Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CM)

Vila Nogueira de Azeitão, 8 de junho de 2042

Netos queridos, para isto me deu, para partilhar memórias, que só entre avô e netos pode acontecer. Mesmo longe, o encontro acontece. Dizia um autor do tempo dos livros de autoajuda, que não havia longe nem distância. Era um escritor de nome Bach, que criou a personagem central das cartinhas para vós enviadas, no início do século: a gaivota. 

Certamente, ainda guardais dois livrinhos escritos para encurtar a distância entre um avô andarilho e dois netos crescendo no “longe e na distância”. Hoje, creio que já ninguém se lembra deles. Mas, o “Para Alice com Amor” chegou a constar da bibliografia de cursos de Pedagogia – Vede lá! E o “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos” inspirou a minha amiga Janaína, que dele fez uma maravilhosa peça de teatro. 

Voltando à Terra… Naquela tarde de domingo montemorense, a conversa e a cerveja fluíam no Jardim dos Cavalinhos. O Hugo trouxera o seu violão, mas eu faltei ao encontro. Aconteceu que, chegadas de Évora, a Rita e a Vera requeriam a minha atenção, precisavam de ajuda, que o vosso avô não poderia recusar. Apesar do cansaço e sem beneficiar de feriados ou fins de semana livres de canseiras, o périplo de junho se expandiu. Voltei à estrada. 

Na companhia da Carina e da Sílvia, conversei com o Luís, para que os filhos dessas maravilhosas (e preocupadas) mães pudessem beneficiar de uma educação do século XXI. As escolas da Quinta do Conde não poderiam ficar à margem de uma mudança, que começava a tomar forma. Nem ignorar o que uma escola portuguesa havia conseguido fazer e que o amigo Ilídio assim comentava:

“Na minha atividade de investigador, um dos objetivos que procuro não perder de vista é o de promover um pensamento reflexivo e crítico que tenha em conta os constrangimentos e as possibilidades da ação humana. 

Os diversos contatos que tenho mantido com as escolas e os professores têm revelado uma enorme descrença em relação às possibilidades de transformação da escola, nos seus aspectos mais substantivos. Surgem, porém, nesses contatos, momentos em que os professores encaram essas possibilidades a partir de experiências inovadoras que observaram. E a Escola da Ponte é a que é referida mais frequentemente. 

Já participei em diversos encontros onde a experiência da Ponte foi apresentada e pude observar o grande entusiasmo e interesse demonstrados pelas pessoas presentes, não apenas professores, mas também alunos, pais, autarcas, investigadores e outros interessados nas questões educativas. 

Em ações de formação contínua e em cursos de formação inicial, costumo referir e suscitar a reflexão em torno de experiências inovadoras que existem no nosso e noutros países. Mas amiúde são os próprios participantes que referem o exemplo da Ponte, quer porque já ouviram falar dela, quer porque já a visitaram. 

A Escola da Ponte e o seu projeto educativo assumem, por isso, redobrada importância. Importância para todos quantos nela têm estado envolvidos diretamente, mas também como símbolo de esperança e de coragem para todos os que levam a sério o desafio de repensar a escola e o sentido do trabalho escolar. 

O projeto educativo da Escola da Ponte é um símbolo de esperança. Assume um grande desafio, face à dificuldade ainda maior de transformar o trabalho escolar assente numa realidade segmentada, de estrutura disciplinar. 

Na cartinha de ontem, deixei-vos uma pergunta. Se a Ponte correspondia àquilo que o Ilídio escrevia, por que razão não havia mais escolas como aquela? 

Nos idos de vinte, a resposta foi dada por milhares de educadores. E na prática!

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIX)

Coruche, 7 de junho de 2042

Por finais do século XX, duas obras me marcaram profundamente. Uma da autoria do amigo Nóvoa: “Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas”. A outra escrevera-a o Boaventura: “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”. 

Na sua releitura e entre outras contribuições para o reconhecimento da minha ignorância, reencontrei bases da crítica da “pedagogia predial”. Lauro a fizera, na década de sessenta. E o amigo Ilídio a retomara, quando se apercebera de que apenas uma escola P3 – creio que dela vos falei – conseguira manter-se fiel aos princípios do modelo de “escola de área aberta”.

Sabe-se lá por que critérios (científicos!), o Ministério da Educação criara as “escolas básicas integradas” e já cometera o crime de transportar e encaixotar crianças em megalómanos “centros educativos”. Nas aldeias do interior de Portugal já não havia crianças e os antigos edifícios escolares apodreciam. E o Fernando assim dizia:

“Apesar da matéria de tipologias de rede escolar já estar esgotada no debate educacional e de, ao longo das duas últimas décadas, já ter esgotado a paciência de muitos autarcas, gestores escolares, professores e outros atores do sistema escolar, elas continuam a ser apresentadas pelos responsáveis do Ministério da Educação como prioridades educativas

Tal não significa que a tipologia de uma escola não seja aspecto irrelevante; o que significa é que a questão se torna relevante apenas quando inserida num projeto educativo que não fique refém dos aspectos de morfologia. 

Esta é a característica essencial do projeto da Escola da Ponte — quando pretende desenvolver uma experiência de integração dos três ciclos do ensino básico —, mas paradoxalmente é com base em argumentos de natureza gestionária e de mera morfologia que a continuidade desse projeto é ameaçada pelos responsáveis pelo Ministério da Educação. 

Este projeto representa, assim, um exemplo de coragem que deveria ser apoiado por todos, a começar pelos responsáveis pelo ministério. No entanto, ao invés de o apoiarem e incentivarem ameaçam a sua continuidade. Tal posição põe a nu a hipocrisia que tem caracterizado o discurso sobre a Educação. 

O discurso tem sido fértil em referências à autonomia da escola, à gestão flexível do currículo, ao trabalho em projeto, à educação para a cidadania etc., mas as posições concretas do ministério relativas à Ponte mostram que se trata apenas de um discurso balofo. 

Se se tratasse de genuínas intenções, o projeto educativo da Escola da Ponte não seria silenciado. Pelo contrário, seria encarado como um caso exemplar de práticas e experiências de autonomia, de gestão flexível do currículo, de educação para a cidadania, de trabalho em projeto, de vivência democrática. Com a diferença de, no caso da Escola da Ponte, não se tratar de palavras ocas como as que têm invadido os textos das sucessivas e desacreditadas reformas educativas.

Sobre o que está em causa, o subtítulo de uma obra de Boaventura de Sousa Santos – contra o desperdício da experiência – é elucidativo. No período que estamos a viver, em que é visível uma enorme descrença nas possibilidades de mudança da escola e das práticas educativas e um grande desalento dos professores, a experiência da Escola da Ponte não pode ser desperdiçada. Sob pena de deixarmos de acreditar que é possível construir mudanças em educação e pela educação.” 

O Fernando encontrara resposta para uma pergunta, que, muitas vezes, eu escutara:

“Por que não há mais escolas como a Escola da Ponte?”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVIII)

Montemor-o-Novo, 6 de junho de 2042

Recordo bem o primeiro fim de semana do junho de há vinte anos. Incansável, a Caetana andava num rodopio entre o belo local onde a bondade da Cristina nos tinha acolhido e a preparação dos encontros em que viríamos a decidir sobre o nosso papel nos caminhos que a educação montemorense tomaria. Prestes a concluir-se tempos perdidos, era tempo de criar condições de ultrapassar velhos condicionalismos e levar a bom porto uma desejada e sempre adiada mudança educacional. O tempo das reformas reformadas findava.

Como vos disse numa cartinha anterior, o artigo que o meu amigo Ilídio redigiu, quando estávamos no início deste século, mantinha-se atual, nos idos de vinte.

Se não, vejamos:

“Mesmo falando-se muito, atualmente, em autonomia da escola, é a gestão que tem estado no centro das preocupações das escolas e dos agrupamentos de escolas, designadamente com a instalação de órgãos, com a realização de muitas reuniões e com a elaboração de documentos escritos, como os regulamentos e os projetos. 

Se bem que as preocupações com a gestão da escola já viessem da década anterior, designadamente em torno da ideia de gestão democrática, é no contexto da reforma educativa iniciada em Portugal em meados da década de 80 que se instala no debate educacional, o conceito de gestão: o novo modelo de gestão, o regime de autonomia e gestão, a gestão local da escola, a gestão da rede escolar, a gestão curricular, a gestão pedagógica, a gestão de recursos.

Os diversos documentos que têm que elaborar – o regulamento interno, o projeto educativo, o projeto curricular etc. –, os aspectos morfológicos da composição dos órgãos de gestão da escola e as questões da rede escolar, expressas por exemplo nas preocupações com as modalidades de agrupamentos de escolas –horizontais ou verticais – invadiram as preocupações dos professores, em detrimento dos assuntos respeitantes às atividades, aos saberes e às aprendizagens escolares.

No período recente, embora sejam abundantes as referências às políticas de autonomia e de gestão local da escola, as estruturas da administração do Ministério da Educação têm criado um verdadeiro corrupio nos contextos da ação local. Por exemplo, o projeto transformou-se numa das principais preocupações da escola, mas apenas nas suas dimensões formais e instrumentais. 

Como temos vindo a observar, os professores viram-se obrigados a elaborar o projeto educativo de escola, o projeto curricular de escola, o projeto curricular de turma, e outros, mas em grande medida assumindo esse trabalho como um processo administrativo de elaboração de documentos escritos exigidos pela Administração e pela Inspeção. 

Do mesmo modo, no âmbito da reorganização curricular, as novas áreas – a Área de Projeto, a Formação Cívica e o Estudo Acompanhado – tendem a ser encaradas como modas, como mais uma disciplina a leccionar, como uma forma de intensificação do seu trabalho.” 

Anos a fio, o ministério tinha mandado às malvas o disposto na Lei de Bases. Os critérios de natureza científica eram letra morta. Usando critérios de natureza administrativa (e, autoritariamente, burocráticos), os legisladores insistiam em reproduzir pedagógicos vícios ornados de novas roupagens.

Quando, no Conselho Nacional de Educação, redigi o Parecer sobre uma proposta de lei que incluía a Formação Cívica, a disciplina de Preparação para a Cidadania, eu perguntara se os jovens apenas seriam cidadãos uma hora por semana, se não poderiam ser cidadãos na aula de Matemática, ou na Educação Física… 

Ninguém respondeu.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVII)

Montemor-o- Novo, 5 de junho de 2042

Em cartinhas anteriores, manifestei temor de escrever a história de uma escola, que ajudei a construir. Temia ser inexato, vê-la com olhos viciados de emoção. Muito menos, desejaria misturar a imaginação à descrição de uma pedagógica viagem de mais de meio século. Por isso, deixei que fossem outros a definir lhe os contornos – olhares externos eram, muitas vezes, mais aguçados do que os meus. 

É por isso que ouso, mais uma vez, convidar o Fernando para contar as “impressões” das suas visitas à Ponte e os estudos que por lá fez. 

“O tipo de investigação que tenho privilegiado nos últimos anos – a pesquisa etnográfica – tem-me permitido manter um contacto e uma presença direta e prolongada em contextos educativos concretos, de envolvimento em projetos, de participação em ações de formação, de visitas a escolas, de entrevistas com alunos, professores, pais, autarcas, gestores escolares e outros atores educativos, que tenho construído um conhecimento por dentro da vida das escolas.

Mas nem sempre esse conhecimento tem sido fruto da investigação mais estruturada e planificada. Frequentemente, tem sido nas situações mais informais, de conversa com as pessoas, nas quais escuto, mais do que faço perguntas, que esse mundo se revela com maior clareza. 

A cultura da performatividade competitiva gera sentimentos de culpa, incerteza e insegurança ontológica: 

Estarei a trabalhar bem? Estarei a trabalhar o suficiente? Estarei a trabalhar no sentido certo? Será isto que querem que eu faça?” 

Ora, esta insegurança tende a gerar uma fantasia encenada para ser vista e avaliada; o espetáculo e a opacidade tendem a sobrepor-se à transparência e à autenticidade. 

Estes mecanismos têm gerado a ideia, no interior das escolas e entre os professores, de que as mudanças educativas lhes são exteriores. Isto é, tendem a ser encaradas como assuntos de gestão e da exclusiva responsabilidade dos administradores e dos gestores, em relação às quais os professores que trabalham quotidianamente com os alunos parecem considerar-se alheios ou apenas atores secundários. 

A mudança tende a ser encarada como um mero jogo nominalista, como se não houvesse outra mudança para além da alteração dos nomes. É o caso, por exemplo, da passagem da área escola para a área de projeto, ou dos currículos alternativos para a gestão flexível do currículo

Mas estas mudanças não têm penetrado no âmago do trabalho escolar. Pelo contrário, o entendimento da mudança como uma mera alteração dos nomes é não apenas inibidor da transformação do trabalho pedagógico como é também legitimador da conservação das práticas tradicionais. Isto é, para sobreviverem profissional e institucionalmente no clima de urgência criado pelas reformas educativas, as escolas e os professores tendem a esconder as suas práticas e a preocupar-se mais com a produção de discursos pedagogicamente corretos em conformidade com os temas do momento das reformas educativas.

A caracterização que António Nóvoa fez da situação atual dos professores e da educação escolar é bastante elucidativa. O período recente tem sido marcado, como diz, pelo «excesso de discursos» e pela «pobreza das práticas» e por um pensamento que se projeta num «excesso de futuro» como forma de justificar um «défice de presente»

O amigo Nóvoa isso escrevera em 1999! Nos idos de vinte, as suas palavras mantinham-se atuais. Em Portugal, era divulgado o relatório do projeto de “Autonomia e Flexibilização Curricular”. Na Unesco se dava a conhecer um relatório sobre os “Futuros da Educação”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVI)

Azeitão, 4 de junho de 2042

Conheci a Sandra, o João e o Martim, num tempo em que já quase desistia de andarilhar. Acolheram-me num lar feito de simpatia e de saber cuidar, num lugar onde a Fabi se abrigou das intempéries da vida e se lançou na construção de comunidades.

No junho de há vinte anos, deixei a Fabi e a Jana na margem sul do Tejo, entregues aos seus destinos, e rumei ao norte, ao encontro do que restava da Escola da Ponte. O Fernando a descreveu de um modo bem peculiar, quando a viu “repensando o sentido do trabalho escolar”, em contraste com “a lógica de reforma como mecanismo inibidor da transformação da escola”: 

“A lógica de reforma é avessa às experiências inovadoras que escapam à sua obsessão pela uniformidade e pelo controlo. Ignorando o valor dessas experiências, a lógica de reforma impõe-lhes enquadramentos legais, aplica-lhes decisões e inviabiliza lhes projetos, acabando muitas vezes destruí-las.

Frequentemente, esses enquadramentos e decisões são apresentados como uma espécie de desígnio nacional, com base no argumento de que é necessário proceder a reformas. Acontece, porém, que, apesar da difusão de slogans como em cada escola fazer a reforma ou a escola no centro das políticas educativas e da retórica da autonomia da escola, da possibilidade de as escolas construírem um projeto educativo próprio, da necessidade da participação de todos os interessados no processo educativo, as reformas educativas conduzidas pelo Ministério da Educação têm-se desenvolvido quase sempre em função de crenças, interesses e estratégias muito particulares, parecendo por vezes mais o resultado de um capricho do que de um processo de produção de políticas públicas. 

Sendo, embora, apresentadas como reformas, as ditas decisões tornam-se, na realidade, muito voláteis. E é, em grande medida, esta volatilidade que está na origem do desalento que se vive hoje no interior das escolas, face à constatação de que essas reformas intensificaram o trabalho, mas não em benefício da construção de uma escola com sentido.

As reformas educativas são frequentemente apresentadas como um desígnio nacional, com base no argumento de que o país está atrasado, de que tem pela frente o desafio da modernização e de que é necessário proceder a reformas estruturais. 

Porém, as tecnologias políticas de reforma educacional não são apenas veículos para a mudança técnica e estrutural; são também mecanismos que contribuem para a mudança das subjetividades, das identidades e dos valores. 

Sob a aparência de liberdade criada pela retórica da devolução de poderes, da flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo que impregnam as subjetividades dos professores e afetam as condições de trabalho e de vida nas escolas. Estas tecnologias – o mercado, o gerencialismo e, particularmente, a performatividade –, põem em causa a colegialidade e a autenticidade dos professores.”

Com sábias palavras, o Fernando partia da experiência da Ponte, para construir uma argumentação capaz de demover o ministério de nefastas intenções. Apesar de descrever a Escola da Ponte como “símbolo de esperança e de coragem”, o seu olhar atento desocultava subtis processos de desconstrução que, mais tarde, viriam a revelar-se em autoritárias decisões ministeriais.

Nas primeiras duas décadas deste século, a pretexto de introduzir alterações no aparato legal e de relançar velhas reformas, a descaraterização do projeto da Ponte foi tentada e, em parte, conseguida por políticos sem escrúpulos apoiados pela administração educacional. 

E voltei à Ponte.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCV)

Palmela, 3 de junho de 2042

Há alguns anos, andando por terras da margem sul, saboreando o esplêndido projeto concebido pela amiga Elsa e com ele muito aprendendo, instaram comigo para que escrevesse a história da Ponte. 

Nunca me atrevi a fazê-lo, nem a farei. Era uma tarefa ingrata, porque ela não se deixava historiar. Os “desvios de rota” – pelo menos, era assim que eu interpretava alguns “descaminhos e inações” – não me permitiam descrevê-la estática. Fiquei pela redação de artigos dispersos, esperando que alguma boa alma os quisesse organizar. E foi isso que aconteceu.

A partir da década de oitenta, a nossa escola foi objeto de curiosidade. Milhares de visitantes ali rumaram, talvez em busca de inspiração. Depois, foi objeto de estudo. Afinal, reconhecer-se-ia que a Ponte tinha sido a primeira escola a conseguir “ir além do Bojador”, como diria o Fernando, que foi Pessoa e dezenas de heterónimos. 

No início do século, outro Fernando assim se referia à Escola da Ponte:

“Conversas revelam, muitas vezes, um conhecimento diferente — um conhecimento da escola vista de fora, por quem não vive no seu seio e para quem ela se apresenta como uma realidade mais estranha. E este conhecimento da estranheza é essencial, sobretudo quando o que está em causa é uma realidade que tende a ser encarada como naturalmente boa independentemente das suas práticas e experiências concretas. 

Poderia contar vários episódios reveladores deste tipo de conhecimento, mas refiro aqui apenas uma conversa recente com um casal jovem que tem uma filha de seis anos que acabou de entrar na escola. 

Como outros pais e mães, estes estão interessados na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles não estão apenas interessados, como já estão também bastante preocupados, apesar de a menina só ter entrado para a escola há duas ou três semanas. Contavam-me, receosos, que a professora lhes dissera que a filha estava atrasada no i. Poderíamos discutir amplamente o significado desta expressão, que é profundamente reveladora de concepções e práticas de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu próprio ter verificado que a criança identificava e desenhava o i perfeitamente. Durante a conversa, pude perceber, no entanto, que não era isso que estava em causa. Estar atrasada no i significava que a criança não escrevia tantas linhas de iiiii quantas a professora pretendia. 

Este episódio ilustra uma das características mais enraizadas da forma escolar tradicional – o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetição – que as sucessivas reformas educativas das últimas décadas conduzidas pelo Ministério da Educação não conseguiram alterar, apesar de tanta retórica e de tanta legislação produzidas. 

Neste período, têm-se desenvolvido, apesar de tudo, experiências que questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da repetição não é uma fatalidade e que é possível construir uma escola com sentido para os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar.

A Ponte é, talvez, o exemplo mais marcante de uma escola com sentido que nasceu e se desenvolveu no período democrático em Portugal, com a qual temos muito a aprender. E é possível aprender com ela, não apenas nas suas dimensões endógenas, mas também sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras decisões do Ministério da Educação que frequentemente criam dificuldades, inviabilizam e até destroem experiências e projetos inovadores, tal como está a acontecer hoje em relação ao projeto educativo da Escola da Ponte.”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIV)

Quinta do Conde, 2 de junho de 2042

Queridos netos,

À distância de vinte anos, tudo nos parece um sonho mau. Mas, na verdade, não se tratava de um sonho, mas de dura realidade. No mês de maio de há duas décadas, na América dita civilizada, um jovem de nome Salvador matava a “sangue-frio”, com extrema crueldade, vinte e uma crianças e duas professoras. 

Numa escola primária de um recôndito lugar do Texas, Salvador esperara, metodicamente, pelos seus dezoito anos, para comprar as armas com que iria cometer tal atrocidade. Comprou-as, imaginou tudo em pormenor, serviu-se de informação disponível na Internet, treinou os passos da tragédia, como se estivesse a jogar “Call of Duty”. 

Nas redes sociais anunciou o que ia fazer. Depois de tentar matar a sua avó, saiu de casa, entrou na escola e, numa sala de aula idêntica à que fora sua, executou crianças indefesas. 

Numa viagem para o sul, entrou no comboio um grupo de professoras. Sentaram-se junto de mim. Por isso, não pude deixar de escutar conversas. Começaram por comentar a situação na Ucrânia. Depois, manifestavam surpresa perante mais um massacre numa escola. E, sem entender a ligação causa-efeito, passaram ao comentário do insucesso de um projeto, de entre muitos que o ministério, desde há muitos anos, patrocinava. 

Uma delas, que disse “estar a fazer doutoramento”, recorria a termos colhidos num qualquer compêndio de ciências da educação e as colegas escutavam-na com visível reverência. Aplaudiram-na quando ela se referiu num tom crítico e destrutivo ao chamado “Projeto MAIA”. Desdenhava do “Plano do Aluno”, da “Ficha Formativa”, das “grelhas” e de outros afazeres, que o dito projeto impunha a professores cansados de “planificar”, de “aplicar fichas” e de “preencher grelhas”.

“Eu tenho lá tempo para isso! Já chega a papelada de final de ano, as reuniões de avaliação e tudo o resto. Agora, está na moda a avaliação por rubricas e as competências modelo Maia. E a avaliação formativa. Pois é! Modas que se vendem e professores que as compram. Não alinho. À falta de melhor, há o google. E não está à venda nem na moda” (sic). 

Não entendi, por completo, a lenga-lenga daquelas professoras. Mas fiquei surpreendido por perceber que confundiam avaliação com classificação e não faziam ideia alguma de como se praticava avaliação formativa.

Entretanto, a conversa mudou de tom e, pouco a pouco, as professoras se foram remetendo para o isolamento social, de atenção centrada no écran (na tela) dos seus telemóveis (os celulares do Brasil). Perto delas, viaja uma multidão silenciosa de estudantes alheia ao que se passava à sua volta, concentrada num contínuo bater de teclas. 

Para me distrair de conversas sem conteúdo, também liguei o meu ifone. E, como não havia coincidências, mas sincronicidades, logo deparei com palavras da Conceição, descrevendo aquilo que chamou de “exemplo gritante”: 

“Mês de junho. 2.º momento de avaliação formativa, decidido em departamento. 

Estudo do Meio 17 de junho; matemática 22 de junho; português 23 de junho. Ora o 2.º ano de escolaridade tem provas de aferição (avaliação externa) a 15 de junho (Português/Estudo do Meio) e a 20 de junho (Matemática/Estudo do Meio). Os professores da minha escola recusam a ideia de prescindir da avaliação interna e os miúdos de 7/8 anos estarão sujeitos a duas semanas de Fichas de Avaliação: 15, 17, 20, 22 e 23 de junho. 

Ridículo e até obsceno no meu entender. Estou sozinha nesta discussão. Porque o calendário da avaliação formativa foi aprovado em departamento e porque de outro modo não poderão atribuir notas “com rigor” aos alunos.”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIII)

Arruda dos Vinhos, 1 de junho de 2042

Quando um ministro dizia que “muita coisa” melhorara, que o “sistema melhorou”, o que teria melhorado? 

Não dizia. Quanto muito, no campo da educação, diria que já todos os meninos iam à escola. E essa afirmação equivalia a fazer um elogio fúnebre da “massificação” do ensino. Pois, como diria o amigo João: 

“Antigamente, eles não iam a escola. Agora, apanham-nos lá dentro e reprovam-nos. Afastam-nos com processos disciplinares. Mandam-nos para centros de explicações, para aulas suplementares de mais do mesmo. Envia-os para a educação de adultos, ou para escolas de “segunda oportunidade”.

No Portugal dos idos de vinte, o modelo educacional prevalecente na maioria das escolas era o mesmo de duzentos anos antes, ainda que enfeitado de computadores e projetinhos, um instrucionismo disfarçado de comunidade de aprendizagem, de ensino híbrido ou de outras modas pedagógicas 

À margem do irresponsável e dispendioso aventureirismo ministerial, uma escola logrou emancipar-se do modelo instrucionista. Foi reconhecida como a escola mais inovadora do país, recebeu a visita do Presidente da República, foi-lhe atribuída a mais alta condecoração que uma escola pode receber: a comenda da ordem da instrução pública. Como se não bastasse, foi distinguida com um contrato de autonomia, que lhe permitia concretizar uma efetiva gestão flexível do currículo e até selecionar professores que assumissem valores e princípios do seu projeto. 

O exemplo dessa escola poderia inspirar o ministério e contribuir para evitar uma hecatombe escolar. Ela resistiu quanto pode. Ao cabo de alguns anos, roubaram-lhe a autonomia, retiraram-na da comunidade onde nascera, isolaram-na em território hostil.

Quem me perguntava por que razão eu fora embora do meu país, sabia a resposta. Sobrevivera um cansaço de dezenas de anos de confronto com a burocracia instalada no ministério. Porém, há exatos vinte anos, declarações de um ministro e de um secretário de estado, que eu bem conhecia, devolveram-me algum ânimo. E pedidos de ajuda, provindos de familias, autarcas, escolas, diretores, me fizeram voltar. 

A súbita euforia seria decorrente da situação vivida durante a pandemia? Seria uma tardia tomada de consciência?

Por essa altura, o amigo Domingos assumia a presidência do Conselho Nacional de Educação. A Presidente cessante, a Maria Emília, assim se referiu à escola de que vos falo nesta cartinha:

“Num colóquio, a alguém que lamentava os professores da escola da Ponte por “terem que ser missionários”, respondeu José Pacheco: “Antes missionários, que demissionários!” (…) Parece haver consenso quanto à necessidade de busca de novas formas de escolarização e de organização escolar, de adequação a novos paradigmas de mudança. E por que é importante a experiência da Ponte? 

Em primeiro lugar, como um exemplo possível duma escola pública diferente, que desnaturaliza algumas características da escola tradicional e quer ter em conta as mudanças económicas, políticas e tecnológicas ocorridas ou em curso e, ao mesmo tempo, reforçar e desenvolver as suas qualidades democráticas e democratizadoras. 

Em segundo lugar, como um ensaio de modos de inovar que sejam desejados e construídos pelos próprios interessados, designadamente pelos professores, a partir da escola, da sua situação, dos seus atores e parceiros. 

Em terceiro lugar, como uma concretização de uma teoria e de uma prática de formação de professores baseadas “no exercício profissional em contexto, combinando a ação e a reflexão coletivas”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCII)

Fontiscos, 31 de maio de 2042

O Marcos quis saber o título da crônica ontem enviada e vo-lo digo: “As tarefas da educação”. No tempo em que ela foi escrita, acolhíamos o Rubem na nossa casa, nas viagens que ele fazia a Portugal (e à Ponte). Sobre crônicas e andanças conversávamos. Nesse saudoso tempo e em conversas com a filha Raquel, após a sua morte, pudemos confirmar que o Rubem era aquilo que escrevia. Então, continuemos lendo o Rubem:

“As meninas não têm de aprender a torrar café numa panela de ferro, e os meninos não têm de aprender a usar arco e flecha para encontrar o café da manhã. Somente os velhos ainda sabem apontar os lápis com um canivete…

Outras ferramentas são puras habilidades. Andar, falar, construir. Uma habilidade extraordinária que usamos o tempo todo, mas de que não temos consciência, é a capacidade de construir, na cabeça, as realidades virtuais chamadas mapas. Para nos entendermos na nossa casa, temos de ter mapas dos seus cômodos e mapas dos lugares onde as coisas estão guardadas. Fazemos mapas da casa. Fazemos mapas da cidade, do mundo, do universo. Sem mapas, seríamos seres perdidos, sem direção.

A ciência é, ao mesmo tempo, uma enorme caixa de ferramentas e, mais importante que suas ferramentas, um saber de como se fazem as ferramentas. O uso das ferramentas científicas que já existem pode ser ensinado. Mas a arte de construir ferramentas novas, para isso há de saber pensar. A arte de pensar é a ponte para o desconhecido. Assim, tão importante quanto a aprendizagem do uso das ferramentas existentes — coisa que se pode aprender mecanicamente — é a arte de construir ferramentas novas. Na caixa das ferramentas, ao lado das ferramentas existentes, mas num compartimento separado, está a arte de pensar.

(Fico a pensar: o que as escolas ensinam? Elas ensinam as ferramentas existentes ou a arte de pensar, chave para as ferramentas inexistentes? O problema: os processos de avaliação sabem como testar o conhecimento das ferramentas. Mas que procedimentos adotar para avaliar a arte de pensar?)

Assim, diante da caixa de ferramentas, o professor tem de se perguntar: “Isso que estou ensinando é ferramenta para quê? De que forma pode ser usado? Em que aumenta a competência dos meus alunos para cada um viver a sua vida?”. Se não houver resposta, pode estar certo de uma coisa: ferramenta não é.

Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração. Essa caixa está cheia de coisas que não servem para nada. Inúteis. Lá estão um livro de poemas da Cecília Meireles, a “Valsinha” de Chico Buarque, um cheiro de jasmim, um quadro de Monet, um vento no rosto, uma sonata de Mozart, o riso de uma criança, um saco de bolas de gude… Coisas inúteis. E, no entanto, elas nos fazem sorrir. E não é para isso que se educa? Para que nossos filhos saibam sorrir? Na próxima vez, a gente abre a caixa dos brinquedos…”

Netos queridos, juntarei a esta cartinha reações de educadores com quem partilhei a crônica que vos dei a conhecer. Lede o que a Maria me respondeu:

“Amigo Zé, como é bom ler sua cartinha neste amanhecer de domingo!  Penso, que o que nos indicava Rubem é que somos seres expansionistas. Podemos ir além das ferramentas. Não podemos e não devemos nos contentar em aprender a usá-las. Nem, tampouco, nos escravizarmos em função delas. Talvez, devamos percebê-las com instrumentos que nos expandem. Que expandem nossa capacidade criativa, nossa capacidade de comunicação, de interação com as formas de sermos no mundo. 

Como vedes, tal como Rubem, eram seres sensíveis e admiráveis aqueles a quem o vosso avô enviava belezuras. E o Rubem se perpetuava…

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCI)

Lousado, 30 de maio de 2042

Como não há uma sem duas (ou será duas sem três?), volto a falar-vos do amigo Rubem. Vinte anos atrás, o vosso avô praticava um exercício dominical de partilha de belezura. E me lembrei de partilhar uma crónica, que o vi escrever. 

Certamente, já a tereis lido. Mas, a envio, porque bateu uma saudade dorida de ter visto o Rubem a “praticar essa crônica”, envolvido em conversas com as crianças da Ponte, no tempo em que vós nascestes. 

“Resumindo: são duas, apenas duas, as tarefas da educação. Como acho que as explicações conceituais são difíceis de aprender e fáceis de esquecer, eu caminho sempre pelo caminho dos poetas, que é o caminho das imagens. Uma boa imagem é inesquecível. Assim, em vez explicar o que disse, vou mostrar o que disse por meio de uma imagem.

O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de brinquedos. Ferramentas são melhorias do corpo. Os animais não precisam de ferramentas porque seus corpos já são ferramentas. Eles lhes dão tudo aquilo de que necessitam para sobreviver.

Como são desajeitados os seres humanos quando comparados com os animais! Veja, por exemplo, os macacos. Sem nenhum treinamento especial eles tirariam medalhas de ouro na ginástica olímpica. E os saltos das pulgas e dos gafanhotos!

Já prestou atenção na velocidade das formigas? Mais velozes a pé, proporcionalmente, que os bólidos de F-1! O voo dos urubus, os buracos dos tatus, as teias das aranhas, as conchas dos moluscos, a língua saltadora dos sapos, o veneno das taturanas, os dentes dos castores.

Nossa inteligência se desenvolveu para compensar nossa incompetência corporal. Inventou melhorias para o corpo: porretes, pilões, facas, flechas, redes, barcos, jegues, bicicletas, casas… Disse Marshall MacLuhan corretamente que todos os “meios” são extensões do corpo. É isso que são as ferramentas, meios para viver. Ferramentas aumentam a nossa força, nos dão poder. Sem ser dotado de força de corpo, pela inteligência o homem se transformou no mais forte de todos os animais, o mais terrível, o maior criador, o mais destruidor. O homem tem poder para transformar o mundo num paraíso ou num deserto.

A primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da estaca zero. Para que eles não precisem pensar soluções que já existem. Muitas ferramentas são objetos: sapatos, escovas, facas, canetas, óculos, carros, computadores. Os pais apresentam tais ferramentas aos seus filhos e lhes ensinam como devem ser usadas. Com o passar do tempo, muitas ferramentas, muitos objetos e muitos de seus usos se tornam obsoletos. Quando isso acontece, eles são retirados da caixa. São esquecidos por não terem mais uso.”

Recordo-me de o Rubem ter perguntado se poderia conversar com as crianças da Ponte. Uma multidão de curiosos se juntou na “área das artes”. Sentados em roda, escutaram o Rubem falar de ferramentas e brinquedos. 

Começou por pegar num carrinho – creio que feito de lata – e, sorridente, feliz, foi dialogando com uma “assistência” atenta. Quem seria aquele homem, que prendia a atenção das crianças, que operava a magia de originar perguntas. 

Por mais de uma hora, o Rubem se divertiu, brincou. No final, o “grupo de responsabilidades do jornal da escola” pediu-lhe uma entrevista, que vivia a ser publicada no jornal do mês seguinte.

Junto a esta cartinha uma foto feita no decorrer da entrevista.

(Amanhã, concluirei a transcrição da crônica.) 

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3
Scroll to top