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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXIII)

Alta Floresta, 28 de abril de 2040

Querida Alice, passei a tarde de ontem relendo cartinhas para ti enviadas, no tempo em que nasceste. Tudo o que te contei nessas cartas se passou enquanto aprendias a balbuciar as primeiras palavras, na inocência de não te dares conta de teres nascido em tempos sombrios.

Chegado o tempo de aprender a ler, não deparaste com relatos de opróbios, mas com esperançosas palavras. Como aquelas que leio na carta, que mãos trémulas de um velho emocionado segura: São lugares de verdade, são seres verdadeiros aqueles de que te venho narrando feitos e peripécias. Bem sabeis que as coisas se vão entrelaçando e tomando forma, fazendo sentido.

Nas cartinhas, este avô desocultava memórias de tempos futuros, em que o arrojo de um Ícaro já não teria a temer o ardor do Sol. Não me referia ao “sexto anjo, que mergulhou a sua taça no grande rio Eufrates, secando-o e preparando o caminho para os reis de Leste”, mas àquele que, na Bíblia, avisava o mundo de um eminente “Juízo Final”. De personificação em personificação, te falava da preocupação da gaivota, que meditava sobre o destino das aves que seguem o curso do Tigre e do Eufrates, rumo às longes terras do Norte, para aí nidificar. Sabia que o instinto já havia afastado as cegonhas e os pelicanos de África e que, por força da cupidez de alguns homens, as migratórias aves se arriscavam a perecer a meio caminho de uma longa viagem.

Pois bastou um ou dois meses de isolamento social, para que peixes voltassem à Baía da Guanabara… benigno efeito colateral da pandemia. Contudo, era evidente que a humanidade não aprendia a lição. Provável seria que, após a peste, de novo, os peixes migrassem para a nascente e só restassem nas águas da baía lixo acrescentado de restos de máscaras protetoras do COVID-19.

No tempo em que já eras uma jovem psicóloga e cuidavas das mazelas infligidas a seres de tenra idade, eu penetrava no santuário amazônico, passando Boca do Acre, ou cruzando os limites com Mato Grosso e Rondônia, ao encontro de alguém que era intransigente na defesa da Vida. A minha amiga Fernanda tecera um projeto numa comunidade indígena. Esse maravilhoso ser humano sofria por ver a Amazônia devassada e abandonada à sua sorte.

Os indígenas eram guardiães da Mãe-Terra. Foram, por séculos, dizimados pela varíola e pelo COVID-19, que missionários e turistas trouxeram da Europa e da Ásia. E, no tempo da pandemia, nova ameaça despontava – terras indígenas pendentes de homologação poderiam ser vendidas, loteadas, desmembradas, invadidas. Na era da pós-verdade, a ambição dos agentes de uma economia necrófila, impunemente, intimidava e matava. Vivíamos um tempo de ignomínia dissimulada. Havia quem tentasse ocultar a dimensão da tragédia. Permite que relembre um episódio exemplar.

A prefeitura de Manaus mandara abrir uma cova coletiva num cemitério. A vala comum era necessária, para dar conta do grande número de sepultamentos causados pelo COVID-19. Imagens chocantes de dezenas de caixões alinhados numa vala coletiva foram veiculadas pela Internet e pela TV. Em tempo de pós-verdade, assistíamos à pérfida manipulação da opinião pública. Uma reação negacionista cresceu nas redes sociais, afirmando que o colapso funerário da capital do Amazonas era… fake. E houve quem acreditasse nessa versão dos fatos.

Num e-mail recebido nessa semana, um professor manifestava surpresa e mágoa perante tal absurdo. O meu e-mail de resposta encerrava com duas perguntas:

Quem terá produzido esses bonsais humanos? Qual será a sua, a nossa quota parte de responsabilidade?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXII)

Pirenópolis, 27 de abril de 2040

Sou do tempo do Concilio Vaticano II. Li e reli a “Pacem In Terris”, uma encíclica da década de sessenta, que realçou a necessidade de se pugnar pela paz, numa época marcada pela proliferação de armas nucleares e a iminência de um Armagedon. Estávamos em plena “Guerra Fria” e a Igreja refletia sobre a dignidade, os deveres e os direitos humanos, enquanto fundamentos da paz mundial.

Com o visionário Ângelo Roncalli aprendi que a Igreja não é um templo: é “o povo de Deus em marcha”. Se for curial que se estabeleça um rude paralelo com esse princípio, diria que o isolamento social imposto pelo vírus demonstrou que escolas não são prédios. Muito menos, prédios divididos em celas de aula. Quando um vírus forçou o delegar da função da escola na Internet e nos lares, mostrou-nos que escolas são pessoas, “fazendo o caminho ao andar”. Escolas são pessoas em permanente processo de autoconstrução, como diria o Maturana. Mas em autoconstrução com os outros, porque ninguém aprende sozinho.

Participei, ativamente, nas mudanças que o Vaticano II propôs. Ajudei a colocar o altar e o sacerdote de frente para o “povo de Deus em marcha”. Dirigi coros de igreja. Quase entrei para um seminário… mas decidi ser professor. Quando me perguntavam o porquê da minha decisão, eu respondia:

“Nós vamos para a educação, fundamentalmente, por uma de duas razões: ou por amor, ou por vingança. Eu fui para a educação por vingança, confesso. Mas fiquei por amor. Jurei a mim mesmo que nenhum dos meus alunos passaria pelas situações de humilhação, de exclusão e por outras violências por que passei, quando aluno”.

Anos a fio, dei as minhas aulas, sem conseguir “vingar-me” e sem saber por que não conseguia, até encontrar “explicação”. Se a Igreja, de algum modo, se havia transformado, a Escola permanecia idêntica à da primeira Revolução Industrial. Estruturado há mais de duzentos anos, o modelo de ensinagem reproduzia-se de forma tão natural, que parecia perpetuar-se. Concluí que deveria deixar de dar aula, para me “vingar”.

Entrei num doloroso processo de reelaboração da minha cultura profissional e em ruptura com o sistema de ensinagem. Artesanalmente, como se fora um “aprendiz de feiticeiro”, criei um sistema de aprendizagem. E… Voilá! – Consegui “vingar-me”! Parei de dar aula, os alunos começaram a aprender.

Faltava completar esse gesto de amor e de intuição pedagógica com o seu fundamento científico, pois não há prática sem teoria. Durante sessenta anos, partilhei a “vingança” e saboreei teoria. Fiz amizade com mestres ilustres, que produziram belos nacos de prosa. Como este, da autoria do meu amigo e mestre Pedro Demo: Aula é o que mantém a escola presa ao passado fordista ou similar, como consta dos “Tempos Modernos” de Chaplin, repetitiva, monótona, linear, sequencial, insuportável, desumana. Não tem como objetivo cuidar da aprendizagem do estudante, mas de transmitir conteúdo que frequentemente o estudante sequer entende.

Quando fomos surpreendidos pelo “covid-19”, a crença nas virtudes da velha escola ainda mantinha os professores na ilusão de uma possível melhoria de um modelo em decomposição. E os pais não sabiam que uma aula presencial era tão inútil quanto uma aula virtual. A normose instalara-se, porque todo hábito, uma vez adquirido, instala-se no subconsciente. Mas, durante a pandemia, professores tomaram consciência da necessidade e urgência da reconfiguração das práticas educacionais. Decidiram “vingar-se”…

Contar-vos-ei como tudo aconteceu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXI)

São Roque, 26 de abril de 2040

Hesitei em enviar-vos esta carta. Ela narra uma lamentável ocorrência. Só decidi enviá-la, porque, animado do esperançoso “espírito de abril”, a concluo com um “final feliz”.

Decorria o mês de abril de 1975. Nas minhas andanças de militante frinetiano, munido do “espírito de abril”, fui ajudar professores a introduzir técnicas Freinet nas suas práticas, num encontro previsto para dois dias de duração… e que só durou um.

Eu já tinha introduzido nas minhas aulas – no tempo dos dinossauros da educação, eu também dava aula – a imprensa escolar, os ficheiros autocorretivos, a assembleia, a correspondência escolar, toda a parafernália que Freinet nos tinha legado. Convidei e fiz equipe com uma professora universitária.

No início do primeiro e único dia de encontro, apresentei-me como professor primário e militante do Movimento da Escola Moderna. A colega apresentou-se como “Doutora Fulana” e disse que era especialista em currículo.

No final da manhã desse primeiro e único dia de formação, eu já estava cansado de escutar tantos “mas”, tantos “ses”, que “não era possível”, que “os professores não tinham condições para”… pois, se eu partilhava uma prática, isso era evidência de que era possível, que havia condições. Enfim!

Propus uma dinâmica de grupo – não vos explicarei em que consistia, mas poderei acrescentar que havia um “ingênuo” em cada grupo. Ao aproximar-me de um dos grupos, fi-lo, de modo que o “ingênuo” (melhor dizendo, a “ingênua”) não me visse. Esse “ingênuo” era a Doutora, que fazia equipe comigo. E, quando me aproximei do círculo de formandos, escutei a Doutora dizer:

Pois é, minhas senhoras. O colega Pacheco é um idealista. É claro que vós não ireis fazer o que ele diz que faz. Não há condições! Não é, colegas?

As “colegas” não responderam. A Doutora voltou-se e fitou-me com cara de quem não gostou de me ver…

Por pudor, não vos direi o que disse à Doutora, naquele momento. Só vos direi que ela se foi dali, para nunca mais voltar. E, nesse mesmo dia, eu dei por concluída a ação de formação.

Eu já havia assistido a uma palestra dessa e de outros doutores. Projetavam imagens numa tela, as chamadas “transparências” (num tempo em que ainda não havia computadores, nem power point, os palestrantes usavam folhas de acetato transparente colocados num retroprojetor) e iam lendo frases do Freinet e de outros escolanovistas. Esforçavam-se por serem simpáticos, afagando o ego dos professores. Estes correspondiam com calorosos aplausos. O doutor usava de uma sutil condescendência, a que o professor recorria, para se manter no cómodo amparo da sua zona de conforto.

Quarenta e cinco anos após o episódio descrito, esses nefastos personagens do drama educacional andavam por aí, fechando portas que abril abriu, anulando oportunidades de mudança e de inovar. No tempo da pandemia, a Internet foi por eles invadida. Estavam na moda as “metodologias ativas na sala de aula”, as “comunidades de aprendizagem e outros subprodutos confeccionados por teóricos de teorias. Na prática, metodologias “inativas” eram reproduzidas em sala de aula e as ditas “comunidades” eram adereços, que ornamentavam as escolas da ensinagem. Gente, que eu considerava séria, era conivente com uma farsa.

Uma profunda tristeza me invadia. Mas foi desfeita. quando me juntei a outros educadores, que decidiram concretizar propostas por mais de cem anos adiadas. Nas próximas cartas, contar-vos-ei um FAZER, que começou no dia 25 do mês de abril de há vinte anos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXX)

Miramar, 25 de abril de 2040

Netos queridos,

Talvez me considereis saudosista, antiquado. Talvez o seja, mas é grande a minha preocupação de, antes de fechar os olhos, vos deixar notícia de tempos idos.

Na minha provecta idade, a memória de longo prazo predomina, mas receio esquecer pormenores. Não consigo prescindir de vasculhar o fundo das gavetas, para ler notícias, que ainda guardo em papel. Talvez já conheçais esta estória, mas arrisco contá-la. Começou em maio de 68 e culminou numa madrugada de abril, dois anos antes do nascimento do vosso pai. Cá vai…

Aprendi a tocar violão com o meu amigo Valdemar. Aprendizagem interrompida, para que ele cumprisse serviço militar e fosse combater a guerrilha, em Moçambique. Faltava menos de um mês para o Valdemar terminar a sua missão numa guerra sem fim à vista. Quando regressava de uma incursão, na Berliet dos feridos, avistou uma criança, sentada na copa de uma árvore. A criança acenou, parecendo afável. O Valdemar correspondeu à saudação com um sorriso e a simulação de um abraço. No instante seguinte, a criança atirou uma granada defensiva para dentro do caminhão.

Na última carta, que recebemos de Valdemar, o meu amigo dizia da sua satisfação de regressar ao lar. Voltou dentro de um caixão lacrado.

Destino idêntico teve outro amigo, o Eduardo. Voltou da frente de combate de Angola, com uma bala alojada na cabeça. O seu sofrimento durou menos de dois meses. Faleceu durante uma operação cirúrgica.

Ao cabo de meio ano de desgaste na frente de combate da Guiné, o meu amigo e inspirado poeta Miguel foi dado como “incapaz”. Ao cabo de dois anos de tratamento psiquiátrico, suicidou-se.

Cansei-me de perder amigos e juntei-me a quem conspirava contra a ditadura. Isso me valeu dissabores e situações, que não descreverei, porque não vos quero impressionar. A minha correspondência estava vigiada – as cartas, que a Censura deixava passar, chegavam abertas e com um número no envelope. Exceto aquela que continha a convocação para prestação de serviço militar obrigatório.

Companheiros da clandestinidade trouxeram-me um plano de fuga. Poderia percorrer a senda de muitos jovens da minha geração, que tinham desertado, atravessado a fronteira, rumo a um doloroso, mas protetor exílio. Optei por ficar no meu país. Era frágil o coração da mãe Luiza. Não suportaria a ausência do seu filho.

Nas três frentes de guerra em África, a maioria dos meus colegas de profissão desempenhava tranquilas missões de retaguarda. Eu, que era (e sou) o único estrábico dessa geração de professores, fui… atirador de infantaria. Fizeram de mim tropa de combate, carne para canhão. Assi, a Ditadura se vingava das tropelias desse furriel… mas quem se vingou foi o vosso avô.

Naquele dia de abril, um professor pacifista vestiu farda de combate, foi ajudar a fazer uma revolução, contribuir para libertar o país de uma ditadura de 48 anos. No dia 25 de abril de 1974, arriscamos a vida, para dar vida à liberdade. Portugal voltava a ser a “terra da fraternidade” cantada pelo Zeca.

Num Messenger de abril de 2020, a minha amiga Magda assim manifestava esse “espírito de abril”: Comemorar o 25 de Abril deveria ser uma tarefa diária. Em tempo de pandemia, deveria ser respeitar e proteger os outros com tanto empenho como nos protegemos a nós próprios. Professores como a Magda me faziam acreditar que uma nova e fraterna construção social de educação, emergente da crise de 2020, contribuiria para formar o cidadão democrático e participativo, o ser humano sensível e solidário. No Brasil e em Portugal, despontava um renovado “espírito de abril”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXIX)

São Sebastião, 24 de abril de 2040

No cenário da aula online, como no “normal” quotidiano da sala de aula, a profissão de professor era considerada pela Organização Mundial de Saúde como uma das de maior risco. A OMS o reconhecia e a OCDE promovia cimeiras sobre o bem-estar dos professores. Porém, o que se discutia nesses encontros era a manutenção de um profundo mal-estar. Um secretário-geral afirmou que não se deveria perder a oportunidade de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países e que o bem-estar dos professores teria de ser percebido como um tema político de primordial importância. Plenamente de acordo! Era necessário cuidar da pessoa do professor, que assim se manifestava:

Sinto que há um medo, uma insegurança no ar, uma falta de confiança entre aluno e professor. Ouço-me dizer coisas, que estavam no meu entendimento anterior, mas que não haviam se evidenciado no presente daquela aula. É o pior momento que posso imaginar numa aula. Parece que você mesmo se perdeu no passado. Você começa a se sentir clonado por uma voz antiga. Então, é uma luta contra aquilo que você já pensou. Você não pode ficar naquilo que já pensou alguma vez, pois você está reproduzindo como autômato uma experiência. Quando isso ocorre, a aula vai por água abaixo. Eu tendo a pensar nos efeitos negativos do flautista de Hamelin: se você está fazendo alguma coisa de que todo mundo na classe está gostando, alguma coisa você está fazendo de errado.

Quanta honestidade e até mesmo humildade a desse professor! Como eu o compreendia e admirava! Passei pelo mesmo dilema, há cinquenta anos. E me questionava: Por que é que eu dou aulas tão bem dadas e há alunos que reprovam, que não aprendem?

Foi na Ponte, que encontrei a resposta: se eu dou aula e eles não aprendem, eles não aprendem porque eu dou aula. E instalou-se em mim um mal-estar indescritível. Tomei consciência do que fizeram de mim. Mas não sabia o que fazer com o que fizeram de mim – eu só sabia dar aula. Ao mesmo tempo, apercebi-me de que outros professores manifestavam o mesmo incômodo, mas agiam como o avestruz, quando se sentia em perigo: metia a cabeça na areia.

Os professores meus contemporâneos eram profundos conhecedores dos assuntos que leccionavam. Mas, para quem “davam aula”? Era suposto que, se o professor leccionava, uma aula serviria para que o aluno aprendesse. Porém, faltava saber como se aprendia. Isso não nos tinha sido ensinado nas aulas do curso de formação de professores.

Partimos daquilo que éramos, daquilo que tinham feito de nós. Usamos aquilo em que éramos competentes: o “dar aula”. Apenas com amorosidade e intuição pedagógica – nesse tempo, ainda ninguém conhecia o Piaget… – nos emancipamos do “dar aula”. E a aprendizagem aconteceu.

Quando algum professor enveredava pela autocrítica, agia como Agostinho da Silva, quando dizia: O que importa não é educar, mas evitar que os seres humanos se deseduquem. Cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta. Seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que em nós é extraordinário e transformaremos o mundo.

Com quase noventa anos de idade, eu continuo convicto da capacidade de transformação dos professores. Também por isso me chamam aquilo que escutei de um velho professor, setenta anos atrás:

Colega, você é novo, você é um utópico! Vai ver que, quando tiver a minha idade, pensará de modo diferente.

Já sou mais velho do que esse professor seria, se ele já não estivesse no eterno descanso. E continuo sendo utópico, continuo a acreditar nos professores.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXVIII)

Montalegre, 23 de abril de 2040

Agostinho da Silva passou grande parte da sua vida no exílio, por não caber no estreito espaço da “normalidade” imposta numa pátria mergulhada nos tempos sombrios de ditadura. No Brasil que o acolheu, ajudou a fundar universidades e escreveu muitos livros. Naquela que foi a sua pátria de adopção, o mestre Agostinho, procurou “infundir vida nova” em universidades, que somente cumpriam rituais desprovidos de sentido. Numa das suas obras, falou-nos de um Francisco de Assis, que também não foi um ser “normal” para a sua época, pois semeava a palavra, mostrando a todos como era possível traduzir em atos os preceitos e como se podia infundir “vida nova” no que se fora transformando em seco ritual.

Jovem professor, fui “receber formação” numa universidade. Reparei nuns dísticos colocados nas entradas das salas. Uns informavam que aquele espaço era do Doutor Fulano. Outros, que era a “Sala do 3ºano” etc. Eram muitas as inscrições, mas uma delas me chamou mais a atenção, pois continha a seguinte inscrição: “sala de aula normal”.

Perguntei: “Também há salas de aula “anormais”? O funcionário estranhou que eu fizesse tal reparo e sentenciou: “É normal, senhor professor”. Quando o formador chegou, repeti a pergunta. Ele não achou graça. A minha pergunta foi ignorada e eu fui convidado a entrar para a “sala de aula normal”. De passagem, ainda escutei: “Este indivíduo é louco!”

Aprendi a lição. Sempre que deparava com o dístico: “sala de aula normal”, não arriscava fazer piada “fora do normal”. Apesar de que, perante o descalabro que se vivia nas escolas “normais”, tudo o que se fizesse de “anormal” só poderia significar mudar para melhor. Sempre contrariei a insistência na “normal” transmissão de conteúdo, desligada da compreensão dos saberes e isso me valeu receber o epíteto de “louco”. Tal como o “louco” Freinet de há um século, perseguido por comunistas e fascistas “normais”, só porque ousou interrogar a naturalização de práticas obsoletas.

Sentia-me confortado, quando partilhava as horas com professores “fora do normal”, que não esqueciam a canção que o rei do baião cantava: “lá no meu sertão, pró caboclo ler, tem que aprender um outro abc”. Nem o verso do Caetano: “de perto, ninguém é normal”. Convivi com professores que também interpelaram a “normalidade” instituída, redescobri a sabedoria dos “não-normais”. Num mundo normalizador da loucura, admirava a coragem de quem se expunha e fazia aquilo em que acreditava.

Alice, no teu curso de Psicologia, estudaste as experiências de Asch e de Milgram. E compreendeste a origem da pandemia de “normalidade”, que nos afetou em 2020. Talvez também saibas que um senhor chamado Lalande dizia ser a “norma” “o tipo concreto ou a fórmula abstrata do que deve ser, em tudo o que admita um juízo de valor”. Sabendo que juízos de valor podem ser caminhos para preconceitos e julgamentos injustos, nos idos de setenta, em trabalho de equipe – com a Maria José, a Maria Luísa, e pais dos alunos – ajudei a definir os valores da matriz axiológica do projeto “Fazer a Ponte”: autonomia, responsabilidade, solidariedade.

Assumimos um compromisso ético com a educação. Transformamos em ato teorias que andavam dispersas. Insistimos na benigna “loucura” de transformar uma escola reprodutora de ignorância e exclusão numa escola inclusiva e geradora de conhecimento.

Nunca nos perdoaram a ousadia. Sentimos os efeitos da maldade humana. E passamos a ser conhecidos como “loucos”, “professores fora do normal”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias dos Tempos da Velha Escola (LXXVII)

Nova Lima, 22 de abril de 2040

Durante quatro anos, andei por terras mineiras, assentei arraiais perto de Nova Lima e de Brumadinho, lugar onde centenas pereceram por humana incúria. Por essas paragens e em Belo Horizonte conheci a Isabel, o Helder, a Norma, a Maria, a Gracinha e muitos outros anônimos educadores, de quem não resta memória escrita, nem do bem que fizeram. Cada qual, a seu modo, tentou desocultar uma estranha cegueira, uma pandemia de que muitos professores padeciam.

Decorria o mês de maio de 1968, quando Agostinho da Silva assim falou perante os deputados da Câmara: Na Universidade, o professor tem sido um sujeito que entra para dar aulas. A Universidade ficou no século XIX e os alunos já estão no século XX, ou no século XXI. Meio século decorrido, Bauman falava-nos de uma cegueira moral, de uma cegueira ética, a cegueira daqueles que veem, enquanto Saramago metaforicamente se referia a uma cegueira social, quando apelava ao dever moral dos que enxergam. No seu “Ensaio sobre a Cegueira”, usou a expressão “cegueira branca”, não se referindo à cegueira física, mas à cegueira moral, a uma peculiar “patologia”. O termo foi usado para representar o recusar ver: O medo cega, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.

Sendo a cegueira social uma sutil forma de alienação, Saramago nos convidava a uma reflexão sobre o estarmos cegos: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Talvez fosse intenção do autor recorrer à palavra “repara” numa dupla conotação: ao ato de “ver, claramente visto”, como Pessoa diria. Mas, também, ao ato de “reparar”: posicionar-se, agir para corrigir. Nutria profunda admiração pelo escritor, por acreditar na remissão dos pecados da minha espécie, apesar daquilo que via, “claramente visto”. E o que via?

Via que as tecnologias digitais se constituíam em mais uma panaceia, que comprometa a substituição de um obsoleto sistema de ensino para sistemas de aprendizagem. Na Internet, via simulacros de inovação, sob a forma de cursos e “aulas gratuitas”. Quando assistia a esse triste espetáculo, esperava a denúncia da mercantilização da ensinagem por parte daqueles que, como eu, eram especialistas, se tinham formado em ciências da educação. E suportava o seu obsceno silêncio.

Via que a universidade continuava estacionada no século XIX. Desde a crítica formulada pelo mestre Agostinho, em 1968, pouco, ou mesmo nada, mudara na universidade. Algo esquizofrénico acontecia: os professores da formação inicial diziam aos alunos que o ato de aprender deveria estar centrado no aluno; mas davam aula… centrada no professor.

Há sessenta e quatro anos, eu ajudara a criar um projeto, que logrou a passagem do paradigma da instrução para o da aprendizagem, garantindo a todos o direito à educação. Depois, acompanhei projetos fundados no paradigma da comunicação. Nesses contextos, as tecnologias de informação e comunicação contribuíam para concretizar as propostas de Papert, Castells, Morin, Maturana, Nise, Nilde, Lauro, Agostinho, Freire…

Esses e outros mestres me mostraram caminhos de transição. Com eles, aprendi que a aprendizagem não está centrada no professor, nem só no aluno. Que aprendemos na intersubjetividade. E que era muito raro que esse processo ocorresse em sala de aula.

À distância de duas décadas, vejo como a cegueira moral daquele tempo, a cegueira ética, a cegueira daqueles que viam, confirmava a relevância do ditado popular, que nos advertia de que o pior cego era aquele que não queria ver.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias da Velha Escola (LXXVI)

Plano Piloto de Brasília, 21 de abril de 2040

Quando eu cheguei por aqui eu nada entendi da dura poesia concreta das obras do Lúcio, do Burle, do Niemeyer, do Juscelino. Quando encarei a cidade, frente a frente, não vi o meu rosto. Foi um difícil começo. Aprendi a amar a cidade, não só porque morava paredes meias com um maravilhoso espaço: o Jardim Botânico. Nómada da educação, eu já tinha montado tenda em muitos lugares. Se Brasília escolhi para morar, foi porque conheci gente, educadores com quem estabeleci vínculos indeléveis, gente que me fez ficar.

Apesar do incitamento a romper o isolamento social, por via de economicistas motivações, o bom senso da população da Brasília prevalecia. A fotografia, que vos envio é disso prova: o centro da cidade estava quase deserto, no dia do sexagésimo aniversário de Brasília, uma cidade bem mais jovem do que o vosso avô e onde quis passar os últimos dias da minha vida.

Numa noite de agosto de 1883, Dom Bosco teve um iluminado sonho místico, uma visão: entre os paralelos 15 e 20 graus, aparecerá a Grande Civilização, a Terra PrometidaPara muitos, era a antevisão de uma nova cidade, que acreditavam ser Brasília. Seja lá como for, aqui reencontrei o rastro do português e universalista Agostinho, outro visionário, criador do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Nos idos de 2020, sentava-me debaixo da mangueira, onde Agostinho escrevia os poemas, que distribuía a professores e candangos. Na UnB do Darcy, conheci o Chiquinho. Dizia que o grande diferencial da sua história de vida, além do amor pelos livros, eram as amizades. Se o seu maior tesouro eram os leitores e os amigos, dele me fiz amigo. E muitas mais amizades construí com quem amava e respeitava a infância.

Perdoai que fale um pouco mais de mim. Deu-me vontade, porque há quem nasça longe de casa e esse foi o meu caso. Tive berço numa pátria, no Portugal da Ditadura de Salazar. Irei morrer nos braços de uma mátria gentil. Fui peregrino da educação, até um telúrico sentir-me em casa e me encontrar.

O confinamento imposto pelo vírus não conseguia demover-me do contato, então apenas virtual, com amigos, que ainda apontavam virtudes na prática da aula. Irremediavelmente esperançoso, eu os escutava e com eles, tentava instaurar um diálogo construtivo, reconstrutor.

A partir do que éramos, do que sabíamos e do que sabíamos fazer, urgia criar potencial de inovação. Porém, o campo da inovação estava armadilhado. A Internet tinha sido invadida por pseudo-inovações, que reciclavam velhas fórmulas e perenizavam a ensinagem.

Netos queridos, os projetos de humanização da educação contemporâneos da pandemia não se coadunavam com as práticas escolares de então. Por volta da segunda década deste século, a tragédia causada pelo modelo instrucionista do século XIX prolongava-se no século XXI. Travestida de “invertida”, “híbrida”, ou outro qualquer disfarce, a escola da aula perpetuava um monstruoso genocídio educacional.

A Educação carecia de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requeria que se transformasse uma instituição obsoleta numa escola que a todos e a cada qual desse oportunidades de ser e de aprender. Até que um vírus nos trouxe oportunidades de mudar e inovar…

Brasília é “taurina”, como eu. Teimosa, até mesmo obstinada. No dia 22 desse abril da pandemia, a Lua Nova estaria em Touro. Iria trazer-nos energia para pensar projetos novos, para fazer desabrochar novas visões de mundo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXV)

Ipiranga, 20 de abril de 2040

No WhatsApp, o amigo Celso convidou-nos para um salutar debate sobre um ou dois tópicos. Um dos tópicos de reflexão era o dispositivo central do modelo instrucionista de escola: a aula.

Dois anos antes dessa fraterna conversa, eu havia sido convidado para redigir o prefácio da “Arte da Aula”. Esse livro reunia depoimentos de docentes universitários. Alguns deles foram para mim fonte de inspiração. E até tive ensejo de colaborar com um desses mestres, quando ele desempenhava o cargo de ministro da educação. Recordo o dia em que, reunidos no “Aprendiz”, o Renato me questionou:

Professor, você crê que a inovação nasce sempre na periferia do sistema?

Respondi:

A mudança, que poderá levar à inovação deverá começar na escola, no ministério e na universidade, simultaneamente. – E assim continuo a pensar. Aquilo que aconteceu, a partir de abril de 2020, foi disso confirmação, como vereis.

Considerei privilégio o acesso a depoimentos de mestres da arte de ensinar. Li e reli exercícios de uma escrita sensível, reflexo da consciência do destino da escola e da necessidade de humanização do ato de ensinar. Com a atenção que mereciam, saboreei descrições do ofício de professor universitário e as marcas que esse exercício imprimiu nas suas vidas e nas vidas dos seus alunos. Eram demonstração de que havia professores, que não usavam a pedagogia como mera ciência, mas como arte de ensinar. Exercendo o seu múnus profissional num tempo em que não tiveram que competir com máquinas inteligentes – creio que todos estavam aposentados – dispensaram tarefas de máquinas, mas não ficaram indiferentes à necessidade de transformação da educação.

Quase todos esses mestres se decepcionaram com a falta de interesse de muitos alunos. Talvez não tivessem entendido a mensagem desses robotizados jovens. O desinteresse prenunciava o surgimento de uma crise de relações humanas, o anúncio da falência de um determinado modelo de sociedade, o “canto do cisne” do modelo instrucionista:

Enfrentei a apatia dos alunos. Sempre há uma meia dúzia que faz a diferença, que faz o curso valer a pena. Mas a maioria é, mais ou menos, apática. Eu me esforço para dar uma aula muito concentrada e, em geral, me irrito com qualquer comportamento dispersivo dos alunos. Como lido com a apatia na sala de aula? Apáticos por quê? Você precisa de técnicas de como despertar a atenção deles. É difícil, viu?

O não reconhecimento da obsolescência do modelo instrucionista fazia com que esses “desabafos” fossem em menor número do que os depoimentos desses professores do ensino “superior”, que refletiam satisfação. Num tempo em que a maioria dos docentes do ensino “inferior” não se sentia profissionalmente realizada, não se sentia valorizada e apontava causas do desgaste: “turmas com elevado número de alunos, comportamento indisciplinado e desmotivação, carga horária e burocrática, falta de apoio”.

Alguns amigos diziam-me que “as aulas já não eram como as de antigamente”. Eu sabia que as preparavam com maior cuidado. Os professores definiam criteriosamente os objetivos, elaboravam rigorosos planejamentos e materiais auxiliares de ensino. Mas, retomemos a fala dos mestres de antanho:

Dá impressão de que você está continuamente fora do assunto, pois a distância cultural é muito grande. Não sei o que faria, se tivesse que voltar a dar aula na universidade.

Os mestres, que eu reverenciava, não se davam conta de que o desgaste emocional e a desmotivação dos professores eram sintomas do fim de um tempo – do tempo da aula.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXIV)

Varginha, 19 de abril de 2040

No abril da pandemia, a principal tarefa dos pais era a de dar significado ao passar tempo juntos. Desfrutar do convívio intergeracional, para comentar as fotografias daquele álbum de família, há muito esquecido no fundo do guarda-roupa. Fazer jardinagem, se jardim houvesse. Fazer a sua parte das tarefas que a diarista fazia, se diarista houvesse. E o filho poderia lembrar o pai de que era preciso cuidar da diarista, pagar-lhe o serviço, mesmo que ela não pudesse romper o isolamento social.

Que se aproveitasse o convivencial tempo para escutar as músicas de que os filhos gostavam. E, homeopaticamente, os pais dessem a escutar a “música do seu tempo” – sem dizer “no nosso tempo é que era…” E cantar junto, porque o ser humano também é capaz de juntar as vozes, para produzir beleza.

Cada dia seria o primeiro dia do resto das suas vidas e, por isso, bem aproveitado. Era imperioso que se vivesse esse tempo, confinados e unidos, celebrando a Vida. Os pais poderiam descrever aos filhos as brincadeiras e brinquedos do tempo em que eram crianças. Sobretudo, que descrevessem o modo como fabricavam brinquedos. Se houvesse, lá fora (mas perto de casa…) uns arames, uns pedaços de madeira, por que não construir e brincar, juntos?

As famílias se acostumaram a uma rotina de isolamento, mas o vórtice da ansiedade, e o estresse poderia afetar negativamente a harmonia do lar. Não conversar sobre a pandemia não seria solução. Porém, de forma sincera e otimista, os pais deveriam conversar com os seus filhos, atentos aos sentimentos das crianças.

Antes da praga do “corona”, muitas pragas sociais eram escamoteadas. Era na “concha protetora do lar”, que mais feminicídios aconteciam, que mais abusos sexuais eram sofridos em silêncio. Que se aproveitasse, pois, esse tempo de isolamento social para destruir caseiras solidões, romper micros isolamentos familiares.

Nesse tempo, eu colhia as excelentes contribuições das neurociências, mas avisava que o ser humano era mais do que um cérebro. E o Ken Robinson ironizava, dizendo que os congressistas e palestrantes pensavam que as pernas apenas serviam para levar o cérebro a congressos e seminários. Na Ponte de meados do século XX, criamos a figura do Tutor, um professor que, na relação antropogógica, contemplava a multidimensionalidade do ser humano. O educador não descurava o domínio cognitivo – a Ponte sempre foi exemplo de excelência acadêmica com inclusão social – mas também cuidava da dimensão afetiva, emocional, estética, físico-motora, ética, espiritual. Atentos a inseguranças e múltiplos traumas, instituímos um tempo de estarmos juntos, acolhedores, disponíveis para reconstruir afetos ignorados, ou esquecidos.

Dialeticamente, a reflexão sobre essa prática conduziu-nos a nova conclusão e a uma nova prática. Conscientizamo-nos de que o processo não estava apenas centrado no sujeito de aprendizagem. Ao currículo da subjetividade deveríamos juntar o da comunidade e o da grande comunidade universal. Uma terceira dimensão curricular começou a tomar forma: o currículo da consciência planetária – eu existo porque o outro existe.

Quando, por força do vírus, os pais estavam “sozinhos em casa”, poderiam oferecer-se um tempo de tomar posse de crenças afetivas – como diria o meu amigo Celso – e administrá-las. Para ajudar os pais, para desvendar afetos e nos propiciar reflexão, o amigo Diogo esteve conosco, na sétima “live” de abril. Trouxe-nos uma serena mensagem da não-violência, a arte do reencontro consigo mesmo e com o outro.

Por: José Pacheco

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