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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLII)

Ribeira do Seissal, 2 de janeiro de 2042

Nos idos de vinte, eu criara o hábito de, em cada manhã de domingo, enviar uma oferenda virtual aos meus amigos, acompanhada de votos de uma semana feliz. 

Ontem, quando vasculhava o baú das velharias, achei uma cartinha enviada no segundo dia do já distante janeiro de 2022. Rezava assim:

Apesar da tua tenra idade, querido neto – terias, talvez uns três anitos –, já havia quem te dirigisse a pergunta sacramental: 

“O que queres ser, meu menino, quando fores grande?” 

Essa pergunta, quando dirigida a uma criança, soava como xingamento. Criança não iria ser; ela era criança! 

Certamente, não te recordarás, mas, como virias a ser autor de ti, não respondeste. Pensarias: O que é que eu quero que seja o que eu quero ser? 

Não foi por acaso que assim agiste. O Rubem dizia que quem deixava morrer a criança grande, que tinha em si, não virava adulto – adulterava-se. 

Os seres humanos, que são crianças crescidas, renascem a todo o momento. Cada manhã é mais um pretexto para recomeçar. Ritualizar o crepúsculo de cada dia, ou o primeiro segundo de um novo ano, tanto faz. Uma criança lendo um livro, ou uma criança mais crescida escutando uma suíte de Bach, tanto faz. São gestos de todos os dias, que restituem aos dias, que despontam ou cessam, o suave mistério da vida sem tempo calculado. 

Talvez se vá por aí, até ao alcançar do dom da imortalidade, que os alquimistas, em vão, perseguiram, e que os poderosos nunca lograram comprar. É simples penetrar a harmonia de um universo sem princípio nem fim. Basta reconhecer essa verdade indelével no sereno respirar de uma criança. 

Quando eu ia a alguma escola, conversava com os alunos. Perguntava-lhes o que queriam fazer, saber, o que queriam fazer, o que queriam ser. Numa faculdade, idêntica pergunta fiz aos meus alunos: 

“Pedro, o que queres ser?”

“Você sabe. Quero ser professor.”

“Sim, claro! Por isso estás aqui. Mas, que professor queres ser? Que pessoa queres ser?”

O Pedro respondeu:

“Quero ser digno de mim. Não atraiçoar ideais. Não vender a alma a troco de benesses. Não ter vergonha de ser coerente, nem me arrepender de ser honesto para mim e para os outros.”

Hoje, o Pedro está perto da aposentadoria, mas ainda é professor universitário, um professor que não se queda pela especulação teórica, que sobe ao chão da escola, que mergulha inteiro nos afazeres dos educadores, partilhando dificuldades, buscando soluções.

Na universidade dos idos de vinte, havia poucos Pedros. O que não faltava era freiriano não-praticante, escolanovista não-praticante, socioconstrutivista não-praticante. Foi-me dado o privilégio de conviver com excepções. Em 2022, convidei-os para acompanhar movimentos de renovação, que surgiam por toda a parte. 

O melhor presente desse Natal foi um e-mail recebido de um amigo, que já não via, há muito tempo. Comentava uma das minhas intervenções públicas e assim concluía a sua mensagem:

“Caro amigo, que presente o seu texto! Eu havia esquecido o quanto seus escritos, sinceros e lúcidos, me acordam e lembram o que é educação. 

A universidade quase apagou essa lembrança em mim. Mas, neste ano, finalmente, recuperei a minha liberdade, com a saída da universidade. Aos poucos, vou recuperando a saúde da minha alma, longe de tanto intelectualismo estéril, sem finalidade e sem luz.

Gratidão, meu amigo! Você nem imagina o quanto!”

Não era arrependimento. Era prova de que eu estava certo, quando não deixava de acreditar que os professores (até mesmo os teoricistas não-praticantes e os áulicos) se poderiam transcender e transformar em seres humanos sublimes.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLI)

Pego do Seixo, no primeiro de janeiro de 2042

Os últimos dias do distante 2021 e os primeiros de 2022 foram passados em andanças pelo Alentejo profundo. Entre Colos e o Vale de Santiago, convivi com professores éticos, famílias e comunidades. Celebrei a passagem de ano na companhia da Cristina, do Pedro, da Leonor, da Cléo. E a celebração dessa noite trouxe-me à memória um “réveillon familiar” de início de século.

Querido neto, já completaras o teu primeiro ano de vida e eu ainda não conseguira encontrar o fio da meada, para escrever aquele que seria o teu livro. Estavas sentado no colo do teu pai, do outro lado da mesa de jantar. Fiquei a observar-te. discretamente, para não perturbar a visão de tudo o que para ti era novo. 

A casa estava repleta de boa gente, aromas, rumores e alvoroços. Com o início da contagem decrescente para a meia-noite, subitamente, a agitação e o ruído deram lugar à quietude e ao silêncio. E tu te assustaste. 

Segui a direção do teu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um tio que engolia uvas passas com um semblante demasiado concentrado para quem apenas estava ingerindo alimento. Não suspeitavas, mas estavas sendo sujeito a aculturação, ao contemplar um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros, que desejou não cometer, no último dos dias do ano anterior.

Tudo vias com o brilho dos inícios no teu olhar. Sem que o soubesses, deste-me pretexto para um livrinho, que virou peça de teatro, pelas mãos da minha amiga Janaína. Mais do que um livrinho, se constituiu em releitura de aparentes realidades. 

Vinte anos mais tarde, na visita à casa de uma criança grande chamada Darcy, a sua invocação me restituiu o saber ver com o brilho dos inícios no olhar. Amanhã, vos falarei da gesta de uma nova educação, reiniciada nos idos de vinte, sob a égide dessa criança grande, que dizia ter fracassado em tudo o que tentara fazer na vida. Não fracassou! O Ano Novo de vinte e dois trouxe consigo uma Educação Nova.

No primeiro dia desse ano, vi-me regressado aos anos sessenta, ao tempo em que decidi ser professor, e quando comecei a corresponder-me com uma jovem brasileira. Trocamos centenas de cartas em papel fininho de correio aéreo, uma por semana, ao longo de alguns anos. Por insondáveis caminhos, dava os primeiros passos da minha ida para o Brasil.

A Célia enviava-me postais ilustrados com imagens de Araguari, falava-me de tropicalidades culturais, que me levaram a escutar o Quinteto Violado, a Elba e, depois, Miltons, Caetanos, Chicos… Se, com o Rubem, me liguei ao Brasil da educação, com a minha amiga Célia, me aproximei do Sul pela música. Aliás, a minha amiga viria a ser professora do Conservatório de Música de Belo Horizonte.

Chegado ao início da década de setenta, a polícia política espiava os meus passos, violava a minha correspondência. Sentia preocupação pela sorte da Célia, acaso a polícia política da ditadura brasileira soubesse da nossa relação epistolar. Prudentemente, suspendi o envio das cartas.

Em 2005, recebi convite para uma fala em Araguari. E lá fui. Chegando à cidade, consegui o contato da Célia. Liguei para o celular da minha amiga. Atendeu:

“Oi!”

“Maria Célia?”

“José Pacheco?”  

Por que vos conto isto, neste primeiro de janeiro de 2042? Porque, nesse dia, retomamos uma conversa de há trinta e cinco anos. 

Há quem diga que não é por acaso que há acasos. Em 1970, sem que o soubesse, eu já estava no Brasil. Tratar-se-ia de uma junguiana sincronicidade? Ou haverá uma esotérica explicação das “coincidências”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCL)

Aljezur, 31 de dezembro de 2041

Os últimos dias do distante 2021 foram dramáticos para muitos brasileiros. O Brasil estava com fome. A miséria em que o desgoverno lançara parte da população, justificava o pungente apelo de um aluno de uma escola de Paranavaí:
“Professora me ajuda estou sem nada para comer em casa. Por favor eu imploro pra senhora”. 

O rogo de uma criança de 14 anos retratava a realidade de milhares de crianças. E o que tinha a Educação a ver com isso? Tudo! Mais do que nunca, precisávamos refletir sobre o real significado da escola, porque, num mundo desigual, a escola era um berço de desigualdades. 

Na primeira carta da “Pedagogia da Indignação” Paulo Freire escrevera:

“Como posso “convidar” meus filhos e filhas a respeitar meu testemunho religioso se, dizendo-me cristão e seguindo os rituais da igreja, discrimino os negros, pago mal à cozinheira e atrato com distância? Como posso conciliar a minha fala em favor da democracia com os procedimentos anteriormente referidos?” 

 Sobrevivendo na extrema pobreza, muitas famílias encontravam na escola uma referência, nela buscavam amparo. E, por iniciativa da professora desse menino, uma rede de apoio foi criada. A comunidade foi mobilizada para arrecadar alimento. 

A Cecília já o fizera, em Petrópolis. Muitos outros amigos e amigas exerciam a solidariedade urgente, um pouco por todo o Brasil. Porém, a fome e sede de justiça, a esperança de uma vida vivida não poderia esperar mais. O final de dezembro marcou o fim de um tempo. No antigo Facebook, o meu amigo André traduzia esse sentimento:

“Um grande amigo meu me disse, em 2016, antes de eu aceitar trabalhar como servidor público: “André, não faça isso! O trabalho nas escolas públicas no município do Rio de Janeiro é uma máquina de moer gente!”

Guardei esse alerta e assumi a decisão de ingressar no serviço público, no campo da educação. 

Ele tem razão. É realmente uma máquina de moer gente. É enorme o número de pessoas que eu conheci nesses quase cinco anos que tomam regularmente remédio para pressão ou para dormir, que fazem acompanhamento terapêutico, que usam remédios para controlar a ansiedade! 

Conheci um professor que teve um AVC semanas antes de se aposentar.

Conheci professores exaustos, moribundos, desesperançosos, melancólicos, assustados, desconfiados, com seu emocional em frangalhos. Em salas de professores, já vi e ouvi cada coisa! 

Já fui ridicularizado pelo que penso sobre educação, já fui humilhado perante os colegas em reuniões pedagógicas, já fui menosprezado por ser jovem e novo como servidor. 

Não é incomum ouvir da boca de um professor que, para estar ali, é preciso ser louco. E, quando você não se comporta como o grupo, você vira alvo de desconfiança.

Falta muito amor nas escolas. Falta acolhimento. Se as relações humanas no ambiente escolar fossem pautadas no respeito, no afeto, na tolerância, na diversidade, na coerência, creio que as escolas seriam muito diferentes.

Que venha 2022! Pela educação pública de qualidade, pelo amor entre as pessoas, pela sinceridade nas relações, pelo afeto e respeito, pelo aprendizado dos alunos, pelo futuro do nosso país, por uma escola do século XXI, eu sirvo.

Que não me faltem forças e que eu nunca me acomode, nunca endureça meu coração. Costumo dizer que, a cada pancada, eu sinto dor e preciso sentir.”

O André finalizava a sua missiva dizendo preferir sentir tristeza passageira a se tornar insensível. Essa declaração de Amor à Educação e o que eu já conhecia desse extraordinário educador me levou a convidá-lo para a gesta de Nova Educação, encetada em 2022.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIX)

Olhos de Água, 30 de dezembro de 2041

Pelos idos de oitenta, o amigo Miguel assim se expressava:

“A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afeto.

Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos, há diferenças que devemos respeitar nos professores e em todos os que trabalham na escola. 

Diz Steiner que a relação professor-aluno é “uma alegoria do amor desinteressado” (…) A sentirmo-nos como somos, ou a encaixarmos numa engrenagem de rotinas despersonalizadoras? A obedecer de forma aborrecida àquele que prescreve, nas palavras de Helmutt Becker, a “escola administrada”, ou a recriar o conhecimento e a convivência?”

A escola tem uma importante função social. O desenvolvimento de competências sociais deveria andar a par do compromisso com a construção de relações solidárias. Consciente dessa premência, a Claudia tentava dar forma a uma comunidade, naquele que foi o projeto dos projetos: o Âncora. 

“Tivemos uma reunião muito boa, pois conseguimos dar um passo importante quanto a documentação da Associação. Tivemos vinte participantes bem unidos e dispostos a fazer acontecer. Um ex-aluno se propôs a ficar na portaria como voluntário. Palmas e agradecimentos com muita alegria!”
Aqueles que visitavam a Escola do Projeto Âncora inferiam que, ali, se gestava comunidade:

“Foi muito prazeroso estar esses dias no projeto Âncora. Foi maravilhoso ver, na prática, como funciona esse modelo de educação, modelo que por muitas vezes causou dúvidas, desconfiança e até pré-julgamentos. Nesta semana, vivenciei um sistema de educação formidável. Aprendi muito com os educadores. Quando digo educadores digo todos os tutores, o pessoal da cozinha, da limpeza, da manutenção, alunos e famílias pois todos são educadores. E, quando você vê uma criança ensinando outra, isso é sinal de comunidade”.

Conseguiram destruir um projeto a começar. Mas não se extinguiu o sentido de comunidade desse projeto. A Escola Aberta de São Paulo era a sua tradução plena. E 2022 viria ser o ano do ressurgir do Âncora, consolidado em dezenas de lugares. Nesse ano, eu tentara reunir uma equipe, num refazer comunitário, na casa do Jardim do Éden. Não consegui. Despedi-me desse lugar, voltei à andarilhagem, fui ajudar a fazer comunidade em outros lugares. 

Não havia fronteiras para as aves migradoras. As cegonhas percorriam milhares de quilómetros, para cumprir o seu destino de perpetuar a espécie. E “a gaivota, que pousou na pedra da idade da pedra, pensava nos bandos que peregrinavam na direção da Primavera”. Fui mundo afora, cumprir a sina de andarilho, calcorreando trilhas abertas por um Pássaro Encantado, que lera a “Poética do devaneio” e reencontrara poetas, que punham palavras nos sentimentos. 

A memória do Pássaro Encantado me fez atravessar o mar, mais uma vez. Conduziu-me a lugares onde o mundo retomava a forma prometida de um “novo mundo”. Foi lá que tudo recomeçou. No eco dos seus passos, encontrei um sabiá de canto suave, que corporizava o direito de aprender… brincando. Na sua companhia me refiz. Entre lusas montanhas e brasileiros mares, uma gaivota das estórias da Alice alçou novos voos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVIII)

Fuzeta, 29 de dezembro de 2041

Os últimos dias do distante 2021 foram pródigos em boas notícias. E chegaram de onde eu não suspeitaria que viessem. Muitos empresários despertavam para a necessidade de substituir um marketing demagógico por uma boa qualidade da educação, e de juntar a intenção do lucro das empresas a uma efetiva melhoria da qualidade das aprendizagens. 

Eu, que já levava meio século de professor de escola pública, abominando a exploração que se fazia da ingenuidade pedagógica de famílias e professores, me rendi perante genuínas declarações de princípios. Reconhecia em alguns empresários senso crítico e abertura à mudança. Decidi escutá-los, com a atenção que mereciam.

O amigo Fernando – eu chamava amigo a quem era amigo das crianças – isto escreveu num site da antiga Internet:

“A pandemia trouxe à tona uma série de questões importantes dos estudantes da era digital em que vivemos. A primeira diz respeito ao enorme volume de conteúdos e aulas disponíveis on-line. 

Na minha época, as aulas eram longas e áridas, os alunos tinham que ficar quietos por cinquenta minutos, copiando o conteúdo da lousa ou anotando as falas da professora. E precisávamos aguentar isso por completa falta de opção. Se eu não aprendesse o conteúdo na sala de aula, não o aprenderia mais em lugar algum.

O mais incrível é que isso acontece ainda hoje: nossos filhos, algumas gerações depois, em plena Revolução Digital, ainda passam pela mesma experiência pedagógica dolorida todos os dias. No entanto, hoje, eles têm outras opções de aprendizagem. Basta entrar no YouTube e digitar “aula de qualquer coisa” e você encontrará instantaneamente inúmeras aulas, em diferentes formatos, tais como desenhos animados, músicas, aulas expositivas gravadas por professores e videodocumentários internacionais. São conteúdos muito engajadores, normalmente de curta duração, feitos, muitas vezes, por educadores e que retêm a nossa atenção, imediatamente. 

Para quê gastar tempo e dinheiro na escola, se você tem tudo isso em casa, de graça? A sala de aula tem de oferecer mais do que isso.

A segunda diferença tem que ver com a pandemia e o lockdown (…) cresceu de tal forma e por tanto tempo a profundidade do vínculo entre os jovens e os smartphones, iPads e computadores, que o padrão de interação deles com o mundo externo tornou-se essencialmente ‘figital’ (físico + digital).

Na volta às aulas presenciais, isso se refletirá no engajamento dos alunos dentro da sala de aula. Uma experiência pedagógica que seja exclusivamente analógica e em que os professores deem palestras áridas de conteúdo e não estimulem os alunos a criar, se comunicar, interagir ou criticar, será muito prejudicial ao aprendizado. Nessas circunstâncias, o corpo dos alunos estará presente, mas o cérebro, o coração e a alma estarão em outro lugar. 

O papel da escola na volta às aulas presenciais será esse: prover uma experiência de aprendizagem que vá além da repetição do conteúdo gratuito que está no YouTube e usar a tecnologia a serviço do engajamento e do aprendizado.”
O Fernando ainda falava de “aula”. Mas, o seu bom senso, o excelente trabalho realizado pela Letícia e alguns “papos” com o vosso avô o ajudou a ir além. Dando, aula, claro! 

Queridos netos, não vos esqueçais de que, quando o discípulo está pronto, o mestre aparece. Não jogávamos fora o velho instrucionismo com a água do banho… A “aula direta”, criada pela Ponte, na década de setenta (e reinventada pelo “ensino híbrido”, meio século depois) continuaria a existir. A mudança não aconteceria no vazio – assentaria na tradição.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVII)

Vilamoura, 28 de dezembro de 2041

No final do dezembro de há vinte anos, andava pelo Algarve e este e-mail recebi:

“Sou professora, mas já não sei como dar aulas, já não querem que seja eu. Adorava os alunos e sentia o retorno. Criava uma atmosfera de boa disposição, era humana, compreensiva, mas já não sei como ser. Sinto-me quase robô. O Algarve prima pelo individualismo e com a pandemia ainda piorou mais.

A minha escola é pequena, com uma direção recente e dinâmica. Se puder, ajude-me de alguma forma.”

Eu tinha fama de casamenteiro, por juntar pessoas, que eu cria serem afins. Dei a conhecer à autora do e-mail o meu amigo André. Já dele vos falei, mas nunca será demais recordar palavras suas:

“Já abracei e me despedi de professores que estavam se aposentando, após longos anos bem servidos em favor da educação pública. Tenho profundo respeito por aqueles que estão há mais tempo que eu nessa jornada, porque não é fácil.

Uma vez eu comentei com uma colega em uma escola que me surpreendia ao perceber que meus colegas professores agiam com egoísmo, não colaborando na arrumação da escola após um evento. Ela me disse: “André, aqui sempre foi assim. Vai se acostumando.”

Me acostumar é assumir a normalidade dos absurdos. É dizer “tudo bem” e cuidar da minha vida. Não consigo ser assim. Não consigo ignorar certas coisas. São muitos os paradigmas dentro de uma escola, criando zonas de conformismo em um espaço que deveria ser de reflexão, de ruptura com o status quo. A escola não é um espaço para o “tudo bem”, mas sim para o “por que não?”

“André, as pessoas não querem problemas” – assim me falou uma professora amiga.

É verdade. Problemas são desafios e desafios exigem que a gente se mexa, pense e tome atitude. É muito mais confortável repetir, ano após ano, as mesmas aulas prontas, as mesmas provas, os mesmos trabalhos, os mesmos projetos.

Observo as pessoas que trabalham comigo e percebo que algumas criam uma espécie de personagem fictício para estarem dentro da escola. Através desse personagem, elas falam e agem como os outros esperam que elas façam, pois isso significa ser bem aceito pelo grupo. Pensar diferente não é muito bem-visto. Por mais absurdo que pareça, ideias diferentes não são bem-vindas para bons debates racionais, dentro do ambiente escolar.

Infelizmente, meus colegas falam de Paulo Freire e de suas ideias de amor, mas a atitude fraterna e respeitosa de Paulo Freire mora apenas nas palavras e murais. Já cheguei a usar um pensamento de Paulo Freire (sem citá-lo) como argumento em um debate com outros professores e eles, achando que era um pensamento meu, me chamarem de tolo para, depois, exaltarem Paulo Freire como patrono da educação, nas redes sociais.

Continuo com muita esperança de que em algum lugar por aí exista um grupo de pessoas que ame educação e que adore se desafiar, que adore fazer diferente, que adore ousar novos caminhos, que não tenham medo de arriscar.”

O André encontrou pessoas que amavam a educação. Com elas, concebeu novos modos de converter crianças e jovens em pessoas sábias e felizes.

Em fins de tardes de dias incertos, no bater de teclas de computador, citava arautos de prodígios e reencontrava o significado de “país irmão”. Ao ritmo de um digitar, que diferia do ritmo de pensar, eu recolhia os ecos de um S.O.S. solidário, que consolidavam pontes de fraternidade.

“Contornando a imensa curva norte-sul, embalado no suave flutuar de aragens atlânticas, acompanhando os voos do Sabiá, eu celebrava cantos que ninguém conseguiria sufocar”.

E não importava que a aquarela da nossa ténue vida se fosse…descolorindo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVI)

Sagres, 27 de dezembro de 2041

Ainda no rescaldo das natalinas festas e rebuscando velhos relicários, encontrei um internético apelo, que junto a esta cartinha:

“Preciso de alguma ideia para trabalhar com aula a distância sobre desfralde para Maternal1”.

“Por amor de Deus!” – exclamou a Cecília. E eu vos poupo ao que “exclamei”, face a essa e outra “relíquia”, que encontrei na mesma caixa de velharias:

“Planos de aula 0 a 6 anos com materiais e atividades de apoio, todos com os códigos da BNCC.

Bônus: alfabeto completo e números para pôr na sala de aula”.

“Planos de aula”! Isso mesmo! A escolarização começava entre zero e seis anos. O amigo Tião dizia que a escola era como “o serviço militar obrigatório aos seis anos”. Neste caso, a militarização começava, tão logo o feto lograsse sair do ventre materno.

Vos garanto que estou a dizer a verdade. Se quiserdes, vos mostrarei as relíquias. Essa e outras demonstrações de pedagógicas obscenidades eram provas de que a cultura pessoal e profissional dos educadores andava pelas ruas da amargura. Seria necessário intervir, drástica e urgentemente no campo da formação, para bem cuidar da pessoa do professor e socorrer aqueles que se confrontavam com situações como a que passo a transcrever:

“Pega esse e esse, e passa para ela!

Eu era a professora nova. Eu ia com a ideia de ser uma boa professora. Davam-me uma turma de 30 alunos.

As mães diziam que eu passava pouco dever de casa. E eu deixava de lado algumas crianças, porque sentia que algumas crianças não davam trabalho. Mas também não aprendiam. Eu tentava ensinar trinta, mas…

Nós fazíamos reagrupamentos, mas não resultava. Dividíamos por níveis, que era uma metodologia que a secretaria adotou. Mas os maus alunos não aprendiam melhor. Estavam desmotivados.

Mas… como é que se muda? Nós sabemos que temos de mudar, mas não sabemos como. A gente está condicionada. Está tudo engessado. Eu não sei por que é que o menino tem de estar sempre sentado.

O grupo da escola mudou. Foram embora as melhores professoras. Temos professoras temporárias. Há professores que não têm condições e não conseguem ensinar todos os alunos.

E por que é que doutor, ou mestre, ganha mais do que uma professorinha? Salário ligado a um título, ou salário digno?”

Boa pergunta! A “professorinha punha o dedo na ferida”. A mudança educacional começaria numa profunda e gradual reelaboração da cultura pessoal e profissional. Passaria pela oportunidade de rever valores e princípios, e de assentar o labor do professor na lei e na ciência. Também passaria pela elevação do seu estatuto social – salário igual para trabalho igual.

Por que razão se aumentava o salário em função do tempo de serviço, se não estava provado que o acúmulo de anos de serviço significasse melhoria do desempenho? No degradante processo de “funcionarização”, o professor era recompensado pela lealdade do servidor público ao estado: quanto mais tempo me serves, mais dinheiro te dou.

Num país dito civilizado, seria um escândalo o fato de o piso salarial de um professor ser sete vezes inferior ao de um médico. Não existiria justificação para o fato de um gestor educacional receber um salário superior ao de um professor. Nem se aceitaria que um professor do “ensino superior” recebesse uma boa aposentadoria, quando um professor do “inferior” auferia uma aposentação modesta.

Nesse tempo, ninguém soube dar resposta à “professorinha”. Se a obtenção de um título acadêmico não aumentava a qualidade da performance, por que razão os titulares de mestrado, ou doutoramento, “ganhavam mais do que uma professorinha”?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLV)

Moncarapacho, 26 de dezembro de 2041

Se reparardes na foto, que em cima esta cartinha, vereis que aquela criança “está a catar estrelas de felicidade, que caíram durante a celebração na escola, nesta última sexta-feira”. Era a minha amiga Regina quem legendava a foto, celebrando a justa premiação, que a Maré recebera.

Conheci a Maré da Granja Viana, decorria a primeira década deste século, quando ainda dava pelo nome de Kid’s Home. O jardim de infância de então era mesmo um lar de crianças. Ali, se respirava sensibilidade, se aprendia amorosidade.

Com a ampliação do projeto para o Fundamental, o nome “Maré” se ajustou a princípios partilhados pela comunidade. Dizia a minha amiga Regina que a palavra “Maré” representava “o fluir das águas através das forças da natureza. Metaforicamente, significava a força que impele as ações humanas, com avanços e recuos, fluxos e refluxos”.

Era esse o espírito do projeto, de qualquer projeto humano e, se a humana e freiriana incompletude, questionava práticas presas ao passado e recusava fundamentalismos, ali, se reconhecia que “o ser humano deve manter-se permanentemente “em obras”.

A Maré era um dos projetos que, no início dos anos vinte, apontava o rumo da mudança e inovação. Os espaços de aprendizagem dialogavam diretamente com a criança, com o seu corpo, instigavam a curiosidade. No saboroso livro “Picolé e Sorvete para Todos” se acrescentava: “a livre exploração acontece em espaços onde a criança consiga  interagir, transformar, se comunicar pelo corpo, pela mente e pela alma”.

O projeto já era reconhecido como “referência em inovação e criatividade na Educação”. Era justo esse reconhecimento, conferido pelo Grupo de Trabalho criado pelo ministro Renato Janine, em 2014. Nos idos de vinte, a Maré era um dos raros projetos sobreviventes dos 178 a que foi conferida visibilidade social. A sobrevivência e as premiações, como a que mereceu, no dezembro de 2021, talvez se devessem ao fato de a Maré já ser a gênese de uma comunidade:

“A Maré compreende que a ação educativa só se realiza na soma e eco de esforços de diversos atores.  Somos pais, crianças, professores, cozinheiros, porteiros, tutores, marceneiros, arquitetos, jardineiros, ambientalistas, músicos e… todo o bairro!”

Aquela era uma escola verdadeiramente “pública”, de iniciativa particular. A todos assegurava o direito à educação, a uma educação integral, humanizada, que a escola dita “pública” desse tempo continuava a negar.

Havia escolas da rede pública que “não tinham vaga para projetinhos de marginal”, porque já tinham “demasiadas classes dos burros” (sic). Mais de dez mil escolas estavam sem abastecimento de água. Em quase quatro mil, não havia energia elétrica. O investimento público na educação infantil caíra 86%.

Ao cabo de meio século de professor de escola pública, eu acompanhava projetos, que, por dentro, resistiam à desagregação do chamado “sistema público de ensino”. Nutria uma profunda admiração por educadores esforçados e esperançosos, que enfrentavam uma administração intelectual e moralmente corrupta. Colaborava com secretarias de educação dirigidas por gente sábia e honesta. E era levado a reconhecer que teria de contar com a iniciativa privada, para operar a mudança da “escola pública”.

Quando não esperava gratas surpresas, genuínas intenções surgiram. Além do amigo André – já aqui vos trouxe o seu depoimento – outros empresários despertavam para a necessidade de trocar o marketing demagógico da maioria das empresas do ramo por um lucro legítimo, assente no bem-estar das crianças.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIV)

Conceição de Tavira, 25 de dezembro de 2041

Há vinte anos, por esta altura, o vosso avô estava no sul de Portugal. Em entrevista, a ministra da saúde informava que esse Natal ainda não seria passado “em perfeita normalidade”. Restava-nos fazer a reunião de família, numa solidão acompanhada. Ou, virtualmente, pois quem ama nunca está sozinho.

No dezembro de há vinte anos, era noticiado que, em muitos hospitais portugueses, a maioria das pessoas internadas por complicações originadas pela COVID eram pessoas que tinham recusado vacinar-se. O estado gastara milhões de euros, para as convencer a não se colocarem em perigo e a não colocarem os seus semelhantes em perigos iguais.

Havia quem propusesse que os não-vacinados fossem impedidos de sair de casa e que pagassem o tratamento hospitalar. Numa sociedade dividida entre direitos e deveres, numa cidadania mitigada, não sabíamos como agir. Entre a desumanidade e a ignorância, prevalecia o medo e o salve-se quem puder. A escola não nos havia preparado para gerir a dramática situação.

Pela primeira vez, não cumpri o preceito natalício de “desejar boas festas”. Mas, senti os familiares e amigos, mesmo os definitivamente ausentes, mais presentes do que nunca. E, mais intensamente do que em anos anteriores.

Não enviar mensagens com os tradicionais votos não significava que estivesse alheio à celebração daquele dia. Festejava-se o nascimento de um Menino-Deus, que ninguém sabia quando nascera. A festividade fora oficializada como Natale Domini, cristianizando festas pagãs romanas do solstício de inverno. Era invocada a peregrinação do Rei Gaspar, em demanda do Rei dos Reis.

No conto “Os três Reis do Oriente”, a Sophia escrevera:

“Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

Por que não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza da Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.”

No Natal de 2021, novos magos anunciavam o Advento de uma nova Educação. A um coro de esclarecidas vozes denunciadoras de pérfidas formas de abandono intelectual se juntava a voz das crianças:

“Parece que a escola existe para nós não aprendermos”.

Assim se manifestava um jovem, chegado ao projeto Âncora há cerca de uma semana. Até os mais jovens despertavam para o processo de obsolescência da instituição, que os “desaprendiam”. As universidades, as escolas, a ensinagem “superior” e a “inferior” reproduziam o “ensino simultâneo”, que Jean de La Salle introduzira no tecido social do século XVII. Arcaicas e insanas práticas se perenizavam, o abandono intelectual permanecia impune. Tardava uma nova construção social, que pusesse um ponto final num pesadelo de séculos.

Discretamente, como convinha a um português aprendiz de Brasil, eu dedicara os últimos anos da minha vida de professor ao Brasil da Educação. Nesse fraterno envolvimento, eu aprendi mais do que ajudei a fazer o Natal da Educação.

Durante décadas, me juntei a milhares de educadores, na causa das crianças. Voluntariamente, me privei de estabilidade emocional e afetiva. Nas casas de amigos ou na solidão de quarto de hotel, não lamentava o tempo gasto, mas o corpo já se queixava. Chegava o tempo do desapego, de confiar a outros tarefas várias e… descansar.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIII)

Luz de Tavira, 24 de dezembro de 2041

Como vos disse na cartinha de ontem, tenho passado os últimos dias garimpando. É atributo dos velhos guardar tudo o que pode, mesmo sem saber se, algum dia, lhe dará serventia. No meu caso, o que me move não é acumular inutilidades. Sei que estou velho, mas alguma lucidez me impele a revelar “manifestos” de extraordinários educadores. De alguns, vivos e ativos; de outros, que perdi na pandemia dos idos de vinte, como o Almir, que faleceu nas antevésperas do Natal – e eu ainda não me tinha refeito da partida do amigo Cortez.

Dou por mim a recordar as idas a Pocinhos do Rio Verde, na companhia do amigo Rubem. Subindo a encosta do sítio, ele me apresentava as árvores, uma a uma. O Rubem plantara árvores em memória de amigos, que haviam “partido antes do combinado” (como dia o Boldrin). O Rubem colocava poesia em tudo o que escrevia e fazia. Prodigamente, erotizava Tanatos, transmutava tristeza em renascimento.

Ontem, encontrei uns papéis escritos pelo Rubem, à mistura com um monte de cd rom. Já ninguém fabrica aparelhos que permitiam reproduzir o seu conteúdo. Só um velhíssimo laptop me revela depoimentos contidos em pen drive. Numa delas, achei uma das crônicas que a minha amiga Tina publicou nos idos de vinte:

“Grandes estudos sobre evasão, apontam um fator em comum: a ausência de interesse pela escola. Desconfio que estes estudos foram feitos por “fazedores de educação”, pois eles não apontavam perspectivas diferentes, como: escolas desinteressantes, metodologias ineficazes, conteúdos sem sentido, padronizações robotizadoras, cobranças irreais etc.

A escola abandonou essas crianças muito antes delas abandonarem a escola. Antes do corpo evadir, o coração e mente já tinham evadido, e ninguém percebeu?

Uma escola que, desde muito cedo, reprime a curiosidade e criatividade das crianças com padronizações absurdas, excludente, competitiva, que desdenha dos diferentes, com volumes enormes de conteúdos fragmentados e desconexos da vida real, com regime autoritário e humilhante, onde os alunos só podem escutar, obedecer e reproduzir, que gera frustração, baixa autoestima e sentimento de inadequação, a evasão acaba sendo uma válvula de escape para alguns.
Encontrei alguns registros de programas para combater a evasão e a maioria atuava com troca – “mande seu filho para a escola e ganhe uma cesta básica”, “R$ 100,00 para estudantes com frequência mínima de 80%”. Eu fico imaginando o corpo contrariado do estudante na escola e o cérebro voando em qualquer outro lugar.

Enquanto a escola for uma fábrica de matar sonhos em linha de montagem, qualquer ação contra evasão será em vão.

É preciso resgatar corações e mentes… os corpos virão juntos.”

Era “barra pesada” a partida dos corpos, levados pela pandemia. Apresentava-se difícil resgatar os corações e as mentes dos sobreviventes. E eu me agarrava à leitura das narrativas de velhos companheiros: do Tuck, do Celso, da Lívia, do André, da Cecília, da Natália, do Luca, da Kátia, da Patrícia, do Pedro, do Helder e de outros, que faziam parte da minha família E, sempre que era chegada  a “festa da família”, à saudade que me assaltava se juntava um sentimento de gratidão, de que era devedor a essa plêiade de excepcionais educadores, que ajudavam a fazer o Natal da Educação.

Nesse dezembro, alguns desses amigos compuseram e me enviaram uma “árvore de Natal” feita de fotos de alguns insignes educadores brasileiros. Ousaram colocar-me na base da árvore. Grato, presumi que quisessem referir-se a mim, não como raíz, mas como um orgânico humus. E agradeci.

Por: José Pacheco

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