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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCII)

São Mateus do Maranhão, 28 de agosto de 2040

No final de agosto de há vinte anos, a Organização Mundial de Saúde insistia na recomendação do distanciamento social, como medida mais eficaz para controlar a disseminação do coronavírus. Mas, políticos circulavam sem máscara, dando exemplo de irresponsabilidade. A administração educacional insistia no “regresso às aulas”, quando se sabia que, entre crianças e adolescentes, dois em cada três infectados pela Covid-19 eram assintomáticos e fator de risco de contágio de professores e… avós.

O egoísmo dos políticos e a irresponsabilidade dos administrativos tinham sido incutidos pela educação familiar, social e escolar. O adestramento num “currículo oculto” os fizera assim. Imersos numa cultura feita de clausura e resignação, “tias e tios” reproduziam um modelo escolar inspirado em instituições reverenciadas no século XIX.

Queridos netos, sei que será difícil explicar aos filhos dos filhos dos nossos filhos, nascidos na luminosa década de trinta, a turbulência social de tempos sombrios. Tentarei fazê-lo, nas próxima cartinhas, falando-lhes de causas longínquas das violèncias sofridas pela humanidade do início deste século.

A Escola da Modernidade nasceu nos estados-nação europeus, que se afirmavam entre os séculos XVIII e XIX. Teve origem na Prússia Militar, na Inglaterra das usinas de produção em série da Primeira Revolução Industrial e na França das casernas e conventos. Nasceu enclausurada em “celas de aula”, de janelas estreitas e abertas bem acima de onde alcançava o olhar dos alunos.

Dentro delas, sob a designação de “tias”, as professoras agiam como monjas de clausura e os “diretores tios”, como madres superioras.

Freire escreveu um livro com o sugestivo título de “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar”. O insigne mestre convidava-nos a refletir: A professora pode ter sobrinhos e, por isso, é tia, da mesma forma que qualquer tia pode ensinar, pode ser professora, por isso, trabalhar com alunos. Isto não significa, porém, que a tarefa de ensinar transforme a professora em tia de seus alunos, da mesma forma como uma tia qualquer não se converte em professora de seus sobrinhos só por ser tia delesEnsinar é profissão (…) enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão, enquanto não se é tia por profissão. Se pode ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos, mas não se pode ser autenticamente professora, mesmo num trabalho a longa distância, “longe” dos alunos”.

No tempo da ditadura de Salazar, as professoras aspirantes ao matrimônio eram obrigadas a pedir aos seus superiores hierárquicos autorização para casar-se. Deveriam provar que o candidato a marido possuía rendimentos suficientes para “manter a esposa”. Acaso o candidato não reunisse essa condição, ela teria de procurar novo namorado, ou ficar para… tia. E, se não estou errado, a Etologia explicava a origem do termo “tia”: a macaca que não poderia ter filhos, porque se encarregava de cuidar dos filhos dos macacos que morressem. A pretexto de os pais precisarem de “ir trabalhar”, a infância era confiada em “celas de aula”, vigiadas e punidas por “tios e tias”.

A escola das “tias” encerrou a infância e a juventude dentro de “celas de aula”. Por isso, quando mini ditadores ameaçavam com a “reprovação por faltas” – como referi na cartinha anterior – partiam do princípio de que a escola era um prédio com salas de aula, uma indisfarçável clausura.

Urgia desclausurar a escola. Isso fizemos, na década de vinte.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCI)

Imperatriz, 27 de agosto de 2040

O meu amigo Tião dizia que a escola era o “serviço militar obrigatório aos seis anos”. Pelo agosto de há vinte anos, se escutava a irresponsável ladainha do “regresso às aulas”, o retorno ao presencial do “serviço militar obrigatório aos seis anos”. A sinistra Direção-geral dos Estabelecimentos Escolares (Dgeste), num ridículo documento intitulado “Orientações gerais relativas aos direitos e deveres dos alunos e ao seu acompanhamento, no âmbito das atividades letivas presenciais e não presenciais”, determinava que os alunos voltassem a poder ser penalizados quando tivessem faltas injustificadas às aulas presenciais ou às sessões síncronas do inútil ensino à distância.

Em próxima carta, talvez comente o famigerado “Estatuto do Aluno”, um documento perverso, que permitia à Dgeste formular ameaças: “O incumprimento dos deveres por parte do aluno é susceptível de aplicação de medidas disciplinares sancionatórias, nos termos previstos no Estatuto do Aluno”. Essas medidas iam da “repreensão registada” à “expulsão da escola”. Os artigos do Estatuto do Aluno mencionados explicitamente nas “Orientações” referiam-se às “faltas injustificadas” e suas consequências, quando ultrapassassem os limites definidos.

Um gestor “puxa-saco” do ministério assim comentou o pérfido documento da Dgeste: “Não tem objetivos persecutórios, mas sim claramente pedagógicos”. O que seria persecutório para esse funcionário? E que pedagogia evocava esse ignorante?

Um diretor de escola pedagogo atento e sem tiques persecutórios – eram raros, mas também os havia – também comentou esse lamentável documento: “É um documento elaborado por alguém que acha que pode passar por cima da autonomia das escolas! Nem sequer está assinado.”

A Paula estava preocupada, pois pretendia manter o seu filho protegido da covid-19. Não queria que fosse obrigado a “regressar às aulas”, sem garantia de proteção contra o risco de contágio. E, sobretudo, sem proteção relativamente aos malefícios de um isolamento social em sala de aula – a escola da aula já causara desgraça maior do que a pandemia!

Mães tinham sido avisadas que que, “se os seus filhos não regressassem à sala de aula” reprovariam por faltas”. A escola da aula ancorava-se numa regulamentação da Lei de Bases elaborada segundo uma racionalidade burocrática e administrativa, que contrariava o disposto no artigo 48º da lei. Isso mesmo! As “Orientações” estavam fora da lei, porque a Lei de Bases é explícita, quando estabelece que “na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.

Os funcionários da Dgest não poderiam alegar desconhecimento da Lei. Nem eu desejava concluir que talvez fossem analfabetos funcionais, que a tivessem lido e nada tivessem entendido. A “reprovação por faltas” carecia de fundamentação científica. Era um conceito obsoleto, reminiscência de uma das origens da escola da modernidade: os conventos do século XIX.

Se os alunos forçados à reclusão numa sala de aula, duzentos dias por ano, “não reprovavam por faltas”, os indicadores do insucesso escolar demonstravam que esses alunos pouco ou mesmo nada aprendiam. E ninguém poderia ser enclausurado e condenado a não aprender.

A ameaça da “reprovação por faltas” soava a autoritarismo barato e até talvez configurasse um criminoso ato de assédio moral. Por isso, urgia desclausurar a escola. Isso fizemos e sobre isso vos falarei nas próximas cartinhas.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CC)

Santo Antônio da Patrulha, 26 de agosto de 2040

Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos. Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas a sociedade do tenebroso tempo da pandemia falhava em todas as esferas de proteção.

Essa situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contraturno de escola. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar.

Observando as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente. Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver. Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro, mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.

Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que, apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo. Essa criança se suicidou com veneno de escaravelho.

A tragédia foi motivo de profunda reflexão.Ao tentar identificar os motivos que uma criança pudesse ter para pôr fim à sua vida, identificamos alguns “solitários” entre nós. Perante tristes silêncios de alunos nossos, decidimos criar dois dispositivos – o tutor e a caixa dos segredos – canais de comunicação, que abreviaram situações de discreto sofrimento. Se as escolas eram arquipélagos de solidões, lançamo-nos num anular de insularidades.

Quando encontrávamos um recado depositado na “caixa dos segredos”, de imediato combinávamos uma amena conversa. Os autores dos recados sempre aceitaram partilhar o “lugar de estar sozinho” com o seu tutor. E tinham dado um nome original ao meu “lugar de estar sozinho”. Por ser o professor mais antigo, chamaram-lhe a “pedra da idade da pedra”. Nela sentado, muitas mágoas de infância ajudei a enxugar, em conversas de incondicional e amorosa escuta. Muitos dramas e pesadelos ajudei a mitigar e a dissipar.

Como escrevi nas cartinhas para a Alice, “Calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, uma pedra que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia, onde se partilhava segredos.  E o coração das gaivotas sossegava. Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume e eflúvias meditações se produziam. De imediato, do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supõem não haver lugar para a imaginação, assomavam suaves gestos de solidariedade de humanos pássaros”.

Sempre disponíveis, carinhosos, pacientes, esses “humanos pássaros” – seres a que se costumava dar o nome de professor – com singelos gestos, afastavam preocupações e medos, ajudavam as crianças a reconstruir futuros, a não estarem sozinhas.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCIX)

Barra de São Francisco, 25 de agosto de 2040

Nos idos de vinte, a universidade mantinha-se ancorada num modelo epistemológico de antanho e as escolas vegetavam na prática do instrucionismo. Acadêmicos interessavam-se por “novidades” e a academia desperdiçava recursos sob a forma de bolsas para doutoramentos no estrangeiro, na procura de finlândias, desconhecendo que havia muitas finlândias dentro do Brasil da educação.

Aprovadas as teses, eram vertidas em palestras de power point. Os sites de divulgação de “novidades” se enfeitavam com essas “reinvenções da roda” da educação. E, generosamente patrocinados por empresas, ofereciam às escolas esses paliativos do instrucionismo.

O rumo que a aplicação desses produtos do engenho humano tomou foi causa de enorme prejuízo, gerou preocupação entre aqueles que, sem patrocínios, operavam prodígios no chão da escola. Deixo-vos um exemplo, entre muitos, que, sob o rótulo “inovação”, contribuiu para comprometer mudanças e protelar verdadeiras inovações.

A produção acadêmica, que tomava por objeto a comunidade de aprendizagem, consagrava o princípio do diálogo igualitário. Esse princípio estabelecia que, nos espaços de tomadas de decisão, a comunicação deveria basear-se na força dos argumentos e não em posições de poder. Mas, seria possível conciliar o “diálogo igualitário” com a manutenção de uma gestão de escola hierárquica? Quando se assumia que, em comunidade de aprendizagem, se buscava trabalhar a gestão da escola em uma perspectiva democrática, participativa e dialógica, por que se instituía uma comissão gestora da escola e não se substituía órgãos de gestão unipessoais? A gestão escolar não poderia ser democrática, através da introdução de um órgão de gestão paralelo aos órgãos de gestão tradicionais, ignorando que os diretores estavam sujeitos ao dever de obediência hierárquica.

A “tertúlia dialógica” ou a “biblioteca tutorada” poderiam ser consideradas inovações? Não eram! Desde há muito tempo, idênticos dispositivos eram utilizados em escolas sem sala de aula. Não fazia sentido que a leitura de um livro, no contexto de uma “tertúlia literária dialógica” fosse remetida para o domínio da sala de aula. Nem se percebia por que razão a “biblioteca tutorada” era um espaço aberto em horário contrário ao da sala de aula. Por que não era utilizada durante as aulas?

Se ”a capacidade de aprender e de apreender de diversas maneiras se dá ao longo da vida”, por que razão se subordinava ao tempo da escola formal? Se existia a intenção de “transformar as relações entre as pessoas em outra lógica que não a da competitividade, mas a da cooperação”, por que se dizia haver “comunidade de aprendizagem” numa escola competitiva, seletiva, excludente?

Era muito reducionista a definição do conceito e a prática do chamado “grupo interativo”, usado como recurso para a revisão de conteúdo já trabalhado em sala de aula. A presença de diferentes pessoas em sala de aula ou fora dela era prática há muito tempo utilizada em escolas que prescindiram da “aceleração da aprendizagem”, de “classes de reforço” e de outros dispositivos de educação compensatória. Nestas escolas, os jovens aprendentes não eram distribuídos por grupos previamente estabelecidos pelo professor, mas em função de objetivos comuns. E as equipes assim constituídas eram acompanhadas por tutores, que asseguravam a mediação da aprendizagem.

Na Rede de Comunidades de Aprendizagem de há vinte anos, deparávamos com este e muitos outros obstáculos à inovação. Conseguimos ultrapassá-los.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVIII)

São Gabriel da Cachoeira, 24 de agosto de 2040

Na porta do banheiro de uma famosa confeitaria, estava pendurado um dístico: “Por favor, não urine no chão, nem no cesto dos papéis”. O inusitado apelo avivou memórias, devolveu-me a indelével imagem do Cassiano, cábula e decano dos alunos, urinando contra as paredes dos sanitários da sua escola, incitado pela algazarra de outras boçais criaturas. Decorridos tantos anos, as suas estridentes gargalhadas ainda ecoam, violentas, nos meus ouvidos.

No início de 2020, pouco antes do surgimento da covid-19, visitei uma faculdade de pedagogia. No hall de entrada, estava afixado um imponente cartaz: “Salvemos a Amazónia”. Em letras pequenas, apelava-se a uma intervenção cívica que pudesse atenuar a sanha destrutiva dos que dizimavam a floresta. Em letras ainda menores, uma nota: “Ao poupares papel, estarás a ajudar-nos nesta campanha”.

Segui pelos corredores dessa faculdade. Cartazes caídos dos expositores eram pisados por professores, alunos, funcionários, por quem por ali passava. Desemboquei num bar inundado de algazarra e lixo, líquidos não identificados e restos de guardanapos pelo chão. Na sala dos professores, observei um cesto atafulhado de papel. As folhas estavam impressas apenas de um lado. Metade das folhas estava em branco, mas estavam amarrotadas, sujas, inutilizadas.

Evoquei uma escola que eu bem conheci, onde os alunos aproveitavam o papel até ao último milímetro e colocavam na “caixa das folhas de rascunho” aquelas folhas que só tinham sido utilizadas de um lado. Recordei o gesto de um pai que, certo dia, foi oferecer a essa escola duas resmas de papel, porque “tinha visto o filho a escrever num papel usado e pensava que a escola estava a passar por dificuldades”. Quando lhe foi explicado, esse pai entendeu que a prática de reutilizar papel não se ficava a dever a dificuldades, mas à criação de hábitos, comportamentos, atitudes. Ficou sabendo que o seu filho tinha adquirido competências de educação ambiental.

Competência é o saber em ação e, nas minhas deambulações pelas escolas, escutava desabafos de professores que, sem descurarem o bom desempenho dos seus alunos no domínio cognitivo, também se preocupavam com o atitudinal:

“As nossas crianças descobriram ninhos de morcegos nas entranhas de uma velha árvore, por detrás da escola. Com elas, fizemos um projeto, para conhecer a vida dos morcegos e cuidar da árvore que era a sua casa. Chegou o “Dia da Árvore” e nós lá fomos com os alunos para uma tarde de observação. Quando chegámos ao lugar onde deveria estar a árvore, só vimos restos de ramos cortados e raízes arrancadas. Diga lá, amigo Zé, se nós não devemos estar desanimadas!

“O que aconteceu?” – perguntei.

“A diretora, quando soube da descoberta dos alunos, disse que “as crianças poderiam tentar subir à árvore e cair”. E, na manhã do ”Dia da Árvore”, mandou cortar a árvore, que era a casa dos morcegos”.

Enquanto isso acontecia, em todas as salas de aula, em cartilhas iguais para todos, todas abertas na mesma página, todos os alunos, ao mesmo tempo, pintavam árvores de papel… árvores todas iguais.

Nos idos de vinte, a Amazônia sofria uma devastação sem precedentes. E os professores brasileiros pareciam alheios às causas desse desastre ambiental, mantinham-se coniventes com o holocausto educacional perpetrado pelo poder público. Não entendiam (ou os impediam de reconhecer) que reproduziam nas suas salas de aula um modelo social, causa indireta da destruição da Amazônia e responsável por outros crimes.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVII)

Governador Valadares, 23 de agosto de 2040

Escondido no fundo de uma nau, a caminho do Maranhão do século XVII, Vieira escreveu num dos seus “Sermões”:

“Vós, diz Cristo, falando com os pregadores, sois o sal da terra. E chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção”.

Discretamente, cuidadosamente como deveria agir um foragido da Santa Inquisição, um jesuíta denunciava a corrupção que grassava no Reino de Portugal e dos Algarves. Também na sociedade e na escola do século XXI, faltava o “sal” do Vieira. E a imprensa fazia eco de um “caso de cola”, protagonizado por alunos de um centro de estudos. Cito o articulista:

Esses formandos foram reduzidos ao estatuto de alunos e os formadores elevados à categoria de catedráticos. E, assim, em vez de efetiva preparação profissional, se ministra um ensino essencialmente teorético, em que a cabeça dos formandos é atulhada com tecnicidade pelos seus omniscientes mestres. Não admira que, assim tratados, se comportem como alunos, para quem copiar nos exames sempre foi uma espécie de direito natural”.

Diz a sabedoria popular que cesteiro que faz um cesto faz um cento. Tínhamos razões para nos preocuparmos com a degenerescência da honestidade. E, quando essa degenerescência se manifestava na escola, talvez se explicasse a degenerescência restante.

Um professor-vigia de uma prova nacional foi instruído pelo “manual do aplicador” a colocar os alunos a uma “distância prudente” uns dos outros. Inteligente, como qualquer professor, apercebeu-se de que, sem nada dizer, o não-verbal falava mais alto do que o verbal e que ele agia como quem considerava estar na presença de seres potencialmente desonestos. Com tal procedimento, estaria a praticar o chamado “currículo oculto”, a transmitir valores negativos aos alunos: mentira, deslealdade, falsidade, “espertismo”. E, como esse professor, para além de inteligente, era sensível e assumia individualmente responsabilidade pelos atos do seu coletivo, sentiu-se um ser miserável.

Uma escola brasileira decidiu enviar os deveres de casa através da internet. Aqueles alunos que realizassem todas as tarefas seriam recompensados com um ponto extra na média do bimestre. A “inovação” foi um sucesso enquanto durou. Um professor descobriu que as respostas constavam de um site de relacionamento criado por uma aluna. A criativa aluna foi ameaçada e instada a retirar as respostas do site.

Numa das minhas viagens pelo chão das escolas, li num dístico, à entrada de um hotel: “Caro hóspede, devido à triste estatística de três ou quatro toalhas extraviadas por mês, estamos intensificando a revista após o fechamento da sua conta”. O absurdo virara instituição, como se avalia por mais uma situação, que passo a descrever.

O Gastão era professor e homem que se dizia íntegro. Um amigo do Gastão ganhou a eleição para a prefeitura e convidou-o para ser o chefe de divisão de educação. Seria necessário conferir seriedade à escolha e foi aberto concurso público. Falta referir que o critério básico para admissão a concurso seria ser titular de licenciatura em… Ciências da Religião. O Gastão foi o primeiro (aliás, o único) classificado no concurso. Acrescente-se que o Gastão era professor de… Educação Moral.

Era preciso acreditar que a crise moral em que o Brasil estava imerso seria civicamente debelada e que outra educação seria possível. Urgia tomar decisões éticas, porque já o velho Platão nos avisava ser curta a distância entre a corrupção moral e a tirania.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVI)

Fidelândia, 23 de agosto de 2040

Ao longo do século XX, o Brasil foi pródigo em fazedores de boa educação. E um português ilustre se veio juntar a uma plêiade de sábios, ignorada pelos brasileiros, nos idos de vinte.
Para o Mestre Agostinho, mais importante do que educar, seria evitar que os seres humanos se deseducassem, pois “cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta”. Esta asserção aplicava-se plenamente aos tenebrosos tempos vividos por volta de 2020. Era preciso “não desanimar”, não desistir, esperançar.
Agostinho acreditava sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário para transformar o mundo. E agiu em coerência com as suas convicções. Ajudou a criar universidades, tertúlias, institutos. Traduziu para a língua brasileira a obra de Montessori e de outros escolanovistas, ousou a ruptura com o instrucionismo, gesto poético de quem aprendeu a arte de colocar o sonho em ato.
Debaixo de uma mangueira próxima da faculdade de Pedagogia da Universidade de Brasília, escrevia poemas, que distribuía por alunos, professores e candangos. E, quando propôs que se trocasse o lema “ordem e progresso” por “liberdade e desenvolvimento”, sofreu as consequências da sua civil desobediência e da coerência com o seu credo:
“Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia. A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter”.
Em Santa Catarina, em São Paulo, na Bahia, na Paraíba e outros lugares do Brasil, que amou e celebrou, viveu como um franciscano, porque sabia que nascemos para criar e que a vida deve ser gratuita. Consta que, em Itatiaia, reuniu gente naquilo que, hoje, poderíamos designar por comunidade de aprendizagem. Sabia que o desenvolvimento dessas comunidades dependia da diversidade de experiências das pessoas que as integravam, bem como requeria que todos os membros que a constituíssem se envolvessem num esforço de participação, de produção conjunta de conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente.
Quando puderdes, lede o Manifesto lançado por educadores para quem Agostinho continuava a ser inspiração, educadores que não deixaram morrer a criança grande que os habitava, que perceberam o significado da entronização da criança na Festa do Divino, objeto de muitas de agostinianas reflexões.
Etimologicamente, a palavra crise – do grego Krisis – designa um momento crítico. Quarenta anos após a brasileira despedida de Agostinho, a educação daquela que foi a sua segunda pátria continuava imersa numa crise de séculos, com a Educação à deriva, pois quem a poderia transformar não tinha poder e quem tinha poder não a transformava.
Agostinho partiu de Brasília para Portugal, quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada para Brasília, quando a pátria mãe andava distraída em tenebrosas transações e a ditadura levava Darcy ao exílio. Na Brasília de sessenta, deixou-nos um Instituto de Letras e o início de um projeto de universidade brasiliense e… brasileira. Com Anísio, Darcy e outros amigos do sul, Agostinho lançou sementes de mudança na educação, no reconhecimento de que não existe alternativa à concretização de utopias.
E novas utopias se anunciaram em… 2020.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCV)

Itanhaem, 21 de agosto de 2040

No início deste século, a Ponte recebia milhares de visitantes. Oriundos de muitos países e continentes, a curiosidade os impelia a percorrer o mesmo itinerário do meu amigo Rubem Alves. O Rubem fora em busca da escola com que sempre sonhou, sem imaginar que pudesse existir. E a ancontrou.

Mas, diz a sabedoria popular que “santos da porta não fazem mlagres” e que “ninguém é profeta na sua terra”. Talvez por isso, raros eram aqueles professores que, sendo portugueses, visitassem… aquela portuguesa escola. Entre os raros visitantes lusos, alguns captaram e adotaram o “espírito da Ponte”. O meu amigo António foi um deles. Após a visita, esse excelente educador tomou a decisão ética de mudar a sua prática, para que todos os seus alunos pudessem aprender. E adentrou a via sacra dos disruptivos.

Numa escola sujeita a cartesianas segmentações, o amigo António era professor do “primeiro ciclo”. Com preocupação, via que, quando os seus alunos completavam esse ciclo e transitavam para o seguinte, quase todo o seu trabalho se perdia. Os jovens passavam a ser sujeitos a uma ensinagem que nada ensinava. Em poucos meses, os quatro anos de desenvolvimento de uma educação de excelente qualidade se dissipavam nas salas de aula do “segundo ciclo”.

Para que os seus alunos continuassem a beneficiar de efetivas aprendizagens, o António solicitou aos órgãos de direção e gestão do seu agrupamento de escolas a integração do “segundo ciclo” no projeto. Apresentou a fundamentação legal e científica da proposta. Porém, a maioria dos professores do “segundo e terceiro ciclo”, sem apresentar qualquer fundamento legal ou científico da decisão, indeferiu o pedido.

O amigo António não era homem de aceitar desaforo. Compreendeu que era já tempo de contestar lideranças tóxicas. Contrariando as indecorosas imposições dos seus pares, integrou o “segundo ciclo” no projeto. Acaso alguma múmia pedagógica viesse a oferecer oposição, não seria o António quem teria problemas – seria a múmia.

Quando milhares de professores colocaram idêntica decisão em ato, foram alvo de assédio moral, ameaças, perseguições. Aperceberam-se de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo dos professores disruptivos era… o outro professor. A ditadura de maiorias silenciosas já havia destruído muitos bons projetos e obrigado muitos professores a marcar consulta em psiquiatria.

No Brasil desse tempo, havia escolas que, tendo banido as aulas, conseguiam garantir aprendizagem a todos. No decurso da pandemia e na contramão de um irresponsável “regresso às aulas”, essas escolas consolidavam um modelo misto de aprendizagem – presencial e virtual – e… perturbavam o instituído. Também sobre elas caiu a infâmia e o desrespeito de canalhas.

Gandhi dizia que ser tolerante não significa aceitar o que se tolera. Poder-se-ia aceitar que a paciência suportasse a injúria? Poder-se-ia tolerar que todas as atitudes fossem consideradas legítimas? Poderíamos incorrer num relativismo “tolerante”, onde verdade e mentira se equivaleriam? Poder-se-ia servilmente aceitar manifestações de prepotência? Que tolerância se poderia colocar, por exemplo, nos limites das lideranças toxicas de gestores educacionais? Dever-se-ia tolerar o colapso ético, situações de desprezo pela vida e do não cuidar da infância, frente ao aceno do “regresso às aulas!? Essa “tolerância”, aliada à permissividade não permitiria que os tolerados impusessem as suas conveniências e caprichos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCIV)

Vargem Grande, 21 de agosto de 2040

Voltei à leitura de crônicas publicadas há quase um século por uma poeta, que, pelos seus dezesseis anos, se fez professora. E, se na cartinha anterior evoquei um dos heterônimos pessoanos, nesta eu registro um episódio semelhante àquele que foi protagonizado por Cecília Meireles.

No ano anterior à sua morte, Fernando Pessoa submeteu a concurso a sua obra maior: “Mensagem”. Essa obra prima foi considerada “segunda categoria” pelo júri indicado pela ditadura salazarista. Um obscuro poetastro conquistou a “primeira categoria”. Enquanto isso, Cecília candidatava-se à cátedra de literatura da Escola Normal. Foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. A subcultura medieval do ditador Salazar, como o submundo do negacionismo, infligiam torpes vinganças àqueles que se rebelavam.

Contemporâneo da Cecília, o pedagogo Celestin Freinet, nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, tomava consciência de uma das origens do conflito: “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos”.

Ao longo de duzentos anos, a “velha pedagogia” havia gestado uma sub-humanidade. Os “perigos da velha escola” se revelavam, ciclicamente, sempre que uma crise do sistema (ou um vírus) colocava no poder políticos com aparência de gente. No mesmo ano em que Freinet lançava o seu aviso, a “velha pedagogia” ajudava a eleger… Adolf Hitler.

Na década de 30, em verso e numa prosa corrosiva, Cecília expressou a sua rebeldia. Nas páginas dos jornais do Rio, pugnou por uma efetiva renovação educacional, ousou romper tabus de uma sociedade moralmente doente, denunciando um regime, que invocava “a Liberdade como sua padroeira, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”.

Quase um século decorrido, as crônicas da Cecília ganhavam atualidade. O rumo da educação da “patriazinha que não rimava com mãe gentil” do Vinícius era merecedora do mesmo comentário da Cecília às reformas do Capanema. A poeta e professora pugnava por ”uma reforma de finalidades, de democratização da escola, todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. Numa prosa mordaz, assim comentou uma formação de professores semelhante àquela que, em 2020, ainda se fazia:

“Que lhes valeu todo o curso que fizeram? Em vão, beberam a caudalosa erudição dos catedráticos imponentes, fizeram provas escritas de inúmeras laudas. Palavras, palavras, palavras, que o vento levou. As aulas de psicologia e pedagogia ficaram geladas nos livros; as outras não levaram em si nenhum gérmen dessas duas, que são indispensáveis a quem vai ser professor. Pobres alunas, que não tiveram quem as orientasse a tempo! Depois de tanto trabalho, terão de fazer, por si mesmas, toda a cultura técnica que ninguém pensou ou lhes pode fornecer no momento devido”.

Cecília contestou uma Escola reprodutora de iniquidades, feita de burocracia e liderança toxica, que perdera todo o sentido. Denunciou uma construção social feita de salas de aula habitadas por solidões, que sobrevivia qual cadáver adiado suportado em projetos paliativos. E colocava em verso o seu apelo: “Vem, retira as algemas dos meus braços, porque a vida só é possível reinventada”.

Cecília bem mereceu os versos que o Manuel Bandeira lhe dedicou: “Cecília, és tão forte e tão frágil / Como a onda ao termo da luta / Mas a onda é água que afoga / Tu és enxuta”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCIII)

Teófilo Otoni, 19 de agosto de 2040

Enquanto colocava alguma ordem no caos dos meus arquivos, encontrei o registro de um encontro virtual em que participei, nos idos de vinte. Com o amigo Leonardo e outros extraordinários educadores dos institutos federais mineiros, vivi momentos de escuta e muitas aprendizagens. A audição desse registro suscitou a escrita desta cartinha.

Há uns sessenta anos, o Olivier avisava que aprender, em todos os domínios, era desaprender, mudar de hábitos no mais íntimo do ser humano. Aprender era romper com hábitos que se tornaram uma segunda natureza, abandonar pseudocertezas, afastar “obstáculos epistemológicos” oriundos da tradição e da experiência ingénua. Aprender seria desaprender, recusar as verdades primeiras, os “erros primeiros” do Gaston.

No poema XXIV, Alberto Caeiro dizia-nos ser necessário desaprender. Porque apenas pensar é estar doente dos sentidos. “O essencial é saber ver, saber ver quando se vê, o que exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender.”

Urgia incluir nos currículos de formação uma pedagogia da desaprendizagem. Precisávamos reelaborar a nossa cultura pessoal e profissional, “raspar a tinta com que nos embotaram os sentidos”, para ouvir e escutar pedidos silenciosos de alunos, para sentir apelos inauditos e compreender os motivos de um não querer.

O que resta para a Escola ensinar? – perguntava, em 2010, a minha amiga Ely. E logo me vieram à mente os quatro pilares do relatório da UNESCO. Teria a Escola ensinado aquilo que o Jacques Dellors, muitos anos antes, havia recomendado? Os jovens teriam aprendido a conhecer, a fazer, a ser e a conviver?

Aprender a conhecer era algo arredio do universo escolar. Quanto muito, os jovens eram depositários de informação jamais transformada em conhecimento, quase-inutilidades, que apenas serviam para debitar em provas e alcançar um diploma. As escolas deveriam ser espaços de aprendizagem, mas eram espaços de ensinagem. A escola que, infelizmente, tínhamos nos idos de vinte não lograva concretizar os quatro pilares da UNESCO. E nem suspeitava de que havia mais três: o aprender a desaprender, o aprender a desobedecer e o aprender a desaparecer. Nesta cartinha, vos falo do primeiro. Talvez vos fale dos restantes, numa outra.

Dizia o Manoel que aprender era desaprender, para vencer o que nos encerrava, nos alienava, porque “desaprender vinte e quatro horas por dia ensina princípios”. Para o amigo Nóvoa, o centro (e o sentido) da escola era a aprendizagem e as pessoas que a realizavam. Mas, nos anos vinte, carecíamos de desaprender.

A resposta à pergunta da Ely era simples: se a família não ensinava a viver, à Escola restava ensinar tudo… e não conseguia. Até a Clarisse havia dado conta da falência do instrucionismo, expressa numa espécie de autocrítica:

Quando penso que eu dava aulas de matemática e português a ginasianos, mal acredito. Porque hoje seria incapaz de resolver uma raíz quadrada. Quanto a português, era com o maior tédio que eu dava regras de gramática. Depois, felizmente, vim a esquecê-las. É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente”.

Há quase meio século, um professor propôs que usássemos a internet de maneira investigativa e criativa. Na sequência e no contexto da pandemia, uma jovem me dizia que tinha tudo aquilo que precisava para estudar. Em casa, na biblioteca, na internet… sem precisar cumprir horário de aula.

Essa jovem tinha compreendido a mensagem de um vírus. Os educadores dos institutos federais mineiros, também.

 

Por: José Pacheco

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