em Portugal, após o incremento da formação continuada de professores e do investimento de milhões de euros, os resultados foram decepcionantes – quase nada se alterou na atitude dos professores e pouco terá mudado nas suas práticas. O modelo de formação, que ainda predominava, era a negação do que se pretendia transmitir. 

Se os formadores ensinavam métodos ativos a professores inativos, o que ficaria? O professor aprendia a “teoria “transmitida”, ou a prática “praticada”? 

Os formadores pareciam adoptar a máxima “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, ignorando que acontecia formação sempre que um professor estabelecia um diálogo entre o eu que agia e o eu que se interrogava, num processo social em que transformava o conhecimento que tinha da realidade.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola DCCLXLVI

Petrópolis, 19 de fevereiro de 2042

Em meados do mês de fevereiro de há vinte anos, atravessei, de novo, o Atlântico. Fui de São Paulo a Pampilhosa da Serra, acompanhado de preocupações. A forte tempestade que atingiu Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, já causara mais de cem mortos. Muitas delas, crianças. E havia muitas pessoas dadas como desaparecidas.

O número de mortos ultrapassava o registrado em 2011, quando 73 pessoas morreram na cidade, devido às chuvas. Nesse ano, toda a região serrana foi atingida por tempestades e 918 pessoas morreram.

Estávamos perante mais uma tragédia anunciada, causada pelo desmatamento ilegal, por assoreamentos, pela incúria. As águas pluviais represadas em frágeis encostas viravam torrentes, abrindo caminhos novos, provocando o caos. Os meios de comunicação social mostravam casas destruídas por deslizamentos de terras, carros levados pela corrente, empresas inundadas pela água que corria pelas ruas do centro histórico da cidade.

Agentes da Guarda Civil acompanhavam os resgates dos corpos, que estavam presos a ferragens, ou submersos. Temia-se que o número de mortos pudesse aumentar ainda mais à medida que bombeiros e voluntários escavavam os restos de casas levadas por torrentes de lama, muitas delas em favelas empobrecidas das encostas. Foi decretado o estado de calamidade pública e as equipas dos hospitais foram reforçadas para o atendimento às vítimas.

Estávamos a atravessar uma das eras de razão cínica. A ignorância conduzira idiotas ao poder. A pulsão da morte prosperava. No Brasil, como no Portugal de 2017, sucediam-se cíclicas tragédias. Favelas e aldeias serranas foram destruídas. Centenas de seres humanos pereceram em derrocadas e foram imoladas em incêndios florestais.

Pessoas resgatadas com vida, ou que haviam perdido todos os seus haveres, eram alojadas em abrigos, a maioria em escolas. Instituições de caridade pediam doações de colchões, cobertores, alimentos, água, roupas e máscaras para as vítimas. Surgiam iniciativas como a da Cecília, para acudir a urgentes necessidades de com um povo abandonado à sua sorte. No 17 de fevereiro de há vinte anos, a Cecília “atualizava” o seu “modus operandi”:

“Boa noite, amigos! Hoje destinei 700 reais para compras de fraldas, mamadeiras, lenços umedecidos, chupetas, leite. E mais 700 reais para a compra de Itens de higiene, sabonetes, pasta de dente, escova de dente, alimentos prontos (suco, biscoito, todinho). E, no fim da tarde, compramos 450 reais descartáveis, que foram destinados para uma unidade escolar que está, juntamente com uma igreja, produzindo quentinhas para distribuir de dia e de noite. 

Saldo do dia: 1.850 motivos para manter viva a esperança no poder do bem e em motivos para agradecer a cada um!”

Os prédios das escolas sempre albergaram ocultas tragédias – as educacionais. Numa delas fora encontrado o cadáver de uma aluna vítima de enxurrada. Na rua foi encontrado o cadáver da professora Raquel. Tantas vidas precocemente ceifadas!

Quem dera que, nesse tempo, a Cecília pudesse dispor de maiores meios de atender a necessidades essenciais da educação petropolitana. E, sobretudo, que pudesse influenciar, tomar decisões, que permitissem que os prédios das escolas fossem usados para abrigar sobreviventes de tragédias, mas também para as prevenir e evitar.

A prevenção estava na prática de uma nova educação, aquela que a bondosa e solidária Cecília viria a conceber, mais tarde, para que jamais fosse necessário usar as escolas para mitigar os efeitos de tragédias anunciadas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLV)

Guarulhos, 17 de fevereiro de 2042

Hoje, já ninguém se recorda do que era a escola dos idos de vinte. Nesse tempo, estava escrito no “Aurélio” que escola era “estabelecimento público ou privado onde se ministra ensino coletivo”. Efetivamente, as escolas eram coletivos de solidões. E o vosso avô, que participara de coletivos solidários recebia denúncias e apelos: 

“Nas escolas por onde passei eu estava a empedrecer” Os dias que correm são duros, muito por obra e graça do talibanismo de certos “professores.”

A Denise colocava a palavra “professores” entre aspas. Naquele tempo, havia professores e “professores” eivados de viciosos fundamentalismos, presumindo que a escola sempre fora assim e assim continuaria a ser. 

Eu escutava professores sem aspas. Como o Carlos: 

“Ao regressar à escola, deparei com uma realidade estagnada no tempo. Deparei com uma escola culturalmente insignificante para as crianças. Deparei com um mundo que eu julgava ultrapassado. O que mais me espantou foi a falta de profissionalismo dos professores e a sua ligeireza de comportamentos! Fiquei siderado com coisas a que assisti e outras que vim a saber. Percebi que, no tempo que estive afastado da escola, defendi, frequentemente, autênticos assassinos de futuros. No entanto, foi mais que óptimo sentir aquele prazer diário de voltar à escola!!! Sentir-me um Peter Pan que, todos os dias, mergulha num mundo mágico e leva consigo a Fada Oriana para mostrar às crianças que há outra escola na escola. Pensei que uma nova escola se poderia construir rapidamente e em qualquer lado. Daí que, ao fim de pouco tempo, tenha ficado ligeiramente desanimado. Há séculos a percorrer. Mas lembrei-me de um poema da Clarice Lispector, que nos diz que mais importante que a velocidade é a direção. E fui construindo um caminho feito de pequeninos passos, quantas vezes feitos de pequenos desânimos”

Muitas escolas eram lugares habitados por sombras e rituais cinzentos. Era sabido que qualquer mudança só seria possível com os professores que tínhamos (com aspas e sem aspas), que a mudança aconteceria quando os professores quisessem. Também sabíamos que havia quem não quisesse e se arrogasse do direito de não querer. Que dizer aos professores lesados pelos que “não queriam”? Que dizer à Laura, que me escrevia, indignada: 

“Nesta escola, eu estou a empedrecer. Vê lá tu que um aluno – o Alex – ficou sem intervalo e sem aula de Educação Física. Foi mandado, de castigo, para a Biblioteca. Só porque a professora não quis saber por que razão o aluno não tinha feito os deveres de casa. 

O aluno passava a noite na rua, catando papelão. Neste ano, já mudaram de turma quatro alunos. E mandaram outros quatro para outras escolas. A diretora da escola mandou um “convite” à mãe do Alex, para que ela o mudasse para outra escola. Um “convite”! Que cobardia! 

Ficou um clima difícil de aguentar, quando eu defendi os direitos do Alex. Ele estava sendo maltratado pela professora da sua classe, só porque “não acompanhava a turma”. Ameaçaram-me por eu o ter defendido. E perguntaram-me se eu o queria na minha turma. Eu respondi que sim. E, no dia seguinte, ele já estava na minha sala. 

Até hoje, o Alex nunca me desrespeitou. Eu encontro sempre um tempo para o ajudar”. 

Educadoras como a Laura faziam-me sentir orgulhoso de ser professor. Eram merecedores da solidária ajuda de um frágil aposentado. No 17 de fevereiro de há vinte anos, enviei a professores éticos, como a Laura e o Carlos, um convite para uma caminhada, rumo a uma nova construção social de educação. Partimos, idealizando o real, realizando o ideal.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLIV)

São Paulo, 16 de fevereiro de 2024

Ontem, completaram-se vinte anos sobre um dia memorável. A manhã foi passada num encontro presencial e virtual, na Escola Aberta de São Paulo e na Open Learning School. De tarde, num belo projeto concebido pelo Fernando, pela Letícia e pelo seu coletivo. Dele vos falarei em outra cartinha.

Na Escola Aberta, conversei com alunos, pais de alunos, professores, visitantes, auxiliares e voluntários. Hoje, numa velha pen drive, encontrei uma gravação feita nessa manhã. Nela, o Luciano me contava por que decidira ser voluntário naquela escola:

“O que eu descobri na Escola Aberta é que existem camadas, para entender essa realidade. Num primeiro momento, quando você chega, fica encantado pela falta de paredes, pelo ambiente calmo, alegre. Depois de um tempo, você vai entendendo um pouco mais dos dispositivos de aprendizagem, das tutorias, as pessoas transitam no espaço. Depois, para minha surpresa, existem outras camadas, que tem a ver com a parte da relação, como as pessoas se ajudam, como se tratam, como a informação flui dentro da escola. isso é muito bonito”.

O meu amigo Mauro também me contou as suas impressões:

“Desde a primeira vez em que ouvi falar em inovações na educação, um vislumbre se repete: o de estar a presenciar algo que se tornará memória valiosa no futuro; o de fazer contato com uma realidade a que todos terão acesso, um dia.

Confesso que não é totalmente confortável a sensação de antecipar devires. A prudência interna questiona: É pretensão? É desejo? Será o efeito da autocondescendência, que dá bons olhos para as causas que defendemos? 

Ao longo dos anos, minha convicção aumentou: o dia da renovação maciça na educação chegará. E, quando chegar, me lembrarei das ocasiões em que encontrei pessoas capazes de insuflar essa certeza.

Neste dia 15 de fevereiro, mais uma vez, a sensação se repetiu; e me vi no futuro contando da satisfação de ter estado presente, face às consequências que terão ocorrido.

O local: Escola Aberta de São Paulo. Os personagens: José Pacheco, Edilene Morikawa, Marcelo Lopes, Luciano Araújo e muitos outros colaboradores, apoiadores e amigos. O evento: lançamento da Open Learning School no Brasil. A proposta: difundir valores, concepções e práticas da Escola Aberta de São Paulo junto a outros públicos e locais, mantendo o compromisso com a educação humanizada, democrática, diversa e inclusiva. Reafirmando a intenção de contribuir com a educação pública em favor de futuros melhores para todos.

Antes e depois do evento, caminho por entre alunos da Escola Aberta de São Paulo, ora mobilizados em seus percursos de atividades, ora a aguardar os responsáveis que vêm buscá-los. 

Há nesse contato muitos aspectos a destacar, mas o que mais me atrai é a atitude das crianças. Muitas vêm conversar comigo, curiosas acerca de um novo personagem naquele espaço. Contam o que fizeram desde que entraram na Escola Aberta. Há entre elas nítidas demonstrações de respeito ao tempo de fala, às diferenças de opinião, aos respectivos tempos de aprendizado. A interlocução das crianças com colegas, tutores e visitantes não se ressente de qualquer ameaça ou medo.

João, com cerca de nove anos, carrega nas mãos um tablet em que apresenta um recurso matemático informatizado. Diz que ama estar na Escola Aberta, porque aprende sempre mais. Pergunto a um grupo se são felizes ali, e a resposta é “sim!” em variados tons e intensidades. 

Minha impressão se renova. Daqui a muitos anos vou me recordar desse dia em que a educação do futuro já era realidade no presente e já podia inspirar novos passos”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLIII)

São Paulo, 15 de fevereiro de 2042

Permiti, queridos netos, que volte a falar de pérfidas iniciativas ministeriais. E que o faça com base num estudo sério: “Os pais no Conselho Geral das escolas: Entre a retórica da ação estratégica e a subordinação múltipla”.

Como já vos disse, milhares de estudos foram armazenados em arquivos de universidade e ministérios, condenados ao esquecimento, até que outro estudo do mesmo tipo e preocupações surgisse. Mas, como o José era um bom homem e honesto educador, me dignei ler o documento, que ele produziu.  

Dado que os funcionários ministeriais dos idos de vinte, embora parecessem atarefados, quase nada de útil tinham que fazer, mitigavam o burocrático tédio redigindo normativos feitos de belas palavras e tenebrosas intenções. O decreto-lei de abril de 2008 era disso exemplo.

Se a intenção era a de criar “condições essenciais para a melhoria do sistema público de educação”, tal desiderato não se conseguiria alcançar com “a reestruturação da rede escolar”. Viciados em pedagogia predial, os legisladores “achavam” que escolas eram edifícios feitos de salas de aula e, já nas décadas anteriores a esse decreto-lei, o “achismo da “reestruturação” conduzira à desertificação do interior do país, a uma ruinosa manutenção de “centros educativos” ociosos e outras megalomanias prediais.

O sistema, também, não melhoraria com “a consolidação e alargamento da rede de escolas com contratos de autonomia”, dado que de autonomia os novos contratos pouco ou mesmo nada tinham. O legislador decretara que a definição das linhas orientadoras da atividade da escola era atribuição do conselho geral. Porém, se as “linhas orientadoras” eram estabelecidas por um diretor e se os não docentes não podiam ser maioria no “órgão de direção estratégica”, cadê a participação da polis na “definição”?

A anunciada “hierarquização no exercício de cargos de gestão” ia na contramão de um efetivo exercício de autonomia. Ao trocar conselhos de direção por diretores, reforçava-se o centralismo. Se a atividade do diretor estava subordinada ao dever de obediência hierárquica, não se percebia como essa troca pudesse “melhorar o sistema”. 

O decreto falava do reforço da exigência dos requisitos para o exercício da função de diretor e de “formação especializada para o exercício do cargo”. Mas, se a maioria dos diretores delegava nos seus vices a competência pedagógica, de que “especialização” falaria o decreto?

Quanto à “integração dos instrumentos de gestão, a consolidação de uma cultura de avaliação e o reforço da abertura à comunidade” (sic), restava saber de que “cultura de avaliação”, de que “abertura à comunidade” se tratava.

Já dizia o Licínio que a escola era, simultaneamente, um sistema de reprodução normativa e um sistema produtor de “políticas, orientações e regras”. A escola era uma organização social marcada por múltiplas perspectivas. Os atores escolares não se limitavam ao cumprimento sistemático e integral das regras hierarquicamente estabelecidas por outrem. A lógica burocrática, a centralização do poder de decisão, uma extensa cadeia hierárquica, a divisão e fragmentação do trabalho, a impessoalidade das relações interpessoais, a uniformidade e padronização dos currículos e sistema de avaliação condicionavam a reinterpretação das regras. 

E eis que, há vinte anos, um governo de maioria absoluta foi formado. Esperei a publicação do programa de governo para a educação. Era grande a expectativa. Seria desta vez que o ministério da educação primaria pela honestidade e competência?

Por: José Pacheco

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