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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXV)

Safira, 22 de novembro de 2041

O Tiago escreveu um texto, em que se lia, a certo passo: 

“As pessoas querem lá saber o que ainda vai acontecer. Se não nos ajudam é sinal de que só querem que os filhos aprendam a fazer contas, a escrever e mais nada. Se elas fossem espertas…” 

O Tiago tinha oito anos de idade. Evidenciava maior bom senso e conhecimento do fenómeno educacional do que aqueles que teciam comentários idiotas e debitavam pedantice na comunicação social. 

“Hoje é o último dia. Amanhã, vou ficar triste, vou ter saudades desta escola.” 

Assim se despedia o Tiago, de partida para um outro mundo, numa aventura adolescente de fazer novos amigos na escola grande. 

Até breve, amigo Tiago! Que os teus futuros professores não se preocupem somente em encher-te a cabeça com conhecimento inútil. 

As crianças não nos pediam que lhes ensinássemos só contas e letras. Era grato saber que, mais que as matemáticas ou as gramáticas, o Tiago desejava encontrar “professores que ensinam a paz e a ser amigo dos colegas”. Ouçamo-lo, só mais uma vez: 

“Ao trabalho que fazemos na escola nós chamamos liberdade. Tenho muitos amigos e os professores também são. Sempre que acaba a escola, fico à espera que chegue o próximo dia. A minha escola é a melhor escola do mundo”. 

Todas as escolas eram as melhores escolas do mundo. O que ninguém conseguia explicar era que, no início deste século, entre os cidadãos portugueses com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos, 17% fossem analfabetos funcionais e que 70% nunca, ou raramente, lessem livros. Quem conseguiria explicar por que fora necessário recorrer a um “nível zero” para abranger 600.000 portugueses incapazes de responder a qualquer das perguntas ou ordens formuladas nos testes de literacia? 

A grande maioria desse povo, que andou na “escola de antigamente” entendia a seu modo o mundo em que vivia, mas o analfabetismo funcional ou literal não lhes permitia entender a informação que recebia. As conclusões do estudo eram alarmantes. O país era classificado como «nação em risco». Encontrávamo-nos numa encruzilhada da história comum, em busca de mapas e caminhos. 

Há dois, ou três séculos, metemos por atalhos, perdemos o sentido de orientação, enganámo-nos no destino. À distância de mais de um século, a Escola que tínhamos participava desse drama e buscava significados, enquanto assegurava a reprodução da ignorância e ostracizava saberes populares. De cabeça “oca”, ou com ela cheia de conhecimentos inúteis, os produtos de uma escola decadente agiam como um fardo, que impedia a ação refletida. 

Foi tudo isto o que tentei explicar ao vizinho Manuel, de modo a que entendesse que, em certa medida ainda aprendíamos alguma coisa na “escola de antigamente. Quando parecia ter entendido a preleção e ir dar o braço a torcer, resmungou entre dentes a arenga do costume:

“Pois, pois! Mas, dantes, sabia-se mais com a quarta série do que hoje com estudos feitos!” 

O povão era mesmo assim. Desprezando os seus saberes, defendia os méritos de uma escola que condenara os seus pais e avós a vidas de bonsais humanos.

Uma mulher do povo perguntava “se tinha direito a receber alguma coisa”, ao mesmo tempo que mostrava um papel, que assinara com a impressão digital, sem ter lido o que nele estava escrito. A resposta à sua pergunta residia naquelas linhas, era uma declaração “em como abdicava de…” Era assim que rezava a reportagem do jornal, que eu li, enquanto esperava que um amigo saísse da missa: 

“Então?… A homilia foi interessante?” 

Respondeu: 

“Não te sei dizer. O senhor padre falou bonito. Mas eu não percebi nada do que ele disse!” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXIV)

Sabugueiro, 21 de novembro de 2041

Solidão era a qualidade de quem vivia só. E eu desejava que a profissão de professor se transformasse de solitária em solidária. As cifras do insucesso escolar reveladas pelo ministério nada nos diziam sobre o insucesso pessoal e social. Mas, adivinhava-se. 

A solidão dos professores era causa de infelicidade e efeito da racionalidade que subjazia ao tradicional modelo de organização das escolas. Quando a essa solidão juntávamos a das famílias, apercebíamo-nos da dimensão da tragédia. Como diria um professor meu amigo, “as escolas não fazem milagres!” 

Para ilustrar os caminhos que levavam à solidão, deslocarei o problema das escolas para famílias submersas na incomunicabilidade. Antes, farei o justo contraponto com famílias onde, efetivamente, se educava. 

Quando a mãe disse à Bia para arrumar os brinquedos, a pequena respondeu: 

“Tenho soninho.”

Com amorosa autoridade, a mãe olhou a Bia. E a Bia arrumou. 

O Nelinho espalhou os seus brinquedos pela sala. Acabada a brincadeira, sentou-se, agarrado ao ifone da mãe. O pai do Nelinho ordenou-lhe que arrumasse os brinquedos. Logo a mãe do Nelinho atalhou: 

“Deixa para lá, Gastão! Não vês que o nosso menino está com sono? Coitadinho! Não vês?”

O pai ainda tentou tirar o ifone das mãos do filho. Em vão. A criança resistiu, gritou, esbracejou. E a mãe interferiu:

“Gastão, não sejas autoritário. Deixa o nosso filho em paz!” 

O Gastão insistiu, mas com pouca convicção na voz: 

Vá lá, Nelinho, apanha. Apanha, pelo menos, os brinquedos que estão no tapete.“

Mas, o Nelinho já tinha recolhido aos braços protetores da mamã. E foi o pai quem os apanhou. 

Quando os “coitadinhos com soninho” chegavam à idade de ir à escola, comportavam-se de acordo com um padrão umbiguista, sedimentado em anos de permissividade e solidão. Quando já tinha idade para deixar de “ter soninho”, o Nelinho divertia-se a empurrar colegas mais pequenos, até que um aluno mais franzino se feriu. 

Uma professora interveio e repreendeu-o. O jovem replicou: 

Quem é você para me falar assim?” 

Ato imediato, pegou no seu ifone de última geração e ligou para o papá:

Tenho aqui uma parva a chatear-me!” 

O papá foi em seu auxílio. A diretora da escola particular recebeu-o. O Gastão apresentou queixa contra a professora. A queixa foi acolhida pela diretora. A professora sofreu uma repreensão por escrito.

Os professores pouco, ou mesmo nada, podiam fazer perante tais desmandos. Alunos, que cresciam sozinhos, iam juntar-se a professores sozinhos, num drama que se eternizava. Muitos educadores denunciavam o carácter solitário da profissão de professor, apontavam neuroses daí resultantes. Urgia criar um clima de respeito mútuo, que somente poderia resultar de relações justas, equilibradas. Se Freire denunciava o “gozo irrefreável e desmedido pelo poder”, certo era que muitos docentes enveredavam pela permissividade, perdendo, por completo, condições de educar.

Como vimos, no exemplo da (má) educação do Nelinho, não era raro que pais e alunos agissem no desrespeito pelos professores dos seus filhos. A situação degradava-se a olhos vistos. Práticas negligentes e autoritárias se perenizavam. Até ao ponto de diretores e professores introduzirem exercícios de concentração e relaxamento, meditação, yoga e práticas afins nas salas de aula. De pouca valia foram tais práticas. No Brasil, eram frequentes as ameaças e as agressões verbais e físicas. Muitos professores foram afastados, devido a transtornos mentais, ou comportamentais. 

Vos direi como essa grave situação foi ultrapassada.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXIII)

Pedrógão, 20 de novembro de 2041

O vocábulo “tradição” tem origem no latim traditio, que significa, mais ou menos, “transmissão”. E era função da escola legar às novas gerações o património cultural acumulado. Nesse sentido, faria sentido falar de tradição. Porém, sempre que a tradição agia como obstáculo à reelaboração da cultura profissional dos professores, transmutava-se num sucedâneo: o “tradicionalismo”. 

Aquilino Ribeiro lamentava-se de lhe ter cabido em sorte um professor “tradicionalista”: “Pela minha parte, foi com Dona Letícia (a professora) que aprendi a odiar.” E o mesmo acontecera com a Letinha, na quarta classe em que predominava o “método misto”: metade pelo livro, metade pela palmatória. 

O azar da Letinha era não atinar com as reduções. A professora bem gritava, ameaçava e… nada. A Letinha ora “apanhava bolos”, porque a vírgula tinha ficado fora do lugar, ora porque tinha “ficado para trás”, nas reduções de metros para milímetros. 

A mãe da Letinha era de poucas posses. Os cem mil reis que todos os meses entregava à “professora das explicações” (que era a mesma que aturava a falta de inteligência da Letinha) pagavam a preparação para o exame à escola técnica, não obrigavam a aulas suplementares, que desvendassem as trevas e os mistérios das reduções. 

A Rosinha, por sua vez, era uma aluna aplicada. Sabia a matéria toda “na ponta da unha” e era a encarregada de aplicar os castigos com a palmatória: um bolo por cada falta, três por cada erro e assim por diante. A professora exemplificava o modo e a intensidade com que a Rosinha deveria aquecer as mãos às companheiras. Por incrível que nos pareça, naquele tempo, era mesmo assim. 

Em meados de maio, a professora pegou no papel almaço e dobrou uma margem a três quartos. Era uma prova importante, decisiva. A Letinha saiu-se bem. Fez as reduções todas sem falhar uma vírgula. Foi contemplada com um Muito Bom e um comentário da professora da manhã: 

“Estás a ver como a régua te fez bem?” 

Volvidos alguns anos e uma inútil passagem pela Escola do Magistério Primário (como acontecia antigamente), a Letinha ficou professora. E, também como acontecia antigamente, na primeira colocação, entregaram-lhe a “turma dos repetentes”, que (antigamente) era costume haver em algumas escolas. 

A jovem professora pediu conselhos, mendigou solidariedades. Tudo em vão. A Letinha que se desenrascasse, porque os colegas andavam demasiado preocupados consigo próprios, com o “dar o programa” e atingir a percentagem de aprovações que lhes segurasse o emprego na função pública. Até que, certo dia, um colega mais sensível à dramática situação da Letinha lhe entregou uma régua, ao mesmo tempo que, sábia e solenemente, sentenciava: 

“Ó colega, tome lá. Eu vou para a reforma, a mim já não me faz falta e a si ainda há-de fazer jeito.” 

Subitamente, a Letinha viu-se assaltada pelos fantasmas de antigamente. Via a Rosinha com os olhos encharcados de lágrimas de implorar perdão. Num impulso, atirou com a régua para o fundo da gaveta, a fazer companhia aos cadernos de duas linhas, que eram uns cadernos usados antigamente para escrever letras em carreirinhas. 

Mas a turma dos repetentes continuava apostada em fazer da vida da Letinha um inferno. No fim de uma manhã em que já tinham ficado sem recreio (havia dias assim, antigamente), os alunos levaram a Letinha ao limite da paciência. Um estranho sentimento se apoderou da jovem mestra. Totalmente descontrolada, puxou da gaveta a miraculosa herança. O estrondo do vigoroso atirar da régua para cima da secretária provocou um pesado silêncio na sala de aula.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXII)

Santo Isidro de Pegões, 19 de novembro de 2041

Num dos novembros dos anos oitenta, um vizinho bateu-me à porta, com um envelope na mão, em demanda de “correção, se faz favor, senhor professor, que eu sou quase analfabeto”. 

Pediu-me que colocasse a pontuação numas cartas que escrevia a um seu compadre emigrado na Alemanha. Isto acontecia desde o dia em que um “idiota com canudo” – ou “pessoa de vistas curtas, apesar de se dizer um doutor”, conforme as designou o compadre – maldosamente, criticou a escrita sem pontuação por ele adoptada. 

Não tive coragem para macular a carta com alterações conformes à arte de bem pontuar. Se a estas e a outras liberdades se entregara o José galardoado com o Nobel da Literatura, por que não se permitia que o compadre desse largas à inovação? E o Habermas que me perdoasse, mas o estilo adoptado pelo compadre até conseguia imprimir um cunho pós-moderno ao texto. 

No pressuposto de que o compadre também me perdoaria a inconfidência, aqui vos deixo alguns excertos. 

“(…) Porque até lhe tinham dito que a escola onde meteu o moço no ano passado era das melhores e que neste ano aparece no fundo da tabela e até uma senhora que parece que é doutora escreveu nos jornais que o sistema não presta e veja lá ó compadre se ela é mesmo doutora como diz e não tem confiança como é que a gente a há-de ter inda pra mais está aflita de os catraios não poderem ir para as universidades da europa onde o compadre mora que ela até falou na Heidelberga acho que é assim que se escreve que é aí pertinho e por aqui eu já nem sei se deva pôr o meu ganapo na universidade dos pobres e remediados onde ainda me fica um gandulo ou se o meta numa particular que me vai custar os olhos da cara mas onde como disse a doutora mesmo os que são uma nódoa saem doutores e como uma desgraça nunca vem só o compadre neca ficou de cama já vai para uma semana por via de uma discussão com o toino beato que é um vizinho temente a deus e respeitador das autoridades mas também é um venenoso que já quando o catraio andava no ciclo e tirava mais quatros que o filho do neca entesava-se e atirava que as escolas não tinham culpa da estupidez dos filhos dos necas olhe compadre foi uma discussão do caraças e o neca até atirou com a do filho do toino que quando veio embora do seminário já trazia vantagem como o benfica nos ranquingues dos futebóis e que houve escolas que disseram que foram prejudicadas pelos alunos da consulta externa que foram esses externos que as puseram nos últimos lugares e a gente ainda vai ir ver os ranquingues dos hospitais que curam mais doentes e dos lares da terceira idade que matam menos velhinhos e por aí adiante que a gente não pode ficar ignorante toda a vida que eu sei é que o meu ganapo me vai acabar este ano os estudos e ó pai tu nem penses que eu cá precisava de mais de vinte valores e os dezanoves viste-os e os senhores do ministério pensam que a gente somos todos uns analfabetos e agora estão sempre a malhar nuns senhores das ciências de educação ou lá o que é que dizem que os exames não servem para nada e um vizinho o zeca bife disse que é verdade que meteu uma coisa que se chama recurso e vai-se a ver o catraio do vizinho passou de 14 para 20 de modos que a gente andamos cada vez mais baralhados e também veio um senhor doutor explicar que as notas era conforme os pobrezinhos de cada concelho e coisa e tal e a gente ficou a perceber o mesmo e adei vossemecê nem sabe a sorte que teve de ir ganhar a vida nas alemanhas.” 

Vox populi… Se nos abstrairmos do seu peculiar estilo, o compadre até conseguia ser bem mais explícito do que certos autores de teses, que não iam além de má literatura de cordel e de ficção científica.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXI)

Cortiças do Lavre, 18 de novembro de 2041

Dizia-nos o dicionário ser o professor “aquele que ensina”. Eu diria ser mais aquele que aprendia… ensinando. 

“Numa volta ao passado, recordo o exato momento em que descobri como se lia, mas não me lembro das aulas, ou melhor, não me lembro das aulas das outras professoras, pois lembro com nitidez e muito carinho (até fico emocionada quando lembro), as aulas da Dona Margarida (é a “culpada” pela minha decisão pelo magistério). Hoje, pensando nela, sei que o que a diferenciava era a relação de amor e respeito com o outro, o carinho como tratava os seus alunos, a forma mágica que impunha às suas explicações da matéria. Lembro ainda que, muitas vezes, pensei durante a aula, olhando para ela: é assim que eu quero ser quando for professora. Anos mais tarde, já terminado o curso, fui procurá-la. Já não dava aulas. Foi um reencontro fabuloso e, ali, pude dizer o quanto a admirava e o que ela representava em minha vida. Nunca mais nos vimos, mas ela é uma lembrança preciosa que guardo no meu coração.” 

Talvez vos possais rever no depoimento dessa professora. Também devo a um ser iluminado – mestre no dito “ensino tradicional” – a decisão que me levou ao magistério. Lograva conciliar duas características aparentemente incompatíveis. Era exigente, pois para ele a escola era estudo, esforço. Transbordava afeto, porque as escolas sem vínculos eram como redis de eunucos afetivos. 

Pressinto a necessidade de formular duas advertências. O professor que me “desviou” da Eletrotecnia para a Pedagogia era um praticante convicto do que se convencionou chamar “ensino tradicional”. Durante alguns anos, também eu fui professor “tradicional”. E orgulho-me de o ter sido. Preparava as minhas aulas com rigor, bons planejamentos, ótimos materiais, intensa motivação, acreditando ser aquele o melhor modo de ensinar. Isso, antes de conhecer outros modos… 

A inovação assenta na tradição, pois nada se pode construir no vazio, sem sustentação. A inovação não prescinde da tradição – Não se deite fora o bebé com a água do banho. 

Nutria repugnância pelas modas pedagógicas. Afastava-me dos “teoricistas”, que estabeleciam dicotomias maniqueístas entre “tradicional” e “inovador”. Exorcizava-os, num “vade retro” aos ingénuos e aventureiros “praticistas”, que negavam a importância da repetição, da memorização e de outra utensilagem “tradicional”. 

Quando me perguntavam qual era o melhor método, invariavelmente, respondia: 

”O melhor método é aquele que resulta!” 

Esta resposta arrastava muitos pressupostos. Talvez os recupere numa outra altura. Por agora, gostaria de vos falar de afetos. 

O que fez com que o professor Lobo (era esse o seu nome) alterasse as suas práticas, ao cabo de dezenas de anos de “tradicional puro e duro”, foi a pergunta que um aluno lhe dirigiu: 

“Professor, por que me castigas? Por que não me ensinas?” 

O professor Lobo passou por uma profunda revisão de vida – escutei-o, numa das suas últimas palestras –, transmutou em autoridade o autoritarismo típico das escolas da Ditadura. Colocou, no lugar antes ocupado por uma “pedagogia musculada”, uma afetuosa presença. Os alunos passaram a chamar-lhe “mestre” e a tratá-lo na segunda pessoa do singular, numa saborosa mistura em que o afeto não se confundia com languidez. 

Também a Cecília ensinava a ler contemplando o socioemocional das crianças. E, quando falava de afeto, eximia-se de um idealismo piegas, para o abordar como Freneit o entendia: 

“Para aprender, transformar e viver, é preciso fechar as fronteiras entre o intelectual e o afetivo.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCX)

Santiago do Escoural, 17 de novembro de 2041

Nos idos de vinte, eram publicadas teses sobre o paradigma da comunicação, sem que a transição da instrução para a aprendizagem tivesse acontecido. Falava-se de autonomia, de protagonismo juvenil, afirmava-se a necessidade de transformar o aluno em sujeito de aprendizagem, enquanto se mantinha hegemônico o modelo instrucionista, centrado no professor. Eram desenhados novos mapas sobre velhos palimpsestos. Era ocasião propícia a formular algumas perguntas. 

Fiz algumas. Sem resposta. A primeira das perguntas poderia ser: 

O Fundamental-Básico existia? Teríamos uma educação fundamental-básica caracterizada pela “complementaridade e sequencialidade”? 

A compartimentação estanque entre ciclos era uma manifestação absurda dos cânones do paradigma mecanicista e originava rupturas traumáticas nos alunos, que não transitavam entre ciclos de um mesmo ensino básico, mas entre comunidades escolares autistas. 

Hutmacher afirmou que ao entrarem no ciclo seguinte, os alunos experimentavam “uma espécie de regressão quanto ao seu empenhamento e participação nas atividades de pesquisa, de descoberta e de construção de saberes.” A sequencialidade regressiva, por seu turno, permitia que o Ensino Médio e a Universidade (através do malfadado vestibular) determinassem e pervertessem os objetivos de um ensino fundamental, que deveria ser terminal e autónomo. Contribuía-sendo para a elitização académica e o insucesso escolar, assumido como mecanismo de discriminação e exclusão social. 

Estaríamos conscientes de que, para além do fato de se alterar a terminologia (de série ou classe para ano, por exemplo), não mudava mentalidades? Os professores eram de opinião de que a articulação era “pertinente”, “necessária”, “fundamental para a unidade da educação básica”, mas teriam modificado as práticas de gestão curricular e a organização das escolas, conferindo aos ciclos a sua vocação de complementaridade e sequencialidade? 

Quanto tempo mais iria durar o drama da justaposição formal entre ciclos e da dependência de uma matriz curricular licealizante? Quanto tempo mais iríamos submeter os nossos alunos a sucessivos desenraizamentos culturais, em idades tão vulneráveis? 

Seria possível conciliar a ideia da articulação entre ciclos com a segmentação interna de cada ciclo em anos de escolaridade? Seria possível pensar a articulação entre ciclos, se nem a articulação entre anos de escolaridade estava assegurada? E por que havia ciclos? E, se o sistema estava organizado em ciclos, alguém saberia explicar por que razão os manuais didáticos eram publicados com referência a anos de escolaridade? 

Ainda era elevado o absentismo e milhares de alunos atingiam o limite de idade de frequência, reprovando repetidamente. As empresas que criavam salas de estudo e centros de explicações prosperavam. Muitos dos “explicadores” eram os mesmos professores, que não tinham conseguido “dar toda a matéria” nas suas aulas. 

Havia analfabetismo funcional na universidade. E, quando havia vil metal para gastar, o ministério lançava projetos nas escolas e os professores os aplicavam, como se aprendizes de feiticeiro eles fossem. Estávamos habituados a ler preâmbulos de leis, que eram obras primas do discurso pedagógico, mas também já nos habituáramos à indigência pedagógica de certas “inovações”. Discutia-se o Médio e o Secundário sem que o Fundamental e o Básico estivessem cumpridos. 

Naquele tempo, como dissera Aristides, era preciso ser louco, para fazer o que era certo.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCIX)

Foros de Vale Figueira, 16 de novembro de 2041

Na cartinha de ontem, dizia ter visto uma frase do Mestre Agostinho, na parede de uma escola que não era escola. Ela se ajustava ao contexto e à intenção das pessoas e das coisas em redor. Fazia sentido, inscrita na parede daquela sala, onde o amigo Alfredo havia contado um pouco da história da Humanidade, onde descrevera amanhãs desejados, o tempo de nos libertarmos da proto-história dos homens. Naquele tempo, ainda havia guerras, ainda precisávamos de tribunais, advogados, juízes, prisões e psiquiatras. Mas, sentíamos ter chegado o tempo de um novo renascimento. 

Agostinho era mestre na desocultação dos malefícios da Escola da Modernidade. Num texto, de que já esqueci o título, fala-nos, também, do “perfil” do educador dos novos tempos. Perdoai que esta cartinha seja, quase toda, feita de citações. Nenhuma prosa minha conseguiria ser mais eloquente que a do Mestre.

“Poucas serão as escolas em que o mestre não anime entre os alunos o espírito de emulação; aos mais atrasados apontam-se os que avançaram como marcos a atingir e ultrapassar; e aos que ocuparam os primeiros lugares servem os do fim da classe de constantes esporas que os não deixam demorar-se no caminho, cada um se vigia a si e aos outros e a si próprio apenas na medida em que se estabelece um desnível com o companheiro que tem de superar ou de evitar.

A mesquinhez de uma vida em que os outros não aparecem como colaboradores, mas como inimigos, não pode deixar de produzir toda a surda inveja, toda a vaidade, todo o despeito que se marcam em linhas principais na psicologia dos estudantes submetidos a tal regime; nenhum amor ao que se estuda, nenhum sentimento de constante enriquecer, nenhuma visão mais ampla do mundo; esforço de vencer, temor de ser vencido; é já todo o temperamento de «struggle» que se afina na escola e lançará amanhã sobre a terra mais uma turma dos que tudo se desculpam.

Quem não sabe combater ou não tem interesse pela luta ficará para trás, entre os piores; e é certamente esta predominância dada ao espírito de batalha um dos grandes malefícios dos sistemas escolares assentes sobre a rivalidade entre os alunos.

Não me basta o professor honesto e cumpridor dos seus deveres; a sua norma é burocrática e vejo-o como pouco mais fazendo do que exercer a sua profissão; estou pronto a conceder-lhe todas as qualidades, uma relativa inteligência e aquele saber que lhe assegura superioridade ante a classe; acho-o digno dos louvores oficiais e das atenções das pessoas mais sérias. É possível a comparação com tipos inferiores de humanidade; ante eles o professor exemplar aparece cheio de mérito. Simplesmente, notaremos que o ser mestre não é de modo algum um emprego e que a sua atividade se não pode aferir pelos métodos correntes; ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa, no seu juízo final, não é a ideia que fazem dele os homens do tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.

A sua contribuição terá sido mínima se o não moveu a tomar o caminho de mestre um imenso amor da humanidade e a clara inteligência dos destinos a que o espírito o chama.”

As frases do Mestre Agostinho revelavam a essência do encontro daquele já distante encontro de domingo. Mais do que sintetizar o errado, as suas palavras apontavam contornos da escola que aquela comunidade anelava para as futuras gerações. 

Animado do agostiniano espírito e reunindo as forças que restavam, voltei ao Freixo do Meio, já decorria o ano de 2022. Ali, reaprendi a aprender como se fazia uma escola.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCVIII)

Freixo do Meio, 15 de novembro de 2041

Há cerca de vinte anos, criei o hábito de enviar mensagens contendo reflexões e votos de uma semana feliz. Aqui vos deixo excertos de uma delas, enviada no novembro do já distante 21: 

“Neste momento, encontro-me, numa comunidade agroecológica alentejana, que adotou um modelo de colaboração e participação coletiva estruturador do trabalho de economia social, regulador e harmonizador dos usos setoriais do Bem Comum. 

Observo portugueses, espanhóis, cabo-verdianos, brasileiros e gentes de outras origens, repetindo um ritual pré-histórico: a instalação de um menir, recorrendo a tecnologias pré-históricas.

Arqueólogos e historiadores relacionam o aparecimento do menir com manifestações de culto da fecundidade, ou como marco territorial, quando o menir surge isolado. Identificam-no com sinal orientador de locais, quando colocados em linha. E, quando colocados em círculo, interpretam-nos como santuário religioso.

Foi grande o impacto, quando me vi perante a estrutura neolítica de Stonehenge.

Há mais de 4 000 anos, foram construídos dois círculos de pedras azuis e uma avenida marcada por valas paralelas alinhadas com o Sol nascente do primeiro dia do verão. O círculo externo teria 35 pedras, pesando mais de 4 toneladas cada uma, transportadas das montanhas de Gales, a cerca de 24 km ao Norte.

O que move estas pessoas? Por que decidiram erigir um menir nos cafundós do Alentejo? Algum significado deve ter… Qual será?

Nesta manhã de domingo, que marca o início de mais uma semana e que auguro jubilosa, proponho e partilho uma breve reflexão sobre os frutos do engenho e do labor humano.” 

Por vezes, as cartinhas publicadas nas redes sociais obtinham resposta. A minha amiga Nilce a esta respondeu: 

“Caro Pacheco, 

Leio as suas “histórias” com interesse. São pérolas para quem sabe re-conhecê-las. Depois dou um tempo, “matutando” pensamentos, que a sua escrita suscitou. Então, com calma e tempo, venho revelar-lhe as minhas impressões. 

Nesta “ida” ao Alentejo, descubro o significado da palavra “Além do Tejo”; que o céu alentejano foi o primeiro no mundo a ter a certificação Starlight Tourism Destination da UNESCO; que o maior lago artificial da Europa fica nessa região; 

que ela conta com 5 títulos da UNESCO; e que os monumentos megalíticos datam há mais de 5 mil anos. Maravilha!

Quanto à sua instigante indagação, eu poderia arriscar uma doxa. Porém, vou preferir que o mistério prevaleça.

Grata por compartilhar saberes! Uma espetacular semana a ti, com “gosto e bem-disposto”.

No dia do ritual de implantação do menir, escutei as sábias palavras do amigo Alfredo, apelativas de um diferente modo de relacionamento com o meio e da necessidade de refletir sobre como nos relacionamos. Dizia ser indispensável entender o sistema e ter uma ética adequada a novos modos de exercício do poder. 

Na tarde de um domingo extraordinário, em nome da sua comunidade, o amigo Alfredo perguntava:

“Por que vamos levantar um menir no Monte do Freixo do Meio?

Porque queremos, de novo, responsabilizarmo-nos coletivamente pela gestão dos ecossistemas de que dependemos. Queremos fazer parte de uma outra história, construída por uma atitude que não ponha em risco a nossa maior riqueza, a estabilidade climática. É isso que queremos celebrar, levantando uma pedra, como há 8000 anos. Porque a cooperação não foi só o que nos trouxe até aqui. E acreditamos que ela seja o caminho.”

Na parede da sala onde decorreu o encontro, uma frase do Mestre Agostinho sintetizava a fala do amigo Alfredo. Amanhã, dela vos falarei. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCVII)

Montemor-o-Novo, 13 de outubro de 2041

Literalmente, a palavra utopia corresponde à expressão “país de nenhures”. Para Tomás Morus seria a cidade perfeita, servida por um governo ideal. Usualmente, é utilizada para designar sonhos de perfeição social, algo considerado impossível de atingir. Contrariando a opinião, afirmaria que a utopia é algo necessário e até mesmo realizável. Se não, vejamos.

Nos idos de início deste nosso século, uma amiga enviou-me uma carta, que pediu para acrescentar àquelas que para vós escrevi. Foi um colibri quem ma enviou. Mas é para vós e, em particular, para a Alice. Revela a ternura que mora em ninhos perdidos, nas serranias e planuras dos confins de um ignorado interior deste país de pássaros solitários, que o vosso avô teve a sorte de conhecer num abril de há quinze anos. 

A memória dessa carta está associada à de uma visita, que fiz ao meu amigo Alfredo. No início da tarde do dia da visita, após uma manhã acidentada e um repasto regado com o bom vinho tinto alentejano, a Caetana nos levou a reunir com a Direção do Agrupamento de Escolas de Montemor. Reencontrei o João, meu aluno dos anos noventa. Saí agradado do encontro, pois deparei com gente afável e receptiva a mudanças. No final da tarde, fui com a “Borboleta” ao lugar onde a utopia do Alfredo se concretizava. Dessa utopia (e da “Borboleta”) vos falarei em próximas cartinhas. Por agora, deixo-vos com a leitura da carta de um colibri.

Era um colibri, que não desistia de seguir na direção de um sonho, que era de hoje e de sempre e que deu sentido à vida de muitas gerações de pássaros ensinantes e aprendizes. Por razões que se adivinham e que poderei explicar, hesitei em tornar pública esta carta. Mas acabei por pedir permissão à sua autora, para a expor aos olhos de outros pássaros. Apenas é acrescentada à carta uma data: (quando a ela chegardes, compreendereis o seu porquê). Eis o que dizia:

“Freixo do Meio, no mês de maio de 2024.

Hoje quem te escreve não é o teu avô. Mas, a história que vais ler também é uma história sobre pássaros. Deves estar curiosa de saber quem é essa desconhecida, que, num dia qualquer de Primavera, resolveu falar-te. 

Pequena Alice, esta história começa, há muito tempo. Lembra um encontro, num reino distante de quase tudo. Embora fosse Primavera, o reino distante e maravilhoso, como diria Miguel Torga, estava coberto por um grande manto branco, uma surpresa para a passarada, que se iria reunir naquela manhã. 

Para os pássaros que viviam naquela terra, a neve não constituía problema. Como sabes, alguns animais adaptam-se a lugares diferentes do lugar onde nasceram, outros não sobrevivem à mudança, outros ainda sobrevivem, mas são eternos inadaptados. No caso dos pássaros, valem-se das suas penas para se protegerem do frio. Também é verdade que alguns de nós, como os colibris, somos mais relutantes em sair do ninho e, por vezes, ensaiamos duas ou três vezes para pôr o biquito de fora. 

Mas, voltando à reunião… A razão era aprendermos técnicas de voo mais modernas, mais eficazes, mais audazes. Para isso, o líder do nosso bando conseguiu convencer a vir até aquela terra distante e fria uma gaivota que percebia da arte de voar como nenhum outro pássaro. 

Mas, e agora? – pensávamos nós – haverá ou não a tal reunião? Será que a gaivota encontra o caminho no meio dessa brancura toda? E os outros pássaros resistirão ao frio? Com um pouco de atraso, a passarada conseguiu juntar-se, e a gaivota conseguiu chegar à clareira, para a nossa primeira lição de voo. 

Completareis a leitura da carta do colibri na cartinha de amanhã.

Acolhei o beijo do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCVI)

Évora, 12 de novembro de 2041

No novembro de há vinte anos, andei por terras do Alto Alentejo. No chão das escolas, conversei com professores sequiosos de mudança. Não conseguia compreender a razão por que, subitamente, educadores, diretores de escola e de agrupamento, câmaras municipais, escolas, universidades me pediam ajuda. Mas lá fui até ao solo luso, tentar ajudar.

Uns dez anos mais tarde, já entrados na década de trinta, vim a perceber o porquê de tanta azáfama. Já não era a Ponte o que procuravam. Ela ainda era a melhor escola portuguesa, mas chegara o tempo em que as raízes, que ela criara no estrangeiro – em Portugal, a Ponte era ostracizada – dessem lugar a troncos, ramificações, flores e frutos. A profecia de Agostinho da Silva se concretizava:

“Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América. Só falta Portugal desembarcar em… Portugal”.

Regressava ao solo pátrio, já sem resquícios de etnocentrismo europeu. Trazia na bagagem sementes de uma nova construção social de educação. Mas, não seria eu, septuagenário andarilho, quem iria protagonizar mudanças e inovações. Uma nova geração de educadores tomava em suas mãos os destinos dos seus projetos. No exercício da solidariedade entre pares, vi-os fazer maravilhas, acreditando ser possível melhorar a Escola. 

Estavam cansados de discursos desculpabilizadores e de corporativismos, que os adormeciam com anestésicos discursos. Convidavam aqueles que recusavam refletir as suas práticas, aqueles que recusavam melhorar-se, melhorando a aprendizagem dos alunos, e outros, que se julgavam no direito de “não querer mudar”. Os professores recuperavam a autoestima, reivindicavam o reconhecimento, social que lhes era devido

A velha escola, de que vos tenho falado nestas cartinhas, agonizava. Os sucessivos ministérios tinham aplicado pensos rápidos em feridas profundas. E aqueles que reproduziam práticas bolorentas já se interrogavam e procuravam saber a que senhor estavam servindo, chegando à compreensão das perversões a que as suas práticas conduziam.

Talvez tivessem compreendido, por exemplo, que o tipo de gestão do tempo, que as suas escolas adoptavam (idêntico ao de milhares de outras escolas) comprometia em desenvolvimento saudável. Talvez tivessem compreendido aquilo que Henry Giroux, há muito escrevera:

“Com os seus cronogramas e relacionamentos hierárquicos, a rotina da maior parte das salas de aula atua como um freio à participação e aos processos democráticos”. 

Os insanos críticos das “novas pedagogias” já não conseguiam apontar o nome de uma só escola que praticasse “abomináveis novas pedagogias”, que prodigamente glosavam nos seus best sellers. Espertalhões que, antes, criticavam o “eduquês”, já não atingiam o topo de venda de livros. Já havia quem se interrogasse sobre práticas obsoletas e sobre as razões profundas do insucesso. 

Professores vivos de todas as idades questionavam a abstração “turma”, tida como um todo homogéneo, ostracizando o sujeito aprendente. Entre quatro paredes, o aluno limitava-se à recepção de conceitos a que pouco ou nenhum significado atribuía. Partia-se de um princípio engendrado no século XVII – Comenius dizia ser possível ensinar a todos como se fosse um só e ainda havia quem nisso acreditasse. 

Mas, se a aula era a competência detida pelos professores, era dando aula que os professores engendravam novas práticas. Em sala de aula, muitos educadores já adoptavam uma postura crítica, que levou alguém a perguntar: 

“Por que razão os anjinhos papudos da talha barroca só têm cabeça e asas?”

 

Por: José Pacheco

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