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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXII)

Serzedelo, 12 de janeiro de 2042

Aqui concluo a estória do Bino. Devereis estar lembrados da visita da senhora “bem vestida, bem cheirosa e aprumada”. Foi ela quem roubou o Bino à avó Zefa e o levou para bem longe. 

Sozinha, a avó Zefa não resistiu. Minada pelo álcool e pelo desgosto, se deixou morrer. Sem pastor, o que restava do rebanho foi arrematado pelo Luís Vendeiro. O Malhado foi servir outros senhores e o Bino transformou-se num degredado de fundo de sala de aula. 

No dizer da mestra, “o moço era coisa ruim e insubmissa e nem com porrada lá ia”. Entremeava sessões de palmatoada com fugas, invariavelmente, interrompidas pelas frequentes intervenções da “senhora bem cheirosa”. Acabou internado numa instituição da cidade grande. E, se a guarda conseguia surpreendê-lo nos montes, que ele tão bem conhecia, mais facilmente os agentes da autoridade o capturavam na cidade em que se perdia, em tantos lugares de se ocultar.

O Bino peregrinou por várias escolas, até chegar à Ponte. Com dez anos feitos, era transferido para uma escola de “última oportunidade”. À semelhança de muitos outros casos de “insucesso” que a essa escola aportaram, o “Bino Bouças” vinha recomendado por psicólogos e acompanhado por um grosso relatório de pedopsiquiatria. 

Apesar dos dez anos feitos, o Bino aparentava não ter mais de seis ou sete. Marcado pelo raquitismo, baixo, franzino, atarracado, parecendo não ter pescoço (como diziam alguns dos seus companheiros), juntou-se aos pequenos que vinham à escola pela primeira vez. Caminhava bamboleando-se, olhando de soslaio para tudo e para todos. A certa altura, um professor pensou que aquele miúdo de aparência frágil estava em apertos e à procura de uma casa de banho. Aproximou-se e, com extrema delicadeza, inquiriu:

“Precisas de alguma coisa, meu menino?”

A resposta, numa voz grossa e zangada, deixou o professor estupefacto:

“Ó chefe, estou à rasca. Onde é que se mija?”

Nos primeiros dias passados naquele novo e estranho mundo de aprender, ainda que o não soubesse, o Bino enfatizava o sentido lúdico da escola – o termo schola tem o significado etimológico de ócio… – embora fosse notado na hora do recreio pelo exagero na distribuição de pontapés e cuspo. 

O seu reportório de insultos era vasto. O impropério aplicado a preceito, na ponta da língua e da caneta, era uma das suas competências mais notadas, ainda que não constasse do currículo formal. Mas essa competência foi abalada numa assembleia em que se provou que os “palavrões” usados pelo Bino não constavam do dicionário. E, se não constavam, não existiam, pelo que a Assembleia deliberou que o Bino teria de repensar o seu discurso e refazer o repertório. 

O Bino esmerou-se. Passou por um processo de profunda reelaboração cultural e amiúde recorria à sinonímia, para gáudio dos companheiros e satisfação dos professores. 

Foi sinuoso o processo de transformação daquele jovem e pleno de contradições. Para que se perceba o trajeto de reparação dos danos por que o Bino passou naquela escola, transcrevo, a título de exemplo e entre muitos que poderia citar, um depoimento deixado pelo Bino Bouças na folha afixada no mural do “Acho Mal”: 

“Eu acho mal que os meninos vão à casa de banho defecar, que façam as necessidades e depois deixem o vaso todo cagado”.

Era uma vez… um jovem a que, por ser baixo e atarracado, apelidaram de “Bino Sem Pescoço”. Por via de desejo de suave vingança, ele não cuidava do vernáculo. Hoje, é um homem extraordinário, um ser humano dos mais sensíveis que conheço. Por pouco, não constou do rol de “marginais”, que a sociedade e a escola engendravam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXI)

Vila Nova de Cerveira, 11 de janeiro de 2042

O Bino foi considerado “aluno incapaz de se adaptar à escola”. E, quando ingressou na Ponte, o relatório que o acompanhava avisava: 

“É um aluno que apresenta dificuldades de controlo dos impulsos agressivos e manifesta o maior desinteresse pelas aprendizagens escolares, para além de uma já evidente tendência para a aproximação ao álcool”

Pudera! O Bino fizera o tirocínio com a avó. E afiançava-me, muito tempo depois, que “aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a avó Zefa já tinha uma grande conta de assentar na mercearia, e na tasca já nem a podiam ver, e muito menos lho vendiam”.

Relutante às “aprendizagens escolares”, o Bino aprendeu a vida na busca de mantimento, que “a reforma da avó não chegava sequer para a pinga”. Especializara-se em assaltos a hortas e pomares. Aos quatro anos, era hábil na fisgada certeira e na ferradela pronta no braço do hortelão que o surpreendesse em flagrante. 

O Bino não conheceu pai nem mãe. Consumada a parição, a progenitora abalou para França, no rasto do presumível pai. Nunca mais deu notícia. Uma avó o acolheu num tugúrio de chão de terra batida.

O Bino cresceu entre maus-tratos e fomes de dias. Ao fim da tarde, engolia uma malga de “sopas de cavalo cansado”, enquanto aguardava a chegada da avó. Vinha, invariavelmente, embriagada e de terço na mão. Avistando-a, o Bino descalçava as botas de surrobeco herdadas do falecido avô e atirava-se para debaixo das mantas. 

Ao cabo do primeiro mistério, a avó já cabeceava, arrastava a voz na ave-maria e acabava por sucumbir aos alcoólicos eflúvios, adormecendo encostada ao seu ombro. O Bino deixava-se anestesiar pela respiração da velha e afundava-se num suave torpor, até de madrugada. 

A pequena leira em redor do casebre era pedregosa. Quase nem ervas cresciam, muito menos coisa semeada. De modo que o sustento e o “aquecimento central” do Bino e da avó Zefa eram as ovelhas do pequeno rebanho que com eles coabitava.

Sabemos que o brincar e o jogar são característicos de um tempo de expansão do conhecimento de si mesmo, do mundo e dos sistemas de comunicação. E que a infância acaba quando alguém reconhece que a sua vida deixou de ser um jogo maravilhoso, ou quando alguém proíbe outro alguém de brincar. O Bino soube-o quando a avó Zefa o fez levantar da cama, numa frígida madrugada, aos quatro anos mal feitos. 

Hoje, és tu quem leva as mequinhas ao monte, que eu não me tenho de pé. Deixa-te levar pelo Malhado, que lá chegas”.

E chegou. Pelo meio da tarde, o cão guiou o pequeno rebanho no regresso a casa, com o Bino a reboque, esfomeado e com os pés descalços fustigados pelos cardos. Nunca mais ficaria no aconchego das mantas para além do nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu mestre e única companhia até aos sete anos de idade. 

Um dia, “uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada” (palavras que o Bino ditou) espreitou para dentro daquele tugúrio partilhado por animais e gente, e perguntou se a avó se chamava Josefa da Conceição. Disse vir da parte das autoridades e que as autoridades tinham mandado uma carta à avó do neto que a escola reclamava. A avó retorquiu que não senhor, que não tinha recebido carta coisa nenhuma e que, “ainda que tal cousa lhe chegasse, nenhuma serventia teria por das letras nada saber”.

De nada valeu a ladainha à avó que das letras nada sabia. O único proveito que a avó Zefa obteve da “senhora bem-vestida, bem cheirosa e aprumada” foi uma magra pensão de sobrevivência, tão magra que mal dava para encomendar meia dúzia de garrafões. 

Amanhã, vos contarei o restante da estória do Bino Bouças e de outros Binos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLX)

Louredo, 10 de janeiro de 2042

Pelos idos de vinte, o meu amigo José Matias Alves “postou” no Facebook um texto encimado pelo título “Libertar a Escola da Ideologia Prisional”. Eis o que o José escreveu:

“Os alunos passaram a ser obrigados a estar mais tempo na escola. A ideologia da escola a tempo inteiro foi-se disseminando e naturalizando sob a pressão da desregulação e da escassez do tempo familiar. Paulatinamente, a escola foi sendo obrigado a ser tudo: lugar de instrução, de socialização, de estimulação; lugar de salvação para a progressiva desresponsabilização da sociedade, das famílias, das instituições sociais que operam no território; lugar de custódia, de guarda, de parque, de exílio.

Ora, este cenário é impossível de manter. A exploração do trabalho não pode minar toda a vida familiar e sobredeterminar a vida social (…) porque pode destruir a missão central da escola, que não pode deixar de ser a promoção do conhecimento que emancipa, inclui e liberta.

Há, claramente, um excesso de escola única, prescritiva, padronizada e coarta a liberdade de aprender. E que é preciso denunciar. Um excesso e uma imposição que transforma as crianças e os adolescentes em reféns de uma escolaridade obrigatória de natureza totalitária. E os professores em guardas quase prisionais.”

No janeiro de 2022, fui de Lisboa a Braga, na intenção de ajudar a libertar as escolas e as comunidades da “ideologia prisional”. Na estação do trem, esperava-me uma notável pianista, a Jaqueline, acompanhada de um excelente cozinheiro, o João. Dois jovens emigrados na Alemanha, que voltaram à pátria para ajudar o seu povo a libertar-se da “ideologia prisional”.

Depois de um opíparo jantar minhoto, servido pela Maria e pelo António, rumei a Vieira do Minho. Na sede do agrupamento de escolas, reuni com o Fernando, a Glória e outros educadores. E voltei à estrada, numa rota que bem conhecia, do tempo em que, no meu carrinho em segunda mão, ia ajudar o meu amigo Tozé a transformar a educação de Montalegre. 

Quando, no início dos anos noventa, passava pelo Sudro, a caminho de Montalegre, não suspeitava de que, na encosta protetora do Cávado, uma comunidade resistia ao desgaste do tempo e de uma modernidade tardia. Por essa altura nasciam aqueles que fui encontrar no início dos anos vinte. Era gente jovem e outra menos jovem, tinham em comum o amor à terra e a consciência de que, pela educação, ali poderiam permanecer e melhorar a trabalhosa vida serrana.

Conversei com o António historiador, com o Padre José, com o Casimiro e outros familiares do João cozinheiro. Junto à lareira – lá fora, a temperatura andava perto dos zero graus – sentado num escano (para quem não saiba, trata-se de um banco com espaldar alto), saboreei pinhões, jeropiga, vinho tinto, acompanhando um belo almoço. 

O Ricardo e o João, dois jovens amigos, nos fizeram companhia na visita ao centro educativo do Cávado. Esses dois engenheiros manifestavam a generosa intenção de trocar a relação com máquinas pelo relacionamento com pessoas, aderindo a um projeto educacional. Na próxima cartinha, vos falarei do que foram os centros educativos e dos seus trágicos efeitos.

A Jaqueline chegara da Alemanha, para melhorar a vida do seu povo. Durante a passagem por Crasto, nunca parava de cantar. No dia de regressar, a Jaqueline trocou Bach por Jorge Palma. Acompanhei o seu cantar com o sentimento de que o meu tempo de estrada estava chegando ao fim, enquanto o daqueles jovens apenas começava: 

“Enquanto houver estrada para andar / A gente vai continuar / Enquanto houver ventos e mar / A gente não vai parar”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLIX)

Crasto, 9 de janeiro de 2042  

Mais ou menos por esta altura, mas há vinte anos, os filhos da pandemia surgiam nas páginas dos jornais e redes sociais, amontoados num show comemorativo do aniversário de uma cidade. Quando os governantes proibiam ajuntamentos de Carnaval, milhares de jovens jogavam ao gato e ao reto com um vírus. O show acabou em tiroteio, deixando cinco pessoas baleadas. Mas, quantas teriam sido contaminadas?

Diante do Kairós da pandemia, urgia repensar o pensamento. E o regresso aos prédios das escolas, após pandemia, deveria servir para nos afastarmos de práticas de moer a saúde mental de crianças. Apenas uns poucos lograram consegui-lo.

Nesse tempo, eu contava estórias à Alice e ao Marcos, estórias da escola que tivéramos, comentando notícias, ou dando voz a vozes anónimas. Reinventava estórias através das palavras de professores, que falavam do tempo em que tiveram ofício de aluno e das escolas e professores que puseram marcas nas suas vidas. Contava estórias de professores que não usavam a pedagogia como mera ciência ou arte, mas ajudavam outros aprendizes a aprender a arte de viver.

Contar estórias a jovens de idade tinha vantagens sobre contá-las a adultos. Quando criança, o meu neto era um ouvinte atento e não fazia comentários judiciosos. Vendo o Marco gatinhando, dir-se-ia que parecia alheio, ao enredo das estórias. Mas, não era bem assim. Se eu parasse de ler, ele parava de cirandar. Se eu retomasse o fio da narrativa, ele retomava o seu peregrinar pelo chão da sala. 

A Alice, o Marcos, outras crianças e adultos, que não tinham esquecido as crianças que foram, me guiavam na descoberta de beleza. Em todas as gerações, houve seres avisados, que não se deixaram corroer pelos ácidos de tempos sombrios, seres que arejavam instituições, abrindo janelas por onde penetravam ventos de mudança. 

Nas apáticas escolas que ainda tínhamos, a “Idade da Educação” já acontecia, em espaços intersticiais, apenas acessíveis aos olhares desses seres, olhares que se não deixavam corromper, olhares de educadores que ousavam refletir sobre o seu ofício, de trabalhadores intelectuais que se abstinham de se aventurar em modismos pedagógicos. Esses educadores tinham escapado das tentações da não-directividade ingénua, do voluntarismo, do improviso e do conservadorismo pedagógico, de práticas que conduziam ao disfarçar da reprodução de práticas escolares obsoletas. Sabiam que a Idade da Educação chegaria no tempo dos filhos dos filhos dos seus filhos. Sabiam esperar agindo.

O Abée Pierre dizia que a vida não era mais do que um pouco de tempo, que nos era dado para, se quiséssemos, aprendêssemos a amar no sempre e para além do tempo. 

Nisso eu acreditava. E, se me era inacessível adivinhar como seria o “tempo da Educação”, eu imaginava o que desejava que fosse. Autorizava que a seta do olhar do sonho penetrasse num tempo além do tempo do mundo possível. Porfiava no precário exercício de escrita, sem acalentar outra intenção que não fosse a de dizer o que era preciso que fosse dito, num tempo de espera. Procurava desenvencilhar-me do fardo do ontem, certo de que o futuro não seria mais do que o “agora” que estava por vir. 

Como o menino índio de uma fotografia do Sebastião Salgado (balançando numa rede, num gostoso fim de tarde sem relógio, nem agenda), eu entrava em cada portal de Primavera envolvido pelo ritmo das marés. Sentia-me envelhecer como uma árvore no jardim da escola, sem ganhar raízes, por saber que neste mundo nada é nosso. Mas sabendo, também, que tudo seria possível no tempo dos filhos dos filhos dos nossos filhos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLVIII)

Vale Longo, 8 de janeiro de 2042 

No janeiro de há vinte anos, a UNESCO divulgava mais um relatório. Nele se dizia que os estudiosos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura tinham gastado precioso tempo “reimaginando juntos nossos futuros”, para “um novo contrato social para a educação” e que haviam sido consultados mais de um milhão de cidadãos, bem como “quatrocentas escolas associadas e 200 cátedras Unesco em todo o mundo”. 

A minha leitura começou curiosa e terminou decepcionada. Os estudiosos andaram em busca de uma “educação do futuro”, quando aquilo que concluíram e apresentaram como proposta já pertencia ao passado. A um passado, durante o qual muitos projetos com o perfil definido pelo relatório tinham sido destruídos. Isso mesmo, queridos netos, muito tempo antes de esses estudiosos reimaginarem” a educação do futuro, muitas escolas já se organizavam “em torno dos princípios de cooperação, colaboração e solidariedade”. 

Os currículos dessas escolas davam dar ênfase a “uma aprendizagem ecológica, intercultural e interdisciplinar”, ajudando os alunos a “acessar e produzir conhecimentos, desenvolvendo ao mesmo tempo a sua capacidade de criticá-los e aplicá-los”. Eram “escolas reinventadas a fim de facilitar ainda mais a transformação do mundo em direção a futuros mais justos, equitativos e sustentáveis.

Coloco entre aspas excertos da apresentação do relatório. No dizer dos seus autores, essas escolas deveriam ser “locais educacionais protegidos”, visto que promoviam a inclusão, a equidade e o bem-estar individual e coletivo. Mas, cadê a UNESCO, quando os professores dessas escolas, “produtores de conhecimento e figuras essenciais na transformação educacional e social, ao invés de serem reconhecidos, eram ameaçados, perseguidos, punidos, só por pretenderem concretizar as propostas do… “relatório”?

Num encontro realizado em São Paulo, escassos dias antes de ser nomeado ministro da educação, Renato Janine dirigiu-me a seguinte pergunta:

“Professor, os projetos inovadores surgem sempre na periferia do sistema, a partir da escola?”

Respondi que deveriam surgir de um “um novo contrato social para a educação”, tal como rezava o relatório, de uma espécie de pacto entre os ministérios e as escolas. O poder público deveria garantir estabilidade às equipes de projeto e conferir às escolas com projetos inovadores um grau de autonomia, que lhes permitisse, efetivamente, inovar. Nada disso se fez. E, quando projetos considerados pelo ministério como inovadores tiveram visibilidade social, o que aconteceu foi a sua cristalização, recuo, ou mesmo a sua destruição.

Os autores do estudo, certamente, nunca tomaram conhecimento do fato. Por serem (presumo) do mundo da especulação teórica e estarem longe do chão dessas escolas, elas não teriam sido consultadas. Ignorando a sua existência, replicaram como se tratasse de uma novidade aquilo que, há muito tempo, elas haviam produzido. Mais uma vez, se reinventava a roda da educação. 

O estudo incentivava o pensamento diferente sobre a aprendizagem, convidava a forjar uma nova visão regida por princípios como o reforço da educação como bem público e comum. Propunha que os países membros da UNESCO se comprometessem “a alocar entre 15% e 20% do gasto público à educação, bem como para aumentar o volume, previsibilidade e eficácia da ajuda internacional à educação por meio do cumprimento de uma doação de 7% do PIB para a ajuda oficial ao desenvolvimento”. Mas, doar dinheiro seria condição suficiente, ou desperdício? 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLVII)

Soalheira, 7 de janeiro de 2042

Quando visitou a Ponte, um prestigiado educador português confidenciou-me, deveras emocionado: 

“Durante quase quarenta anos, fui a escolas, para estudar o modo como os alunos aprendem. Foi-me permitido observar poucas turmas e só aquelas que eram escolhidas para serem mostradas. Na maioria das escolas, somente pude falar com professores, porque não me foi permito chegar junto dos alunos. Na Ponte, são os alunos que mostram a escola a quem a visita. Aqui, pode-se falar com qualquer aluno.”

A Ponte também era uma escola “diferente”, porque mantinha – pelo menos, até 2012 – as suas portas abertas para todos quantos quisessem visitá-la, estudá-la (ou até mesmo devassá-la…).

Quantas escolas abriam as suas portas, a qualquer hora de qualquer dia, para acolher estranhos? Mesmo em tempos de crise, a Escola da Ponte jamais se fechou na sua concha. Aliás, era útil para quem a visita que compreendesse que não havia escolas perfeitas. E que aquela escola era feita de beleza e miséria humana, como qualquer outra escola. 

A Ponte nada inventou. Em Educação, tudo estava (teoricamente) inventado. Para melhorar as práticas da Ponte, andei por muitos países, visitando escolas, cujas práticas nos ajudaram a trabalhar com alunos “diferentes”. Em 1995, fui coautor de uma obra fundamental: Pathways to Inclusion. Publicada em vários países, à semelhança de muitas outras obras da minha autoria, jamais foi publicada em… Portugal.

No meu país de origem, teimosamente (poderia dizer: criminosamente), se continuou a colocar remendos no velho modelo educacional. E a dita “educação especial” era um dos modos de desculpabilização do insucesso de milhares de crianças. 

Não se reconhecia que, onde houvesse turmas de alunos enfileirados em salas-celas, não haveria inclusão. Onde havia aulas assentes na crença de ser possível ensinar a todos como se de um só se tratasse, não havia inclusão. Enquanto o professor estivesse sozinho na sala de aula, não haveria inclusão. 

Eu insistia na necessidade da metamorfose do educador, que deveria sair de si (necessidade de se conhecer); sair da sala de aula (necessidade de reconhecer o outro); sair do prédio da escola (necessidade de compreender o mundo). O ethos organizacional de uma escola dependia da sua inserção social, de relações de proximidade do professor com outros atores sociais.

Também era requisito de inclusão o reconhecimento da imprevisibilidade de que se revestia o ato educativo. Enquanto ato de relação, ele era único, irrepetível, impossível de prever (de planejar) e de um-para-um (questionando abstrações como “turma” ou “grupo homogéneo”). As escolas que reconhecessem tais requisitos estariam a caminho da inclusão.

Na solidão do professor em sala de aula não havia inclusão. Nem do aluno, metade do dia enfileirado, vigiado, impedido de dialogar com o colega do lado; a outra metade, frente a um televisor, a uma tela de computador… sozinho. A inclusão dependia da solidariedade exercida em equipes educativas. Um projeto de inclusão era ato coletivo e só teria sentido no quadro de um projeto local de desenvolvimento, consubstanciado numa lógica comunitária, algo que pressupunha uma profunda transformação cultural.

Sem jamais perder motivação, ao longo de décadas, fui falando de inclusão e a escrevendo sob a forma de “metáforas”. Cria, piamente, que cada leitor, reinterpretando essas linhas, saberia ler nas entrelinhas. Engano de alma ledo e cego! Mas, mesmo após tomar consciência da inutilidade da escrita “inclusiva”, não desisti de escrever. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLVI)

Colos, 6 de janeiro de 2042

O ano de 2021 findara, sem que o vírus se fosse, ou uma nova educação chegasse. Contudo, algo se anunciava para 2022. Seria o ano da celebração do centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Comemorávamos os noventa anos da Maria Nilde dos Ginásios Vocacionais e do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Também, se comemoraria os duzentos anos da Proclamação da Independência, ainda que a dita e a democracia ainda demorassem a chegar.

Ficava para trás um tempo de congressos feitos de saliva e power point. Desde há meio século, entre o uso do retroprojetor ou do computador, eu assistira a monótonas ou espetaculares palestras, nas quais os palestrantes citavam teóricos, recitavam lenga-lengas do discurso das ciências da educação e receitavam mezinhas pedagógicas. 

Entre o espanto e a indignação, via-os lendo teoria requentada, como se os ouvintes fossem analfabetos e não soubessem ler frases projetadas numa tela. Escandalizado, assistia ao degradante espetáculo da apresentação de “planos de aula para… creche”. Essa perniciosa gente se enquistara nos gabinetes de universidades e ministérios. E, olimpicamente, determinavam o sem rumo de um sistema de ensinagem.

No Dia de Reis desse distante janeiro, este vosso avô partia para o norte, para a região minhota, onde projetos marginais brotavam, anunciando renovação. Em Vieira do Minho, em Alvarães, em Vila do Conde e outros lugares, retomava contato com gente que não desistia de melhorar a vida de outras vidas. 

Para trás ficava o gérmen de uma comunidade. Embora houvesse quem depreciasse o projeto e até difamasse aqueles que lhe dariam forma, Colos e o Vale de Santiago converter-se-iam numa incontornável referência de boa qualidade educacional. 

No decurso desse ano redentor, apesar das perdas causadas pelo uso indevido do digital, havia quem reagisse e agisse.  Quando se encerravam as celebrações natalinas e a árvore de Natal era desmontada, o significado da migração de três reis magos era recuperado: o de Epifania. 

Mateus relata a visita de “três” reis magos a um estábulo. Poderia ser um só, ou muitos mais. Mas, como foram três os presentes, se infere que cada um levou uma oferta. E Curcio nos dissera que os presentes foram: ouro, incenso e mirra. 

No Novo Testamento não existe a palavra “reis” para se referir aos visitantes, mas existia uma tradição medieval de usar a expressão “reis” para se referir a magos. Seja como for, magos, ou reis, certo é que veneraram um recém-nascido. Não era um qualquer recém-nascido, era alguém que chegava para mudar, não só o Império Romano (mais tarde, via Constantino), mas para “libertar das trevas o mundo”.

A Folia de Reis tinha início a 24 de dezembro e terminava no 6 de janeiro, exatamente, no dia em que vos envio esta cartinha. No século passado, entre essas datas, eu ia com amigos e alunos da Ponte, de porta em porta, tocando e cantando reisadas. Quando prefeito, organizei o primeiro sarau de cantares de reis, que viria a tornar-se uma tradição cultural, nos anos seguintes. Já no Brasil e, sobretudo, no Nordeste, assisti e participei em “reisados”. Músicos, cantores e dançarinos invocavam “a manifestação de Jesus como Messias, Salvador do mundo”. 

Era esse o sentido da palavra “epifania”: “manifestação”. Filosoficamente, significava “sensação profunda de realização”, a essência das coisas, a sensação de considerar algo como solucionado, esclarecido. Também podia ser considerado como “pensamento iluminado”, que surgia em momentos de impasse.

Em Colos, se agia e curava frustrações, se rompia o impasse.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLV)

Água Branca, 5 de janeiro de 2042

É durável somente o que faz sentido que se renove ou transforme em cada um dos nossos transitórios dias. Do mesmo modo, nenhum modelo educacional é perene. Por essa razão, nos idos de vinte, eu dava por mim formulando as mesmas perguntas de há trinta, ou quarenta anos. Entre 2022 e 2024, quando algum burocrata usava a expressão “ano letivo”. Eu pedia licença e lhe perguntava:

“Por que razão o ano letivo tem o seu início em setembro? Por que não em janeiro, ou em fevereiro, como no Brasil? 

O que era um “ano letivo”? Se esse termo tinha origem no latim “lectione” (“dar lição”, “leccionar”) e se, há muito tempo, se percebera que o menos necessário nas escolas era “leccionar”, que significado teria um “ano letivo”? Aprender (no prédio da escola ou longe dele) não seria um processo contínuo, desejo e ato sem fronteiras seculares? Por que haveria ainda quem continuasse a desperdiçar o seu precioso tempo, transmitindo aos alunos o que estava escrito no livro do “primeiro ano”, quando o sistema estava organizado em ciclos? 

Cada aluno poderia ler os livros, sem intermediário, num tempo próprio, que, como sabemos, diferia dos tempos próprios de todos os outros. Seria esse desperdiçado tempo o mesmo tempo idolatrado, em cada início de “ano civil”, e cronicamente reconhecido insuficiente para dar todo o programa, no final de cada “ano letivo”? Talvez porque um “ano letivo” não tivesse qualquer sentido, os professores assinalavam o seu início, aprovando projetos, que jamais seriam postos em prática. 

Por que havia segmentação em anos, ciclos, trimestres, semestres…?

O silêncio era a resposta para todas as interpelações.

Na década e setenta, eu participara na experiência pedagógica do “regime de fases”, que antecedeu a instituição do “ano letivo”. Tínhamos concluído que, se não fazia sentido a organização em ano de escolaridade, também não havia fundamento para a instituição do ciclo de escolaridade. Um doutor ainda adiantou argumentos pseudo-psicogenéticos, mas desistiu, quando se sentiu ridículo. Era de lamentar que, não havendo qualquer fundamento para tais segmentações, se continuasse a mantê-las, passadas dezenas de anos.

Na década de setenta, também participei na elaboração dos “novos programas” para o ensino básico. O exercício consistia em partir dos programas “de capa cor de laranja”, para compor o programa de “capa verde” (era assim que os programas eram conhecidos, pela cor da capa. Houve consenso na decisão de não repartir o programa em anos. Propunha-se o ciclo único. Porém, os programas viriam a ser aprovados divididos em anos. 

Nunca me explicaram o porquê da decisão. Aventei a hipótese de os editores e livreiros quererem vender livros todos os anos e não de quatro em quatro. Essa seria uma razão de peso. A decisão carecia de fundamentação científica. O vil metal falava mais alto.

De uma formadora digna de crédito recebi esta mensagem:

“Quando trabalhava na formação inicial de professores, recebia depoimentos como este: No estágio, somos obrigadas a seguir os planos à risca. A maior parte dos alunos não conseguia acompanhar. Mas, se nós demorávamos mais um bocado com um ou outro aluno, a professora dizia logo: – Minha senhora, já está atrasada cinco minutos. Olhe para o plano! Já deveria ir no exercício de aplicação.”

Tempo-padrão, uniforme, escorava-se numa lógica de sequência e de controle, era incompatível com uma ideia de individualização da aprendizagem. A seriação fora historicamente construída e cristalizada como norma difícil de modificar. Quem a questionaria?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLIV)

Vale de Santiago, 4 de janeiro de 2042

Exatamente, no quarto dia do janeiro de há vinte anos, no Alentejo profundo, a Cristina reuniu famílias, professores e lideranças locais, num encontro fundador de comunidade. Ao vosso avô foi dado o privilégio de nele participar. Uma comunidade ousava ignorar as vozes de mau agoiro e o autoritarismo de lideranças toxicas

Numa velha pen drive, consegui reaver o documento que essas pessoas enviaram para o Agrupamento de Escolas, em 2021. Até tive a honra de ser citado no preâmbulo da “Proposta”:

“É necessário humanizar a educação, concretizar educação integral. A modernidade está nos tornando individualistas, portanto, precisamos aprender mais sobre convivência e diálogo, sendo oportuno falar de novas construções sociais. A partir do que somos, do que sabemos e do que fazemos, urge afirmar a possibilidade de conceber “comunidades de aprendizagem”. (…) Uma construção social formada por pessoas que habitam o mesmo território, físico ou virtual, que partilham valores, uma mesma visão de sociedade, partilham e produzem conhecimento, operando transformação social, melhorando a qualidade de vida em comum, através de projetos locais de desenvolvimento sustentável.”

Seguia-se um enunciado de intenções, reflexos de uma nova visão de mundo. Aquela boa gente sabia muito bem o que queria para os seus filhos e o que convinha à sua comunidade. Vede:

“Somos um grupo de pais, educadores e professores com o grande desejo de repensar a forma como se processa o ensino-aprendizagem na nossa escola. Pretendemos criar uma abordagem pedagógica que beneficie, de uma forma holística, a educação, os interesses e a felicidade das crianças e de todos os educadores envolvidos neste percurso de construção de uma verdadeira comunidade de aprendizagem.

A escola deve ser um local que promova o desenvolvimento da criança em todos os seus aspetos: físico, emocional, mental e espiritual. Os responsáveis pela educação devem inspirar e instigar a criança para além das suas capacidades, respeitando os seus interesses específicos e individuais, promovendo a sua responsabilidade e autoconhecimento. Educando pelo exemplo, usando formas de comunicação não violenta, defendendo valores como a compaixão, a integridade, a generosidade e o respeito.

As áreas de conhecimento devem organizar-se de forma cooperativa e as aprendizagens devem ser preferencialmente experimentais (aprender fazendo, contrariamente ao que acontece quando se pratica a instrução), em contacto com a natureza, a região, o mundo. A vida e a aprendizagem devem estar intimamente relacionadas.

Os grupos de aprendizagem devem ser flexíveis, organizados com crianças de idades mistas. As crianças são parte importante na tomada de decisões na escola. E os pais e toda a comunidade envolvente são convidados a participar na vida da escola”.

Como vedes, nesse tempo, os leigos tinham maior consciência do necessário do que muitos teóricos profissionais. E melhor interpretação da lei: compreenderam que a lei estava do seu lado, do lado de quem ousava mudar e inovar.

O prometido é devido…  a partir de hoje, vos falarei de inciativas – algo a que se convencionou chamar “projetos” –, que acompanhei, nos idos de vinte. Nesse tempo, muitas dessas iniciativas ainda eram vítimas do ataque de porquenãos (certamente vos recordais desses nocivos personagens, descritos nas cartas para a Alice). Muitas oportunidades de mudança se goraram porque “não era oportuno”, “não havia condições”, “a direção não aprovava”, “alguém não permitia…”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLIII)

Castro da Cola, 3 de janeiro de 2042

Quando, no início do século, escrevi “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos” não o fiz lamentando, mas esperançando. O livro traduzia o pressentimento de que o tempo de uma nova educação acabaria por chegar. O olhar do Marcos suscitou uma reflexão sobre o ritual da “passagem de ano”. Depois, mais do que divagar sobre o tempo e a sua medida, pretendi invocar uma previsão lida algures: o seu autor profetizava que “a idade da Educação” chegaria em meados do século XXI. Não era em vão que alimentávamos a esperança. Só custaria aceitar que a minha geração já por cá não andasse, no tempo em que a educação fosse encarada como assunto sério. 

À escala do cosmos, o tempo de passar não era mais do que um rasto de vaga-lume. Mesmo que pensássemos que, quanto mais efémeras, mais belas eram as vidas, a poesia de um precoce perecer não ocultava uma trágica realidade: até meados deste século, ainda seriam muitas as gerações a quem seria negada a educação que os seres humanos mais jovens mereciam.

Escrever sobre o ofício de educar era sempre um exercício precário. Por mais que o desejo desenhasse possíveis futuros, quando escrevia para a Alice, ou para o Marcos, eu estava a escrever para os filhos dos filhos dos nossos filhos.

O prometido “futuro da educação” demorava a chegar. Estava preso no passado. Nos primeiros dias do distante 2022, as redes sociais continuavam a dar notícia do descalabro:

“(…) Fizeram de nós meros funcionários e das escolas meras repartições públicas de ensino de massas, transformadas em verdadeiras fábricas de papel! Quem matou a escola pública? (…) os problemas disciplinares aumentaram e os professores lidam diariamente com atitudes disfuncionais dentro e fora da sala de aula, quanto às aprendizagens, talvez tenha chegado a hora de chamar as coisas pelos seus nomes. Os miúdos do sétimo ano parecem ter saído diretamente do primeiro ciclo e muito grave é observar alunos do nono ano de escolaridade com atitudes e conhecimentos de sétimo. (…) São graves e preocupantes as lacunas, os problemas, o desconhecimento, a imaturidade, a incompetência nos mais variados domínios (…) a situação parece ser verdadeiramente calamitosa (…) os filhos da pandemia não escrevem, não leem, não compreendem, não interpretam, não pensam. O desinteresse pelos conteúdos curriculares e a alienação pelo conhecimento em geral são perigosamente alarmantes. Retirem-lhes as redes sociais e ficaremos perante seres desprovidos de qualquer interesse. Se antes dos confinamentos, o vício da tecnologia já era preocupante, quase dois anos depois do primeiro encerramento das escolas, estes comportamentos de adição pioraram e nada voltará a ser como antes.”

“Nada voltará a ser como dantes”… Infelizmente, o “dantes” causador desse descalabro manter-se-ia, ainda por vários anos. Na Internet, na televisão, nos jornais, a mídia gostaria de ver “o homem morder o cão”, mas mantinha-se na divulgação do que de pior acontecia no mundo da educação: escândalos, ou devaneios de “especialistas”. Urgia um debata público fundamentado. Mas, o ministério fugia do debate sério. 

Num tempo em que já estava prestes a me retirar, muita gente me pediu ajuda. Eram secretários de educação, diretores de agrupamentos e de escolas, famílias, educadores, comunidades. Eram pessoas atentas à necessidade de mudança e disponíveis para aprender a fazer diferente. Restaria agir no chão da escola, desobedecer a regulamentos, para cumprir a lei. Decidi convidar gente para o fazer. Desse “movimento” vos darei notícia.

 

Por: José Pacheco

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