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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXVI)

São José, 15 de agosto de 2042

Perguntastes o que me levou a trocar a engenharia pela educação. Vezes sem conta escutei essa pergunta e respondi aligeiradamente, de um modo que convosco não usarei. 

Uma vida de professor de escola pública me mostrou que fiz a escolha certa, ainda que tivesse de passar por três crises. Da primeira vos falarei nesta cartinha.

O modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Portanto, a minha vida profissional denotou o que me tinham ensinado: a “dar aula”. E a dava muito bem, segundo os entendidos. Inspetores recomendavam a estagiários que fossem observar as minhas aulas. “Dava aula” magistral e vaidosamente. Planificava-as ao pormenor, lhes juntava bons materiais e “truques motivacionais”. Porém, todos os anos, havia quem não aprendesse.

Nesse tempo, havia exame ano a ano e alguns alunos reprovavam, ficavam “retidos” (eufemismo adotado mais tarde). A lei me dizia que todos os cidadãos tinham direito à educação, mas eu os privava desse direito. Sobreveio a primeira crise, uma crise moral a partir do momento em uma profunda revisão de vida me fez concluir que, se eu trabalhava em sala de aula e eles não aprendiam, eles não aprendiam porque eu trabalhava… em sala de aula.

A primeira das crises desembocou num dilema: ou substituía o trabalho em sala de aula por outro modo de ensinar, ou daria o fora da profissão de professor. Acabei por ficar, por ter recebido ajuda da Montessori, do Dewey, da Irene, do Freinet, da Elise, do Steiner, do Dottrens, da Louise, do Bento, do Decroly e mais um punhado de amigos escolanovistas, entretanto, já falecidos.

Feita a transição entre práticas do paradigma da instrução para práticas fundadas no paradigma da aprendizagem, a crise se dissipou. Entre os Ficheiros Autocorretivos e a Correspondência Escolar, entre o “Método Natural de Leitura” e a Assembleia de Alunos, entre a “Imprensa Freinet” e o “Método das 28 palavras”, a Escola da Ponte surgiu.

A “Aula Passeio” me mostrava que aula sempre iria haver, porque, quando o discípulo estivesse pronto, o mestre apareceria. Mais tarde, chamaríamos a isso “Preciso de Ajuda” e “Posso Ajudar”. Tudo aconteceu como tentativa de cumprir a lei (princípios morais) e, sobretudo, de respeitar a criança, que aluno não é cobaia de laboratório.

Creio que, de algum modo, cheguei a cair em excessos neo-behavioristas, mas que fazer, se eu permanecia sozinho e a voos mais altos não poderia aspirar? O que fiz em setenta e seis foi aquilo que, ainda sozinho, poderia fazer.

Há vinte anos, fui a Portugal. Um decreto criava condições de concretização de projetos inspirados na Ponte. Com surpresa me apercebi que a quase totalidade das escolas ainda tinha salas de aula, turmas e outros dispositivos instrucionistas. Com profundo desgosto, assisti a uma paliativa deturpação da proposta veiculada pelo normativo. As escolas mantinham-se atrasadas mais de um século em relação à proposta escolanovista. 

No meu país, fui ao encontro de lugares onde despontavam projetos de mudança, alguns deles com elevado potencial inovador. E decidi enviar e-mail ao ministro da educação. Nele lhe dizia da minha disponibilidade para ajudar a superar um século de inúteis reformas. Acreditava na boa-fé do ministro, quando dizia:

“O que me motiva para estar aqui é o combate às desigualdades através da educação. Não podemos desistir.” 

E citava a sua referência maior, Baden Powell:

“Para deixar o mundo um pouco melhor do que encontramos, não há ensino que se compare ao exemplo”.

Propus ao ministro escuteiro que déssemos exemplo de fraterna cooperação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXV)

Itapera, 14 de agosto de 2042

Lá pelos idos de vinte contava-se uma bem conhecida anedota, a que eu não achava graça alguma. Para além de bem conhecida, essa anedota era lesiva da imagem do profissional de desenvolvimento humano a que se dava o nome de… professor. Colocava-se a possibilidade de fazer viajar no tempo (ou de ressuscitar) um médico cirurgião e um professor, que tivessem vivido nos primórdios do século XIX. Dizia-nos a anedota que, recolocados médico e professor nos seus locais de trabalho, o primeiro morreria de susto perante a sofisticação dos recursos disponíveis no bloco operatório onde aportasse. Por seu turno, o professor retomaria a aula interrompida há duzentos anos, mandando abrir a cartilha na página oitenta e três.

Tratava-se de uma anedota, bem sabíamos. Também sabíamos que os avanços da Medicina, enquanto ciência, tinham introduzido na prática médica profundas transformações, tornando obsoletos conhecimentos e práticas de há dois séculos. O que distinguiria as escolas do século XIX das escolas do século XXI? A sofisticação do discurso, o aparato tecnocrático e a mercantilização da escola pública.

O modelo engendrado no século XIX mantinha-se inalterado: classes, turmas, aulas, lições, tempos de padrão uniforme, currículos segmentados, estanques, inadequados. Mais computador, menos manual, mais “data show” menos pau de giz, em pleno século XXI, a Escola mantinha-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Foi o que encontrei, quando troquei a engenharia pela profissão de professor.

O vosso pai nasceu no mesmo mês – no outubro de 76 – em que fui ser professor na Ponte. A preocupação que sentia nessa altura era da mesma natureza daquela que senti quando nascestes. Quais os caminhos a percorrer, netos queridos, para que pudésseis ser seres humanos felizes?

Escolhi o caminho de não escolher caminhos. Seríeis vós quem percorreria caminhos por inventar. Impedi-me de determinar, do alto dos meus cabelos brancos, os vossos desejos e necessidades. A primeira das regras era a de não tentar ensinar aos netos aquilo que se pensava que eles precisariam saber. A segunda, procurar aprender o que eles eram e o que pensavam, para além do que pensávamos que eles deveriam pensar. Os tempos eram outros e só os avós com certezas absolutas ainda não o tinham entendido.

A preocupação inicial se foi esvaindo à medida que crescíeis. Perdurava apenas um receio, o de que pudésseis fazer perguntas que não tivessem resposta. Não porque me preocupasse que pudésseis considerar-me ignorante – até seria útil que ele se apercebesse de que os avós de desse tempo, contrariamente aos antigos, não eram guardiães de todas as respostas – mas porque não seria capaz de responder a perguntas sem explicação. 

Se me perguntásseis por que o céu era de cor azul, eu não vos daria a resposta. Saberia perguntar: “Por que será?” E saberia indicar-vos caminhos para que a encontrásseis. Porém, havia uma pergunta carente de uma explicação lógica: Por que razão a Escola do século XXI se mantinha idêntica à do século XIX?

Que poderia fazer, a não ser confessar a minha ignorância? Não saberia que resposta dar. Aliás, ninguém sabia. 

O que pensaríeis de pessoas que não sabiam explicar por que faziam aquilo que faziam? E, quando essas pessoas eram professores, eu temia o que pudésseis pensar e sentir. 

Mandava a verdade que acrescentasse haver professores não-contemplados na anedota de mau gosto.  Falei-vos da vida maravilhosa da Irene Lisboa e dei-vos a conhecer professores não-acomodados. Isso bastou para vos tranquilizar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXIV)

Itaipuaçu, 13 de agosto de 2042

No tempo em que tive ofício de aluno, quando não entendia a razão de estudar determinado assunto ou de decorar uma qualquer matéria, o professor dizia-me que, um dia, eu iria a entender o motivo: 

“Aprende, menino! Irás precisar. Um dia, irás precisar.”

O professor Vasconcelos obrigava-me a enquistar os malditos problemas das torneiras que enchiam e esvaziavam tanques, a recitar de cor os afluentes do Rio Zambeze, a decorar o que se sabia ser seguro sair no exame. Eu decorava sem entender, porque “era assim que tinha que ser”, e que “iria perceber porquê, um dia, no futuro”. 

Mais de oitenta anos decorridos, posso afirmar que ter decorado o sistema galaico-duriense não fez de mim uma pessoa mais sábia. Ter encasquetado na memória de curto prazo as preposições simples não fez de mim uma pessoa mais feliz. 

Amontoei muita tralha do espírito, a que costumam chamar currículo. Impingiram-me um sem número de conjunções e mandaram-me dividir orações, que consistia numa espécie de jogo de “roleta russa”, pois havia uma possibilidade em dez de eu acertar. Para compreender a divisão de orações, foi preciso desaprender, esquecer as conjunções impingidas. Foi preciso redescobri-las, dar-lhes sentido, para que não confundisse um “que” relativo com um “que” integrante. 

Até meados de vinte, a escola dita tradicional atafulhou a nossa memória com inutilidades. E, porque o tempo de escola não dava para dar aula de tudo, não ensinaram a minha geração a questionar. 

Só muito mais tarde, quando já havia abandonado a escola, houve tempo suficiente para poder apaixonar-me pela leitura e se me tornou fácil analisar orações. Sozinho, ou melhor, no diálogo com os autores, que comecei a amar, captei o ritmo da frase, aprendi a localização da vírgula, o significado do ponto final.

Extintas as certezas que me tolhiam, deixei de dividir orações – passei a partilhá-las – porque o que me atraía à leitura de um texto e me permitia a compreensão do conteúdo já não era uma certeza fundamentalista, mas uma interrogação criadora, já não era a dissecação da frase, mas a sua fruição. 

Foram milhares as vezes que eu perguntei a professores se sabiam fazer raíz quadrada. Eram raríssimos aqueles que a sabiam fazer. Foram-lhes dadas muitas aulas sobre raiz quadrada e “provaram” em testes que tinham aprendido a fazê-la… Não tinham aprendido. 

Eu questionava:

“Quantas vezes precisastes de utilizar a raíz quadrada nas vossas vidas?”

Ninguém precisara. E eu rematava com a pergunta:

“Então, por que razão a raíz quadrada e mais algumas centenas de noções de dúbia utilização fazem parte do currículo prescrito e pronto a vestir?” 

Se, em alguma circunstância, de alguma delas eu precisasse, apenas teria de saber procurá-las, de aprender a pesquisar, de aprender a aprender. No desenvolvimento do currículo da subjetividade, concretizaria sonhos, desejos. No de comunidade, partiria de necessidades e problemas do território de contexto, promovendo a integração comunitária da escola e um desenvolvimento local sustentável. No desenvolvimento do currículo universal (ou de consciência planetária), adquiriria as chamadas “aprendizagens essenciais”.

Quando uma nova construção social de aprendizagem começou a tomar forma, 

os tutores aprenderam a desenvolver currículo do mesmo modo como agiriam com os seus aprendizes. Expandiam o currículo da subjetividade, articulando-o com o da comunidade. Na partilha de conhecimento, em equipe, culturalmente se reelaborando, tendiam para o pleno desenvolvimento pessoal e social do ser humano.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXIII)

São José do Imbassaí, 12 de agosto de 2042

Netos queridos, vejo com agrado que ledes atentamente as cartinhas que este velho professor vos envia. A pergunta que o Marcos fez é disso prova:

“Avô, o que aconteceu, nos idos de vinte, de que tanto falas, que modificou a educação brasileira e o destino do Brasil?”

Começarei por vos dizer que, há exatos vinte anos, um acontecimento relevante marcou o início de uma mudança de rumo. Uma universidade publicou uma “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”. Nela se lia: 

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável (…) Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.”

Nos meses seguintes, essa “consciência cívica” seria restaurada, se revelaria essencial nas mudanças operadas nos anos seguintes, sobretudo, através da Educação. 

Que o Brasil não era para amadores já nós o sabíamos. Nem a Educação o era.

Para estrangeiros, como eu, era maior o desafio. Tentava libertar-me de resquícios de etnocentrismo e do sarro de europeias arrogâncias. Mas os brasileiros poderiam contar com os estrangeiros quase brasileiros, para a reconstrução nacional. Em breve, teríamos uma educação do futuro feita presente. O Brasil beneficiaria de educação nova, num país novo. 

Se, no outubro seguinte, Darcy faria cem anos, decidimos praticar Darcy. A criatividade do caldo cultural migratório se revelava sem resquícios de neocolonialismo. Os filhos dos filhos dos seus filhos tinham aprendido as lições da história. Descendentes de italianos, alemães, japoneses, árabes, judeus, de orientais e ocidentais povos (e, também, portugueses) aprendiam com os povos originários a reinventar o “povo brasileiro” do Darcy. Acolhiam nas comunidades indígenas ensinamentos de humanizar o ato de ensinar e aprender. 

Aprendiam com os afrodescendentes ser precisa uma tribo para educar uma criança. E com abrasileirados zulus e xhosas adotavam o reconciliador ubuntu. Na favela, onde viviam setenta e cinco por cento dos estudantes brasileiros, se deixavam contagiar pela solidariedade ativa, o sentido de comunidade, que haveria de dispensar milícias e narcotráfico.

Nesse agosto, estava voltando ao meu Brasil, após um ano de ativa permanência no meu país. Por lá, também sopravam ventos de mudança. Finalmente, Portugal seguiria o seu destino, o de desembarcar em… Portugal.

Por falar em destino… certo dia, estava eu descascando ervilhas, flutuando por instantes acima das inefáveis consumições do dia-a-dia e eis que troco as bacias: a casca foi para a bacia das vitualhas destinadas à panela, e as ervilhas para o saco do lixo.

Despertei da búdica meditação ao som das estridentes gargalhadas do meu filho, que vinha acompanhando a função e observou o erro de manobra. Comentei: 

“Que engraçado! Enganei-me no destino!” – profunda reflexão de que não me apercebera, não fora o meu filho gargalhar mais uma vez. 

“Por que te ris, André?”

“Porque disseste que te enganaste no destino.”

E não é que o maroto tinha razão? Intuíra o significado da expressão muito para além do comezinho engano do destino da ervilha. 

O mesmo parecia estar a acontecer no Brasil de há vinte anos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXII)

Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2042

Nos idos de vinte, a corrupção moral e intelectual engendrava absurdos. No “novo normal”, uma professora comentou que a Malu era “demasiado criativa” e que sofria de “alegria excessiva”. Uma secretaria de educação reduziu os intervalos de 20 para 15 minutos. E um agrupamento de escolas passou de trimestre para… semestre – o “sistema de ensino” sofria os efeitos da Síndrome de Peter Pan e do Complexo de Wendy, 

O psicólogo Dan Kiley dedicara-se ao estudo dessa doença, de um certo tipo de trauma comprometedor do desenvolvimento e da maturidade emocional. Caracterizava-se por um conjunto de comportamentos da parte de quem recusava deixar de ser criança. Tendo renunciado à criança grande, que todos poderiam conservar em si, os pacientes viviam como imaturos infantes.

Era uma imaturidade de natureza psicológica, social, sexual, associada a comportamentos narcisistas, de dependência e de irresponsabilidade. Postos perante um qualquer problema, colocavam a culpa em outrem. 

O complexo de Wendy poderia ser identificado em mulheres que manifestavam uma preocupação excessiva pelo bem-estar de alguém, acompanhada de sentimentos de medo de rejeição. Eram pessoas super-protetoras, figuras maternais geradoras de imaturidade masculina: a Síndrome de Peter Pan.

Estas e outras síndromes se manifestavam na crítica de um “sistema” que oscilava entre fantasiosas “alternativas” e extasiantes (mas, também, anestesiantes) discursos.

Nos idos de vinte, alguém se lembrou de futurizar, num artigo com o título “Um mundo sem Escola”:

“O António olha para o calendário familiar eletrónico no plasma da cozinha: 7 de fevereiro de 2053. A agenda digital com o seu programa semanal indica que, nessa manhã, tem ginástica e badmington. A mãe está na sala de reuniões do armazém coworking. E o pai, a teletrabalhar. 

Depois de décadas de reflexão, os governos mundiais foram concluindo que a Escola já não servia. O número de professores era cada vez menor, o desinteresse e a indisciplina atingiam níveis impressionantes.

Em 2037, a Finlândia decretou o encerramento das escolas. Em junho de 2040, terminou a atividade da última escola no nosso país. Os primeiros anos da década de 40 foram de muita incerteza, porque as alternativas eram difíceis de pôr em prática.

Todos os dias, às 22h, os aparelhos informáticos se desligavam automaticamente.”

O texto se alongava, num misto das descrições de Chaplin e de Orwell. Entretanto, de uma amiga recebi um artigo de que transcrevo alguns excertos:

“As escolas precisam ser reconhecidas como espaços de produção de conhecimento. O projeto de cada escola é definido coletivamente. Estudantes, professores e comunidades formam-se colaborativamente no enfrentamento dos problemas reais, criando inovações.

A pandemia pode ser um vetor para a transformação, na medida em que a longa suspensão da estrutura da educação escolar – sua forma de organizar os tempos, espaços, relações – promoveu experiências novas e aprendizagens significativas sobre o uso pedagógico das novas tecnologias, aproximou equipes escolares das famílias.”

Aprendizagens significativas? Nesse tempo, nem os projetos eram definidos coletivamente, nem se trabalhava colaborativamente, embora algumas exceções confirmassem a regra. Apenas havia notícia de iniciativas paliativas confundidas com “inovação”, que não afetaram o “normal funcionamento das escolas”. Passada a crise, todo mundo voltou para a “estrutura da educação escolar”. 

Experiências novas? Onde teria a minha amiga visto isso?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXI)

Aeroporto da Portela de Sacavém, 10 de agosto de 2042

Há exatos vinte anos, mais uma vez, rumei ao Sul. A leitura de bordo seria a releitura do primeiro livro do meu amigo António, que abria com uma citação de Ghandi:

“Se nos pudéssemos mudar, as tendências do mundo mudariam. Quando um homem muda a sua própria natureza, a atitude do mundo muda para ele. Este é o mistério divino supremo. Uma coisa maravilhosa e a fonte da nossa felicidade. Não precisamos esperar para ver o que os outros fazem.” 

Nos meses seguintes, auspiciosas notícias mitigaram a saudade que de vós senti. Deixara em Portugal promissores projetos e fraternos convites para “quem sabe e faz a hora, não espera acontecer”. Ghandi não esperou. E, por essa altura, o meu amigo Carlos Neto afirmava que, se o mundo mudara, a Escola teria de mudar:

“Provavelmente, teremos de fazer a construção de um novo paradigma do que é o funcionamento, a organização da escola, através de um pacto de sustentabilidade entre a instituição escolar, a família e a comunidade. 

Para tal, há que trabalhar em conjunto, no sentido de se alcançar uma nova forma de compreender o funcionamento da escola, a maneira como é entendida a aprendizagem dos jovens.”

As palavras do amigo Carlos coincidiam com aquilo que, muito anos antes dos dos arautos teóricos do paradigma da comunicação, com outros educadores, o vosso avô ajudara a construir. Isto é: os alicerces de uma nova construção social de aprendizagem. 

O amigo Carlos concluía:

“Hoje, a escola só está preocupada com a escolarização – médias, testes – para os alunos entrarem na universidade. Enquanto não mudarmos esta visão não é possível termos uma escola virada para o futuro, que é incerto, imprevisível. É necessária uma escola em que se aprendam coisas fundamentais. Temos de reinventar a Escola.”

Estávamos em dois mil e vinte e dois, cansados de ouvir falar de uma “educação do futuro”, quando já seria necessário ir além da proposta escolanovista. Nesse tempo, quase todos os professores “davam aula”, centrando neles o processo de ensinagem, embora dissessem que (teoricamente) o centro era o aluno. 

Esse tempo já deveria ser o de recentrar o processo de aprendizagem num sujeito designer de si próprio, produtor de conhecimento, não consumidor de currículo, no aprendiz co-criador do seu projeto de vida e de fraternos vínculos.

Em 1970, Agostinho da Silva voltando a Portugal e vendo em que situação a Educação de Portugal se encontrava, isto escreveu:

“É bom que professor deixe de ser o habitual orador e aproveite para estudar o tempo que até agora tem despendido a falar. Já há bastantes livros que o aluno por si estude, bastante material de laboratório, para que o aluno faça por si as experiências e perceba como se edifica o saber; já há bastante vida à volta para que o aluno a possa examinar, criticar, e deixe de ser a escola a prisão em que habitualmente corrigimos a delinquência de ser criança.

Quanto menos aparecer o professor tanto melhor a escola. Pode ser que, um dia, o suprimamos e vamos nós à escola para reaprender a infância.”

Mestre Agostinho referia-se aos “dadores de aula”, que, passado meio século, já eram substituídos por robôs. 

Àqueles que eram verdadeiros professores Agostinho dava conselho:

“Talvez baste, por agora, que tenhamos as maiores dúvidas sobre o nosso valor de mestres; com um acrescento: a de que esse bastar jamais nos baste.”

No agosto de há vinte anos, rumei ao Sul, após quase um ano de andanças, que me devolveram a confiança nos educadores e na “Educação de Portugal”. Levava na bagagem uma quase-certeza de que valeria a pena voltar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLX)

Montemor-o-Novo, 9 de agosto de 2042

Por meados de agosto de vinte e dois, o Alfredo, a Cristina, a Caetana, a Raquel, o Bernardo, a Sofia, a Angelina, a Cléo, outros pais e professores se reuniram para fundar uma comunidade. Os mais diretamente interessados andavam por ali. O Benjamim, com dois anos de idade, brincando e catando a atenção dos adultos. A Maia, de dez anos, sentada no círculo humano, muito atenta à conversa. 

Antes do encontro, conversei com o João. Tinha sido meu aluno, nos idos de noventa. Trinta anos depois, era o diretor do agrupamento de escolas. A sua postura na reunião foi fiel aos princípios que com ele adotara. E foi possível esboçar o que viriam a ser círculos de aprendizagem de vizinhança e núcleos de transformação vivencial. Em outra cartinha, disso vos falarei. Por agora… memórias. 

Na escola onde decorreu a reunião, à vista de duas velhas carteiras com buraco para o tinteiro, a memória me transportou para os anos cinquenta. Recordei o cheiro da tinta e a suavidade do “mata-borrão”. Me lembrei de quando carregava demasiado na caneta e borratava o caderno de duas linhas. Senti a dor do impacto da palmatória.

Enquanto aplicava o castigo, o professor Vasconcelos gritava: 

“Não chora! Não pode chorar!  

Com a mão aquecida pelo impacto das reguadas e com lágrimas prestes a derramar-se sobre o caderno de duas linhas, o nervoso miudinho e a pressão da não trémula sobre a caneta aumentavam e… eu voltava a partir o aparo. 

Marcos querido, o primeiro ano da tua vida coincidiu com o último dos anos em que o teu avô seria professor de crianças. Tinhas uma memória prodigiosa, uma memória de tempos umbilicais e outras, que guardavas só para ti. Quando acedeste à fala e soubeste comunicar na linguagem dos homens, seria demasiado tarde para reaveres uterinas memórias e muito cedo para outras verbalizar. 

A Maia, o Benjamim, os filhos do Bernardo e da Raquel, os meninos da Marcela e os de outras amorosas mães não viveriam situações da escola de antigamente. Anos antes, os abraçara e trouxera ao colo. E os reencontrava já “em idade de ir à escola”. Não seria por acaso que haveria acasos. Talvez se tratasse de sincronicidades.

Elas seriam guardadas no mais secreto recanto da memória de longo prazo, aquele que me fez recordar canetas de aparo. Passada a idade de ser velho, regressarás ao lugar da memória de todos os homens. 

Memória era coisa que não faltava aos professores. Os professores só pecavam por dois defeitos: o de nada escrever do muito que sabiam, de não divulgar as maravilhas que operavam, e o de não denunciar situações que desejavam acreditar não teriam acontecido.

Quando os meus netos me perguntavam por que a Escola era como era, não sei sabia que resposta lhes dar. Ninguém encontrava uma razão plausível para que ela fosse como era. O que pensaríeis, netos queridos, de pessoas que não sabiam explicar por que fazem aquilo que faziam? E, quando essas pessoas eram professores, o que delas pensaríeis?

A geração do designer Marcos e da psicóloga Alice iria romper com o fatalismo que sacrificara Giordano nas fogueiras da Inquisição. Essa maravilhosa geração soube contornar o fado funesto que imolou Ghandi num punhal traiçoeiro e Luther King numa bala assassina. Um século após a execução de Ferrer, setenta anos decorridos sobre o assassínio de Korczak nas câmaras de gás nazis, era tempo de contrariar o fatalismo que confirmava as tentativas de mudança da Escola como sublimes imolações. E, naquilo que ficou conhecido como nova construção social, românticos resilientes e conspiradores ousaram reinventar a aprendizagem e a educação. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLVIII)

Vila Viçosa, 7 de agosto de 2042

Por vezes, era tão difícil abordar assuntos delicados e só a lucidez dos teus reparos, querido  Marcos me ajudava a traduzir o mundo em metáforas. No tempo em que gatinhavas pela casa, nada era melhor que um neto, para aumentar os meus desconhecimentos e desteorizar a vida. 

Havia uma moral implícita nas estórias que vos contava e a idealização de uma escola “alternativa”. Mas não se pense que a escola “ideal”, que eu tinha em mente, se comportava sempre como escola “ideal”. Eram as pessoas que faziam as instituições e que as… desfaziam. Havia dias em que o lado lunar das pessoas que as habitavam se revelava. Quem nos dera que certos dias o não fossem! 

Quando os professores ligavam os seus “complicadores”, jogos de poder, que considerávamos erradicados, emergiam violentos, provocavam fortes impactos no sistema de relações. Para obstar aos efeitos dessas cíclicas crises, se privilegiaram as atividades em pequeno grupo e se criou a tutoria. 

Certo dia, me pediram uma definição de “tutoria”. Dei-a, quase poeticamente: a tutoria é como um discreto ato de amor, por ser feita de respeitosos gestos. Discreto, porque, como diria Mestre Agostinho, “quando se ama, em silêncio se ama”. Respeitoso, porque quem falava de amor não amava verdadeiramente, apenas falava. No caso específico da tutoria, amar consistia em criar condições de a todos garantir o direito à educação, no amor em ato.

Ainda citando Agostinho – esteve e estaria sempre entre nós – “o que impede de saber não são nem o tempo nem a inteligência, mas somente a falta de curiosidade.” Por isso, os encontros de tutoria começavam com a pergunta: “o que queres saber?” E, porque a afetividade não é neutra, acontecia a escolha mútua de tutores e tutorados. 

Poderia ser tutor todo o educador que pudesse estar disponível, a qualquer hora de qualquer dia, para interagir com os seus aprendizes e com as suas famílias. Antes do primeiro dia de experimentação (e, depois, na véspera de cada dia de trabalho), o tutor ajudava os aprendizes a elaborar as suas planificações diárias. E recomendava-lhes atenção aos horários que deveriam cumprir e a identificar os locais onde iriam desenvolver as suas atividades. 

No final de cada dia, acontecia o “quando sinto que já sei”, os momentos de “comunicação de descobertas”, a partilha do conhecimento produzido, sob a forma de “evidências de aprendizagem”. Uma vez por semana, o tutor reunia com todos os seus tutorados, para atualização dos registro de avaliação formativa. 

Na prática de uma ética do cuidado, uma forma suplementar de tutoria poderia ser a da “ajuda entre pares” – voluntariamente, durante 15 minutos diários (limite máximo), jovens ajudavam jovens (por exemplo: os já alfabetizados poderiam ajudar aqueles que estavam a ser alfabetizados). 

O mesmo poderia acontecer entre pares de educadores. Sobretudo, quando decorrente de uma avaliação de desempenho menos “brilhante”, se formava uma “comissão de ajuda”, para ajudar o professor que “perdera o brilho” a voltar a “brilhar”. Porque cada “um de nós” era individualmente responsável pelos atos do seu coletivo.

E, como diria a Alice, aqui temos mais um exemplo de recatada “doutrinação”. Tinha razão a Alice. Mas, cada qual a entendia a seu modo. Como o avô escrevera no “Para Alice, Com Amor”: Tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Não é necessário que todos amem rosas vermelhas em detrimento do amor por outras rosas, como não se pode obrigar alguém ao amor puro.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLVII)

Alandroal, 6 de agosto de 2042

Dizia o Mestre Agostinho que “o homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta”. Segundo o Mestre, a pessoa deveria encontrar-se consigo mesma e fazer todo o possível para que não houvesse uma discórdia consigo mesma. Agostinho não desejava ser original: interessava-lhe ser verdadeiro, porque “o mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas.”

Frui de ter um poeta por professor, um professor-poeta (todos o são, mas este publicava poesia), que acendeu trilhos poéticos na minha existência e me levaram muito para lá daqueles versos que convencem os adolescentes de que são poetas. 

Foi o primeiro professor a mostrar-me o que não cabe nas palavras, a guiar-me pelas palavras que estão para lá das palavras e das ideias que as palavras ocultam. Provocou-me deslumbramentos perante Caeiro e solenidade perante os primeiros versos da Sophya. Desocultou poetas malditos e resgatou um Camões que andava naufragado em fastidiosas dissecações de decassílabos. 

O “sistema” sempre dispôs de educadores sensíveis, “poetas à solta”. Mas também havia gente insensível, que não reunia um mínimo de condições para exercer o múnus profissional. 

Quando uma anta pedagógica disfarçada de professora deparou com uma aluna com elevado potencial, que não se comprazia com o rame-rame de fastidiosas aulas, assim se pronunciou:

“O que ela quer saber eu só lhe posso ensinar, quando ensinar o resto da turma. E só no quinto ano. Ela só está no segundo. E não acompanha a sala de aula”.

“Eu acompanho, sim, minha mãe. Eu entro na fila, direitinho” – comentou a menina.

A Malu já se habituara a entrar na “fila”, mas ainda resistia à domesticação dos sentidos, acompanhada por uma avó pedagoga atenta e interveniente. Quando a “professora” insinuou ser a Malu hipercinética e sugeriu a utilização de Ritalina, a avó reagiu à medicalização. E nem vos conto o que a avó Cléo disse e fez…

O Mestre Agostinho dissera que a solidão era uma ocasião extraordinária de diálogo consigo próprio. Infelizmente, muitas Malus não beneficiavam de ter uma avó protetora. Impotentes perante a insensibilidade de certos “professores”, se isolavam, desenvolviam neuroses, refugiavam-se numa solidão suicida.

Poderá parecer-vos ter usado de exagero. Suicídio era uma palavra proibida, quando se falava da infância. Mas, vos asseguro que, naquele tempo, crianças se suicidavam em tenra idade. Quando soubemos que, numa escola distante, uma criança de dez anos se matou, ingerindo veneno de escaravelho, apercebemo-nos de que havia solidão na infância. E criámos na nossa escola uma “caixinha dos segredos”.

Nas turmas-piloto do setembro de vinte e dois, outros dispositivos de relação foram criados: a “Assembleia”, o “Acho Bom”, o “Acho Ruim”, o “Proponho”, o “Preciso de Ajuda”, o “Já sei e Posso Ajudar”, os “Grupos de Responsabilidade” e outros, que “poetas à solta” reinventaram.

Alheios à possibilidade de redenção da Escola muitos “professores” insensíveis mantinham-se cativos de um negrume de sentimentos negativos. Mas, eu não desistia de acreditar, também, nesses “professores”. Acreditava que pudessem surgir prenúncios da bonança, que suavizassem iras e amaciassem conflitos. 

Nos idos de vinte, seria necessário procurar professores que ainda não tivessem morrido, para entendermos como se processaria a transformação de adultos indiferentes em educadores sensíveis, que redescobrissem em si a sensibilidade perdida. Animava-nos a certeza de que houvera um tempo em que os professores a apreenderam nas crianças.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLVI)

Borba, 5 de agosto de 2042

Vai para vinte anos, o meu amigo Leo enviou-me uma mensagem contendo uma citação do Mestre Morin:

“Quando um sistema é incapaz de tratar dos seus problemas vitais, degrada-se, desintegra-se ou então é capaz de suscitar um meta-sistema capaz de tratar dos seus problemas: metamorfoseia-se. 

O provável é a desintegração. O improvável, mas possível, é a metamorfose.

Hoje, tudo deve ser repensado. Tudo deve ser recomeçado. Já existe, em todos os continentes, um fervilhamento criativo, uma série de iniciativas locais, no sentido da regeneração econômica, ou social, ou política, ou cognitiva, o ou educacional, ou ética, ou da reforma da vida. 

Estas iniciativas não se conhecem entre si, mas são o viveiro do futuro. Já não chega denunciar, é preciso enunciar.” 

Uma metamorfose educacional, ética, começou a tomar forma concreta, há mais de oitenta anos. E o setembro de vinte e dois viu emergir do caos uma nova construção social de aprendizagem… uma “metamorfose”. 

Comecemos pela origem remota, uma estória que demonstra uma verdade nem sempre evidente: há professores que não usam a pedagogia como mera ciência ou arte, mas ajudam outros aprendizes a aprender a arte de viver. 

Era uma vez, um professor contou-me… 

A estória poderia começar desse modo, porque, ao longo das referidas oito décadas, muitos educadores tiveram as mesmas oportunidades e fizeram tantas tentativas quanto as que fizemos, mas acabaram por desistir. A história da educação deveria ser composta por projetos de desistentes. Talvez se aprendesse mais com os seus anónimos autores do que com os feitos dos bem sucedidos. 

Na base da minha “metamorfose”, três pessoas recordo com ternura. O primeiro foi um professor padre, que entrou na sala de aula e perguntou: 

“O que quereis aprender?”

Foi essa a pergunta fundadora de toda a sua pedagogia: “O que quereis saber?” E aquela que, por décadas, ressou na minha memória de infância. Tinha, nessa altura, dez aninhos. Mas, as privações de infância e as duras lições aprendidas na “Ilha dos Tigres” me conferira maturidade suficiente para entender a atitude do Padre Lima. 

Era homem de questionar, em tempo de Ditadura. E, de padre e professor passou a ”clandestino” Vi-o, pela derradeira vez, no fim da primeira aula da manhã de um certo dia em que o director da escola o invectivou, violentamente, perante a turma:

“O senhor não é um padre! O senhor é um jacobino! Vá ter comigo ao gabinete!” Já não deu a segunda aula. Nunca mais voltou à escola. 

E eu, que desconhecia o significado da palavra jacobino, logo fui ao dicionário. A última herança que esse padre-professor me deixou foi a inquietação que me conduziu ao primeiro passo de uma aprendizagem que também lhe fiquei a dever. De palavra em palavra, de definição em definição, de jacobino passei a revolucionário, de revolucionário a democrata… A curiosidade não me deu tréguas, arrastou-me a muitos serões na biblioteca pública.

Nesse tempo, não imaginaria que a Idade da Educação chegaria no tempo dos filhos dos meus filhos. E não foi demasiado tardio o consumar da “metanmorfose”. No tempo do centenário de Sumerhill, muito para além da proposta de Alexander Neill, de Carl Rogers e de outros libertários, um “meta-sistema” emergia do caos.

No setembro de há vinte anos, era grande a azáfama das turmas-piloto. Adequava-se espaços de aprendizagem.  Atualizava-se espólios de bibliotecas comunitárias. Disponibilizava-se dispositivos de acesso à Internet e eram instaladas plataformas digitais de aprendizagem. Isso e muito mais, ainda em tempo de vida do visionário Morin.

Por: José Pacheco

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