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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXIV)

Santarém, 14 de julho de 2042

No julho de há vinte anos, Portugal continuava a arder. Um incêndio num campo agrícola me chamou a atenção. Quando chegaram ao local, os bombeiros não encontraram um incêndio “normal”, mas “uma pequena coluna de fumo num campo de milho e um corpo já carbonizado”. Era de “uma mulher com cerca de 50 anos”. Junto ao corpo encontrava-se um pequeno altar em madeira, algumas figuras de santos e velas.

Estranho, não é? No julho de há vinte anos, tudo era estranho: a repetição da tragédia dos incênciaos florestais, o silêncio nos lares, a violência nas ruas, uma guerra na Europa dita vivilizada.

Nesse mês, voltei a Santarém, num trânsito escalabitano de reencontro com a incansável Mariana da Comunidade de Aprendizagem Lezíria. Esta maravilhosa equipa viria a criar e a recriar projetos e, num deles, a ajudar uma excepcional Presidente de Junta a fazer regressar à Escola Alexandre Herculano a infância que dessa comunidade nunca deveria ter saído.

Imaginar modos de construir futuros mais promissores consiste em revisitar o passado. Voltemos, pois, a um passado em que eram organizados congressos, para debater a crise climática e a crise educacional – eram crises indissociáveis – nos mesmos termos de congressos ancestrais. Quem olhasse o cardápio dos congressos dos idos de vinte estaria a ler réplicas de programas de congressos das décadas de 70 ou 80. Apenas se dava nomes novos a velhos temas. 

Colhi um exemplo, ao acaso, no prospeto anunciador de uma convenção universitária. Quarenta anos antes desse evento académico, o vosso avô havia apresentado uma comunicação, num encontro em tudo idêntico à referida convenção. Em 1975, numa região rural, ganhei fama de bom professor (fosse lá isso o que fosse…), era muito querido pelas famílias dos meus alunos e com fama de bom professor, sofri perseguição. 

Por ser um professor “diferente”, descobri que, se o maior aliado de um professor é outro professor, o maior inimigo de um professor diferente” é outro professor. Uma professora da minha escola lançou um boato. Fez constar que eu havia posto duas crianças nuas, simulando o ato sexual, para explicar como nasciam os bebês. Tal e qual!

Alguns pais de alunos acreditaram que eu tivesse sido capaz desse hediondo ato. Foram ao meu encontro, para me matar. Escapei por um triz. E tudo se esclareceu num dramático encontro. Tomando consciência de que poderiam ter assassinado alguém inocente, os pais dos meus alunos queriam ir à casa da professora boateira, para a agredir. Opus-me a que fossem (apesar de desejar que ela apanhasse uma sova, confesso)

Nos idos de setenta, para que se prevenisse situações de calamidade, eu tinha chamado a atenção para o maior obstáculo à mudança educacional. Afirmara que o maior obstáculo era eu, ou cada um de nós. Se a cultura profissional dos professores não se alterasse, verões incendiários e fantasmas de novas guerras regressariam.

Quatro décadas decorridas, muitas teses publicadas, muitos cursos e congressos realizados, pouco ou mesmo nada se alterara na formação e na cultura pessoal e profissional dos professores. 

Na referida convenção universitária dos idos de vinte, um pesquisador apresentou uma comunicação subordinada ao tema “O pior inimigo dos bons professores são seus próprios colegas de classe”. Cito:

“O pior inimigo dos bons professores são seus próprios pares. São eles que colocam obstáculos, que criticam secretamente ou mesmo abertamente as iniciativas que querem empreender”.

Nos idos de vinte, por que haveria quem se surpreendesse com guerras e verões assassinos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXIII)

Montemor-o-Novo, 13 de julho de 2042

Calor sempre houvera e dias muito quentes, também. Mas, tudo levava a crer que a temperatura vinha aumentado de grau, ano após ano, embora houvesse quem negasse as evidências de alterações climáticas. E ainda mais quem dissesse que isso nada teria a ver com… Educação.

Num Verão dos mais quentes de que havia memória, fui até a um foro de seareiros, a um lugar onde parece que a planície se estende e prolonga, e de onde se leva saudades da beleza de um vale que se estende até Montemor. Aí, reencontrei o amigo Alfredo e conheci o Bernardo e a Raquel. Abalámos para a casa da Cristina e do Carlos, para preparar a “escola” do Benjamim e de todos os filhos dessa ínclita geração. 

A Cléo realçou a excelente coordenação desse encontro. O Bernardo a regera com mestria e… sociocracia. Septuagenário, finalmente, eu assistia a práticas sonhadas nos setenta do século passado. E via agregar-se a esse excelso grupo de mães e pais uma… professora. A Cristina foi acolhida fraternalmente, depois de passar anos de escola em escola, numa via-sacra profissional que desembocara na monitorização de desculpabilizações curriculares chamadas AEC. 

Parecia terem chegado os dias do fim do cerco. Pais e professores rompiam as amarras que os prendiam a uma escola sem sentido. Não seria capaz de vos descrever o que sentia nesses encontros, a não ser através de metáforas. Por essa altura e mais uma vez, Portugal ardia. Florestas e casas eram devoradas por chamas feitas de incúria. Poderia recorrer a metáforas como a do “corta-fogo”, mas voltarei às cartas que escrevi para vós, netos queridos, descrevendo mães, pais e professores como… pelicanos. 

“Nesta carta vos darei notícias do fim do cerco, notícias calmas. Não as de uma esperada agonia, pois o canto de milhares de pássaros atravessou o cerco e se fez ouvir. 

Ainda que algumas aves do desperdício esboçassem derradeiros intentos predadores, as gaivotas recuperavam ânimo na contemplação do pôr-do-sol, sempre diferente, belo e gratuito, cada noite anunciando dias mais claros e céus mais azuis. Nada logravam as vozes de aves agoirentas contra a limpidez do canto de solidárias aves. Malévolas investidas de aferrolhar crianças em salas de aula eram repelidas pela tranquilizadora quietude dos pelicanos. 

Meditarás, querida Alice, sobre o facto de este teu avô atribuir humanos nomes a ornitológicos seres. É porque não me sobra engenho para reinventar a adulterada linguagem dos homens (um pássaro perfeito, que para sempre se perdeu nos desertos de África, escreveu que a linguagem dos homens passou a ser fonte de mal-entendidos). Nem conseguiria lograr alcançar a compreensão de ocultos saberes, para que pudesse atribuir o exato nome à exata essência.

A heráldica representa o pelicano de pé, asas abertas, abrindo o peito com o bico, dele escorrendo gotas de sangue com que sustentam os filhos. É verdade que algumas espécies chegam mesmo a deixar-se devorar pelas suas crias. Morrem para dar vida. O pelicano punha em risco a sua vida, se preciso fosse, para que os filhos de todos os pássaros não ficassem órfãos de ternura. 

Quanta bondade cabia nas asas de um pelicano! Absorvido pelo cuidar dos outros, cegamente, confiava que a bondade habitava todas as almas. . Observava as aves do céu, que não saqueavam, nem ajuntavam alimento em celeiros. Não intuía fraquezas, dissimulação, ou maldade nos gestos de outros pássaros 

O pelicano não era um usurpador de ninhos, nem abdicava da sua estranha fé. Uma fé que lhe dizia não existir amor verdadeiro sem desprendimento e confiança.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXII)

Lavre, 12 de julho de 2042

No tempo em que o vosso avô procurava um lugar para se retirar de afazeres e descansar de um sem-fim de viagens, dois poisos se afiguravam passíveis de escolha. Um deles situado no litoral, outro no interior. Quem dera que essa dicotomia não existisse! Não seria fácil optar, pois viria a ser um cais em que o trem da chegada não voltaria a ser trem de partida.

Nessas terminais andanças, revisitei o meu amigo Alfredo, na sua casa do Freixo do Meio. Naquela manhã do julho de há vinte anos, o Alexandre filmou o Alfredo derramando sabedoria, num depoimento sobre um Agostinho… que andava por ali.

O Alfredo se dizia epicurista e o seu humanismo passava, efetivamente, pela busca da felicidade. Uma felicidade alcançada numa vida modelada pelo autoconhecimento, pela amizade, pela prudência. Me acolheu como os alentejanos sabiam receber e mostrou-me lugares habitados por um silêncio entrecortado pelo canto dos pássaros. Fiquei com vontade de ficar, mas precisava voltar ao Brasil. 

Ao encontro de potenciais Saramagos e agostinianos educadores, ao longo de duas décadas, eu viajara o Brasil de lés-a-lés. Nese julho, pela derradeira vez, fui contemplar a Serra da Canastra e o mundo corpóreo de Eurípedes. A admiração por esse notável ser humano, que se mantinha no rol dos educadores desconhecidos, leva-me a voltar a falar dele. Espero que o assunto seja do vosso agrado.

Eurípedes preocupava-se com os desfavorecidos, cuidava dos abandonados. Essa atitude só poderia ter por resposta a contestação daqueles a quem interessava manter um sistema iníquo. Foram banidos da história oficial da educação todos os projetos que, como o seu, visavam libertar o povo de amarras neocolonialistas. O dogmatismo ideológico não consentia veleidades e a história da educação sempre foi feita de martírios silenciados. 

Esse extraordinário Mestre não tinhas condições financeiras para pagar salários e os seus professores eram voluntários da comunidade. Há mais de cem anos, não recorria a provas, exames ou classificações. Providenciou a derrubada de paredes e daquelas que são internas, promovendo debates semanais. 

Incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária, aprendiam a pensar e a questionar, como nos dizia a Corina: 

Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar. 

No seu colégio, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes das andanças de Celestin e de Elise Freinet. E os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. “Os alunos confeccionavam belos cenários” e toda a comunidade participava.

Eurípedes ansiava por uma escola gratuita, acessível a toda a comunidade, rompendo com a ideia de um aluno passivo diante do conhecimento e submisso a uma disciplina rígida. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo. E foi audaz, quando tentou coeducar. 

Onde já se vira moços e moças juntos? – questionavam clérigos e barões. 

A imprensa da época, controlada pelos poderosos, não deu tréguas ao seu intento, que somente viria a concretizar-se, três décadas decorridas, na gestão do Capanema. 

Já havia desencarnado, no fatídico 1918, em que a febre amarela ceifou milhares de vidas no triângulo mineiro. Restaram os seus discípulos. O seu aluno Tomás viria a ser professor de Roberto Crema. Como vedes, foi terreno fértil aquele que desbravou em Sacramento. Como vedes, temos motivos para sermos esperançosos. Eurípedes está por aí…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXI)

Foros de Vale Figueira, 11 de julho de 2042

Quando a primeira das pandemias deste século eclodiu, a morte de companheiros e amigos me fez invocar o desaparecimento de um dos maiores educadores brasileiros, vítima de uma pandemia do século XX conhecida como “Gripe Espanhola”. 

O sábio e inspirador Eurípedes desencarnaria em 1918, no auge do projeto que criara, no triângulo mineiro. O Colégio Allan Kardec era uma prática coerente com a letra de um decreto de então, que determinava “uma ampla reforma na educação mineira”, que concretizasse “uma educação integral numa escola ativa”. 

Em 2022, mais de um século decorrido sobre o desaparecimento de Eurípedes do mundo dos vivos, estes organizavam congressos sobre “educação integral numa escola ativa”, criavam empresas fornecedoras de “educação integral numa escola ativa”, universitários teorizavam a “educação integral numa escola ativa”. Todos os tratados sobre “educação integral numa escola ativa” estavam escritos. Só faltava praticar “educação integral numa escola ativa”.

Os debates do início do século XX, embora maquilhados de “inovação”, eram idênticos aos do início do século XIX. As influências da época em que Eurípedes habitou a Terra – a humanista, a realista-científica, a positivista, a escolanovista – ainda que com outra nomenclatura, mantinham-se atuais nos idos de vinte do nosso século.  

A perspectiva de uma educação integral, o desenvolvimento simultâneo de aspectos morais, intelectuais, físicos, espirituais, o respeito pelo pleno desenvolvimento da pessoa, a abolição de castigos e recompensas, a valorização da infância, outra formação de professores, tudo estava mais do que reteorizado e raramente praticado.

Se não, vede! Em 1904 (três anos antes da criação do Colégio de Eurípedes), o jornal A Gazeta assim comentava as reformas operadas na educação: 

A habilitação do professor vale mais que os pomposos programas oficiais, que atualmente fazem o orgulho dos docentes e a ignorância dos meninos. Que remédios sociais podem ser apresentados como mais eficazes e prontos para dar-se um enérgico combate ao analfabetismo no Brasil?” 

Eurípedes foi alcunhado de “elitista”, só porque recorria a “métodos dinâmicos de aprendizagem”. Os seus alunos praticavam observação e realizavam pesquisas. Abolira castigos e exames, instituindo um relacionamento baseado no diálogo, ao contrário “dos moldes pedagógicos” vigentes na época. Foi o Pestalozzi do Brasil, por acreditar que a Escola poderia ser agente transformador da sociedade.

Eurípedes mobilizava a comunidade, para que esta ajudasse as famílias das crianças mais carentes. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns.

Nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços de aprendizagem, da reorganização do trabalho escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu em mais de cem anos a proposta de uma nova construção social de aprendizagem. 

No ano em que desencarnou, o seu aluno Germano isto escreveu: 

Conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXX)

Herdade do Freixo do Meio, 10 de julho de 2042

A Lia regressara às suas mais remotas origens. E se surpreendera com a presença do seu avô no sonho realizado pelo amigo Alfredo. Na sua viagem a Portugal, voltaria a encontrar o espírito de Agostinho, não só em Barca d’Alva, mas em muitos lugares onde uma nova Educação emergia

Na manhã seguinte a uma longa e penosa viagem, encontrei a Lia e o seu companheiro (tentando fazer funcionar o seu drone) e à espera do Manuel dos Menires. Esses bons amigos decidiram atravessar o oceano para colher imagens e depoimentos de quem ousava inovar. Ajudei-os a preparar o périplo português e aproveitei para pôr em dia a leitura de escritos sobre o Mestre.

A desconcertante atitude de Agostinho perante a Vida levou um patrício da Lia (chamado Caetano Veloso) a escrever no seu livro ‘Verdade Tropical’: 

“Agostinho da Silva possuía um paradoxal sebastianismo de esquerda que nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano ou um modo de expressar a intuição de uma via independente, não ficava claro para mim.”

O Agostinho “desvendador” pôs claridade na “escuridão” de Caetano: 

“Eu creio mesmo que o homem possui as qualidades dos seus defeitos… É possível que destes resultem aquelas, por contraste ou evolução criadora. Pode ser que o Bem não seja mais do que o Mal superiormente degenerado. Não foi assim, por degenerescência eletiva, que o homem se destacou do orango?
Se admitirmos tal teoria, o que não nos repugna, temos de olhar os nossos defeitos com esta vaga e lusitana consideração devida às coisas ruins (…) Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total”. 

Acaso ainda haja na antiga Internet algum episódio das “Conversas Vadias”, valerá a pena revê-las. Já septuagenário, Agostinho acolhia o a pessoa do seu interlocutor (“o Outro” de Buber), provocava o diálogo, respondia mesmo sem pronunciar palavras. Ficaram célebres as suas explicações de não possuir cartão de contribuinte e sobre o acesso ao ensino dito superior. 

Agostinho era um verdadeiro franciscano. Nunca se interessou por bens materiais. Nunca recebeu pagamento pelas treze ‘Conversas Vadias’. Não confundia o verbo amar com o verbo ter. Escutemo-lo, de novo:

“O que penso ou escrevo hoje é do eu de hoje; o de amanhã é livre de, a partir de hoje, ter sua trajetória própria e sua meta particular. Mas, se quiserem pôr-me assinatura que notário reconheça, dirão que tenho a coerência do incoerente e a originalidade de não me importar nada com isso.

A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter”.

Para finalizar esta já longa cartinha, renovo a minha decisão dos idos de vinte e a minha crença de sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário. Quando o meu extraordinário ícone era questionado sobre os seus graus académicos, respondia ser “licenciado em liberdade e doutorado em raiva”. A sua visão de homem e de mundo era, numa palavra, a liberdade, “a liberdade de se ser, plenamente, aquilo que se é”.

Quando a Lia chegou, o Mestre estava entre nós, ajudando-nos a fazer de cada biblioteca e de cada praça lugares de aprender, ajudando-nos a refazer o mundo.

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXVIII)

Leiria, 7 de julho de 2042

Neste dia de há vinte anos, deixava Leiria, a caminho de terras nortenhas. Privava-me do extremoso saber cuidar da Professora Luzia e da companhia da minha amiga Andreia. Levava na bagagem uma boa surpresa, a de ter encontrado mais uma diretora de agrupamento de escolas, que desempenhava o seu cargo com dignidade. Ainda guardo uma mensagem que dela recebi, há uns vinte anos:

“Quero apenas dizer-lhe que estou muito grata pelo facto de o ter conhecido, pessoalmente, ontem, numa das minhas escolas. Tenho a esperança de podermos caminhar, juntos, na construção de uma escola mais humana e humanizada que se (pre)ocupa, efetivamente, com as pessoas (…) “Designer educacional, Aprendiz de utopias”. Como estas palavras fazem sentido para mim, que tive a oportunidade de aprender com as ciências da educação, aquando do mestrado e doutoramento que fiz na nossa universidade”.

Isso mesmo! Tal como eu, a Adélia era cientista da educação e se respeitava como tal. Nessa qualidade, agia em conformidade com aquilo que aprendera na Faculdade de Ciências da Educação. 

Quem nos dera que, nesse tempo, houvesse mais cientistas da educação como ela! Eram raros. A maior parte dos licenciados, mestres e doutores dessa área renunciavam a sê-lo, ajustavam-se ao “sistema”, pactuavam com inúteis inciativas de política educacional. 

E lá fui eu, em mais uma etapa de um longo périplo pelo mundo das escolas. A caminho de Gaia, refletia sobre a importância, ou a desimportância dos cientistas da educação. A Escola da Modernidade havia contribuído para a degradação moral, intelectual e socioambiental. E Gaia reagia….

Na mitologia grega, Gaia é o nome da deusa da Terra, companheira de Urano e mãe dos Titãs, a personificação do planeta Terra, que é representada como uma mulher gigantesca e poderosa. Em homenagem à deusa grega, a Teoria de Gaia (também conhecida como “Hipótese de Gaia”) descreve a Terra como um organismo vivo com capacidade para manter e alterar suas condições ambientais. 

Apesar dos desastres ambientais, a biosfera e os componentes físicos da Terra ainda permaneciam integrados, formando um complexo sistema, no qual as reações do planeta às ações humanas não eram mais do que respostas autorreguladoras desse imenso organismo vivo. 

Nesse conturbado tempo, sozinha, talvez Gaia não conseguisse resolver a delicada situação. Talvez tivesse que contar com uma ajudinha de humanos envolvidos na produção conjunta de conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente… em comunidade.

O Mestre Agostinho o tinha intuído. Se lhe afigurava como incontornável, mais do que apontar caminhos de redenção de um modelo educacional concebido aquando da revolução industrial, empreender o caminhar. Enquanto permaneceu em terras do sul, criticou as nefastas influências europeias e americanas, num Brasil que tardaria em afirmar o seu próprio universo cultural, muito por culpa dos seus eruditos intelectuais que iam importando modelos do estrangeiro, tanto na política como na academia. 

Questionou ideias de falso progresso, o triunfo de uma ciência pouco humanista. As escolas – dizia Agostinho – estavam completamente erradas, senão quanto ao presente, pelo menos no que haveria de ser feito pelo futuro. Eram escolas de ensinar, escolas de repetir, quando deveriam ser escolas de criar. 

Precisávamos de gerar conhecimento que gerasse vida. Que os sábios descessem aos infernos das escolas e que os professores, que nelas habitavam e sofriam, fossem ajudados a despertar de um longo sono em berço esplêndido.

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXVII)

Marinha Grande, 6 de julho de 2042

No julho de há vinte anos, andei por terras de Leiria e Marinha Grande, na companhia da minha amiga Andreia e de mães que sabiam qual a educação que mais convinha aos seus filhos e que a reivindicavam. Estávamos entrando num novo capítulo de saga da mudança e inovação. Instalava-se o diálogo onde, antes, apenas havia imposições.

Nesse julho de há vinte anos, eu concluía um longo périplo por escolas portuguesas, sentindo que, finalmente, algo de novo aconteceria. A Lia (neta de Agostinho da Silva) e o Alessandro viajaram para Portugal, para recolher imagens e depoimentos daqueles educadores que ousavam pôr em prática o legado do Mestre. 

Dispúnhamos de produção científica e de práticas que provavam a possibilidade de uma escola que a todos acolhesse e a todos desse condições de realização pessoal e social, base da construção de uma sociedade solidária, justa e sustentável. O tempo da educação talvez tivesse chegado. Tínhamos tudo aquilo que era necessário: gente, projetos, esperança. 

Eram decorridas seis décadas sobre a data em que Agostinho da Silva se encontrara com Darcy, em Brasília, para desenhar futuros. Ambos habitavam uma eternidade onde os imortais descansam de um intenso labor terreno. Decorrera meio século sobre o regresso de Agostinho à pátria europeia. E os sonhos que semeara se consumavam.

No início deste século, fiz a viagem inversa. Foi ao encontro do espírito, que habitava uma Faculdade de Letras idealizada com Darcy. Colaborei com a Cátedra Agostinho da Silva, segui os passos do Mestre, ora sentado debaixo da mangueira onde ele escrevia poesia, ora conversando com quem ele conviveu. Andei por lugares por onde a sua peregrinação pelo Brasil da educação o levou, acompanhando das suas sábias palavras, através das quais demonstrava que, mais importante do que educar, seria evitar que os seres humanos se deseduquem, pois “cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta”.

Agostinho sofreu as consequências da sua desobediência, melhor dizendo, da coerência, como atesta o seu credo pedagógico: 

“A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter”

O Mestre acreditava sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário e que poderíamos transformar o mundo. Em vão pugnou por transformá-lo, por encontrar tratamento dos males da educação. Partira de Brasília, quando a pátria mãe andava distraída em tenebrosas transações e a ditadura levara Darcy ao exílio. Quis trocar o lema “ordem e progresso por liberdade e desenvolvimento”, mas não resistiu à visão de uma Universidade invadida a mando de tiranos. 

Meio século decorrido sobre a sua despedida do Brasil, a educação da sua segunda pátria (ou seria a sua “mátria”?) continuava à deriva, perdida entre modas e reformas. Quem a poderia transformar não dispunha de poder e quem tinha poder não a transformava. Até que extraordinárias mulheres e mães fizeram com os professores e a sociedade despertassem de uma longa letargia.

O Mestre sabia que escolas são pessoas, comunidades feitas de pessoas, que aprendiam umas com as outras. E essas mães sabiam que o futuro anunciado por Agostinho era o tempo de preparar a nova educação dos seus filhos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXIX)

Devesas, 9 de julho de 2042

Hoje, ninguém imagina o que era a vida ´de nómada do vosso avô. Dormindo em cama diferente, quase todas as noites, gastando muitas horas em viagens, ficando sem saber como chegar a certos destinos… Foi o que aconteceu neste dia de julho de há vinte anos.

Estava no norte de Portugal, participando num congresso. No final, quando os companheiros de jornada foram almoçar, eu fiquei sem almoço, pois precisava de ir para sul no trem do início da tarde. Quando os participantes no congresso foram fazer um belo passeio de barco, eu fui para uma estação, passar cinco horas de espera pelo último trem do dia, porque perdera aquele em que precisava viajar.

Durante o congresso, escutei discursos em tudo idênticos aos de vinte anos atrás. Apontava-se a necessidade de “sair da sala de aula”, de “sair da caixa” (sic) e a docência em sala de aula se perenizava. 

Apesar dos pesares, não lamentei penas e danos. Muito aprendi naquele congresso. E recuperei a confiança perdida. Durante os vinte anos de minha diáspora, uma nova geração de empreendedores sociais surgira. Escutei intervenções de empresários e educadores, criticando: “Não pode continuar sendo o professor a falar e os alunos a ouvir”. Escutei dizer que “aprendemos em rede, numa escola da aprendizagem”.

Alguns dias após esse congresso, voltei à mátria brasileira. Na bagagem levava renovada esperança nas possibilidades de redenção de pecados velhos. Talvez o novo ministro conseguisse ultrapassar dificuldades colocadas pelo monstro burocrático a que presidia. 

Isso disse a um cético funcionário do ministério. “Oremos!” – foi o seu comentário – “Não vês o que se passa? Por que temos guerra na Ucrânia?”

O funcionário estava coberto de razão. Desde há mais de um século, o instrucionismo agonizava. As práticas fundamentadas no paradigma da aprendizagem eram escassas e, quase todas, caricaturais. A síntese dos dois paradigmas acrescentada de contribuições do paradigma da comunicação ainda demoraria muitos anos a chegar. Enquanto não chegou, novas ucrânias e extremismos como a xenofobia se consolidaram, a barbárie se instalou. Como dissera a Mónica, “quando o Homem para de se questionar, a humanidade para de evoluir”.

Pitágoras dissera que, educando as crianças, não seria preciso castigar os homens. Mas, na década de vinte, ainda havia quem propusesse diminuição da idade dos potenciais prisioneiros. Talvez essa proposta se baseasse no pressuposto de que os criminosos já nasciam criminosos, que o criminoso não era uma construção social. Muitos jovens se transformavam em “marginais” quando lhes eram negadas oportunidades numa sociedade desigual e injusta, ou quando tomavam consciência de terem sido roubados desde o momento em que se nasceram. 

Apesar da escola, a década de trinta viu despontar uma nova educação. Associações de moradores e de pais, líderes locais, representantes do poder público de comunidades já não eram considerados objetos de intervenção, ou convidados a ir à escola. assumiam-se como sujeitos, autores de mudança. Já não se levaria a comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade, pois a escola era um nodo de uma rede, de uma comunidade. e havia efetiva aprendizagem ao longo da vida e transformação social, traduzida na melhoria das condições da qualidade de vida dos cidadãos.

Como vedes, a esperança com que eu ficara, no final do congresso de Gaia, se justificava. Octogenário, eu já não conseguia acompanhar a evolução dos projetos. Mas sentia que tinha valido a pena cirandar pelo mundo e perder o trem do início da tarde.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXVI)

Meda, 5 de julho de 2042

Como vos disse na cartinha de ontem, nesta trocarei o azedume do Jorge por algo mais leve. Contar-vos-ei uma estória dos primórdios do “Reino da Estupidez”.  

Após a morte do Marquês de Pombal, os inquisidores retomaram perseguições e foram além dos autos de fé – o Santo Ofício proibia, ou confiscava “livros proibidos”. No ano de 1779, foi dura a perseguição feita a dez estudantes. Ameaçados, amedrontados, dois deles denunciaram um companheiro autor de um dos livros proibidos. 

Nesse tempo, os estudantes brasileiros estavam mais fragilizados que outros, por não terem, em Portugal, parentes que os protegessem. Um desses estudantes, de nome Francisco, escreveu um poema que ridicularizava o Reitor da Universidade de Coimbra. O poema intitulava-se “Reino da Estupidez” e era uma manifestação de vingança do estudante de medicina por tudo o que, já antes, sofrera nos cárceres da Inquisição. 

Os versos desse poema compunham um quadro pitoresco e sarcástico. E, já no seu prólogo era uma sátira demolidora de um tipo de educação que “se prolongava além do seu tempo”:

“Vai, Poema! Corre as mãos de todos que compõem a Universidade. Diz que o fruto que daqui levam os Legistas é a pedanteria, a vaidade. A reforma trouxe à Universidade alguns mestres dignos de tal nome [mas] reina aqui a Estupidez. 

Segue-se o poema:

“Nesta corte, anos há, se tem fundado uma coisa chamada Academia;

Mas isto, quanto a mim, sem diferença, é um corpo sem alma, 

Que não pode produzir ação própria, ou um fantasma,

Que em bem poucos minutos se dissipa”.

E, então, começa a crítica de uma Universidade que, “solenemente, acolhe a Estupidez”:

“De que podem servir estes estudos, que mais da moda se cultivam hoje?

Sabeis para que presta, neste mundo? Diga-o a Inquisição e mais não digo.

Difíceis de reter são as Ciências, que vieram trazer os Estrangeiros”.

O Francisco referia-se aos “estrangeirados, como Luís António Verney, que, em 1815, viria a propor “uma escola para as mulheres”, que completasse a universidade criada por Dom Dinis (só para homens!), em 1290. 

Em vão o Luís porfiou. Nos idos de sessenta do vigésimo século, as mulheres professoras do “Reino da Estupidez” ainda precisavam de pedir “autorização superior”, para casar-se, provando terem os candidatos a maridos posses suficientes para as sustentar.

Em pleno século XX, numa Assembleia Nacional constituída por uma maioria de professores universitários, assim se discursava:

Nós temos uma doutrina e somos uma força, disse Salazar (…) em Estados fortes, autoritários, sei que a Maçonaria foi exterminada pelo Estado fascista, que a declarou incompatível com a sua própria existência”.

E uma lei foi publicada, obrigando os candidatos a professor a assinar a Lei Cabral (o deputado José Cabral era o diretor-geral dos serviços prisionais), declaração, por escrito, de que não participavam em “organizações secretas, subversivas”. 

Agostinho da Silva recusou assinar tal declaração. Demitido por Salazar, foi para o Brasil, fundar universidades, que eram “uma espécie de jardim de infância dos velhos”, alicerçadas na fraternidade, “sobre uma ideia de esforço comum, para atingir uma verdade que não é já uma verdade puramente intelectual, mas uma verdade também de sentimentos, uma verdade de unidade entre os homens”.

Nos idos de vinte do nosso século, a universidade era bem diferente da de antanho. Embora tivesse perdido o monopólio do saber e apenas conservasse o monopólio dos diplomas, já era unissexo e se ornava de novíssimos diplomas, de robôs e de computadores de última geração.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXV)

Vila Franca das Naves, 4 de julho de 2042

Vai para vinte anos, andei por terras do demo e outras do interior beirão, visitando velhos amigos, coabitando com famílias de professores. E passei pelo Tortozendo, para agradecer desvelos da Dona Conceição. Quando a visitei no lar de idosos, esse derradeiro encontro foi feito de lágrimas de dor pela perda recente do marido e do filho Alexandre. Tinha contraído Covid, e a vidraça protetora que nos separava impediu que a abraçasse e beijasse as mãos que milhares de mantas conseguiu remendar. 

Do Tortozendo abalei dali para Trancoso, não o da Bahia, mas o da Beira Alta. Numa das freguesias desse concelho, a simplicidade e a hospitalidade da família da Anabela e do José Augusto me cativou. A gentileza e a inteligência prática dessa família me fez recordar outra família de operários têxteis, que me deu guarida numa humilde casa dos Pinhos Mansos. Na década de sessenta, a nonagenária Conceição e o Leovegildo, operário têxtil e seu companheiro de uma vida, me acolheram, me protegeram de esbirros da ditadura e me propiciaram oportunidades de formação política. Às gentes desse lugar sou devedor do primeiro despertar da consciência de que o Portugal de Salazar era um “Reino da Estupidez”. 

Numa tarde de domingo, fui conversar com professores e tentar conversar com um fugidio diretor de agrupamento. O homem sentou-se na última fila do auditório e, antes que terminasse o encontro, se escapuliu. Conversa vai, conversa vem, me lembrei de que nascera nas naves daquela vila franca um dos maiores cantautores do meu país. E de que, à semelhança de outros genais compositores de música popular (muitos deles exilados e perseguidos pela polícia política da Ditadura), Fausto fora maltratado, no Reino da Estupidez.

Filho de professora primária, licenciou-se em Ciências Políticas e Sociais e, ainda estudante, passou a acompanhar José Afonso e outros “Cantores de Abril”. Foi compositor e intérprete de um dos discos mais representativos desse movimento cultural e político: “Por Este Rio Acima”. Se dispuserdes de um tempinho, escutai-o. Vale a pena! 

Talvez acheis estranho que eu tivesse escrito a expressão “No Reino da Estupidez”. Ela foi usada por um dos poetas de voluntário exílio e tem origem remota num acontecimento datado do século XVIII. Por agora, vos falarei de Jorge de Sena. Amanhã, de Francisco Franco.

Como Agostinho, Saramago e outros denunciantes da mediocridade, foi sina de Jorge de Sena percorrer caminhos de um voluntário exílio. Na América, com elegância, humor e acutilância, compôs o poema “A Portugal”. Aqui vos deixo alguns dos seus versos:

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.

Nem é ditosa, porque o não merece.

Nem minha amada, porque é só madrasta.

Nem pátria minha, porque eu não mereço

A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta.

Amigos meus mais caros tenho nela,

saudosamente nela, mas amigos são

por serem meus amigos, e mais nada.

irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza,

de mesquinhez, de fátua ignorância;

terra de heróis a peso de ouro e sangue.

Ó, terra de ninguém,

Eu te pertenço, mas seres minha, não.

Era esse o retrato cáustico do país onde nasci, esboçado pelo Jorge poeta, nos anos cinquenta, no tempo em que nasci. Nos idos de vinte, já liberta e democratizada, a minha pátria ainda conservava o ranço de quarenta e oito anos de estúpida governação. O “Reino da Estupidez” se revelava vivo e presente no discurso e nos atos de lideranças tóxicas.  

Peço que perdoeis o tom amargo desta cartinha. Amanhã, vos compensarei com algo menos sombrio, mais divertido.

 

Por: José Pacheco

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