Pirenópolis, 27 de abril de 2040
Sou do tempo do Concilio Vaticano II. Li e reli a “Pacem In Terris”, uma encíclica da década de sessenta, que realçou a necessidade de se pugnar pela paz, numa época marcada pela proliferação de armas nucleares e a iminência de um Armagedon. Estávamos em plena “Guerra Fria” e a Igreja refletia sobre a dignidade, os deveres e os direitos humanos, enquanto fundamentos da paz mundial.
Com o visionário Ângelo Roncalli aprendi que a Igreja não é um templo: é “o povo de Deus em marcha”. Se for curial que se estabeleça um rude paralelo com esse princípio, diria que o isolamento social imposto pelo vírus demonstrou que escolas não são prédios. Muito menos, prédios divididos em celas de aula. Quando um vírus forçou o delegar da função da escola na Internet e nos lares, mostrou-nos que escolas são pessoas, “fazendo o caminho ao andar”. Escolas são pessoas em permanente processo de autoconstrução, como diria o Maturana. Mas em autoconstrução com os outros, porque ninguém aprende sozinho.
Participei, ativamente, nas mudanças que o Vaticano II propôs. Ajudei a colocar o altar e o sacerdote de frente para o “povo de Deus em marcha”. Dirigi coros de igreja. Quase entrei para um seminário… mas decidi ser professor. Quando me perguntavam o porquê da minha decisão, eu respondia:
“Nós vamos para a educação, fundamentalmente, por uma de duas razões: ou por amor, ou por vingança. Eu fui para a educação por vingança, confesso. Mas fiquei por amor. Jurei a mim mesmo que nenhum dos meus alunos passaria pelas situações de humilhação, de exclusão e por outras violências por que passei, quando aluno”.
Anos a fio, dei as minhas aulas, sem conseguir “vingar-me” e sem saber por que não conseguia, até encontrar “explicação”. Se a Igreja, de algum modo, se havia transformado, a Escola permanecia idêntica à da primeira Revolução Industrial. Estruturado há mais de duzentos anos, o modelo de ensinagem reproduzia-se de forma tão natural, que parecia perpetuar-se. Concluí que deveria deixar de dar aula, para me “vingar”.
Entrei num doloroso processo de reelaboração da minha cultura profissional e em ruptura com o sistema de ensinagem. Artesanalmente, como se fora um “aprendiz de feiticeiro”, criei um sistema de aprendizagem. E… Voilá! – Consegui “vingar-me”! Parei de dar aula, os alunos começaram a aprender.
Faltava completar esse gesto de amor e de intuição pedagógica com o seu fundamento científico, pois não há prática sem teoria. Durante sessenta anos, partilhei a “vingança” e saboreei teoria. Fiz amizade com mestres ilustres, que produziram belos nacos de prosa. Como este, da autoria do meu amigo e mestre Pedro Demo: Aula é o que mantém a escola presa ao passado fordista ou similar, como consta dos “Tempos Modernos” de Chaplin, repetitiva, monótona, linear, sequencial, insuportável, desumana. Não tem como objetivo cuidar da aprendizagem do estudante, mas de transmitir conteúdo que frequentemente o estudante sequer entende.
Quando fomos surpreendidos pelo “covid-19”, a crença nas virtudes da velha escola ainda mantinha os professores na ilusão de uma possível melhoria de um modelo em decomposição. E os pais não sabiam que uma aula presencial era tão inútil quanto uma aula virtual. A normose instalara-se, porque todo hábito, uma vez adquirido, instala-se no subconsciente. Mas, durante a pandemia, professores tomaram consciência da necessidade e urgência da reconfiguração das práticas educacionais. Decidiram “vingar-se”…
Contar-vos-ei como tudo aconteceu.
Por: José Pacheco