Fátima, 25 de abril de 2043
Eis-me, aqui, regressando a um lugar feito de promessas e supostos milagres. Eis-nos, sessenta e nove anos depois de uma madrugada libertadora. Tantas datas, quantas memórias!
Eis-nos, sessenta e sete anos depois da chegada à Ponte e do nascimento do André. Comemorando os oitenta e sete anos da Fátima, sua mãe estremosa e extraordinária companheira do primeiro dos projetos tentados e conseguidos.
Netos queridos, são passados 69 anos sobre uma leda madrugada feita de coragem e perdão. 69 vezes comemoramos o “Dia da Liberdade”. Que 70×7 ela seja comemorada. Ditadura nunca mais!
Por que seria que o Brasil não comemorava o dia do fim da ditadura? Creio ter encontrado um início de resposta.
Recordo a abertura da Semana da Educação de1998, quando a Escola da Ponte recebeu a visita do Presidente da República.
No final do dia, ele apontou como preocupação maior o fato de nem todas as crianças terem acesso a um ensino básico de qualidade.
“A escola e a família são fundamentais para desenvolver a capacidade de intervenção e de influenciar o nosso tempo. Há também responsabilidades sociais, por parte de toda a comunidade. Os problemas da escola resolvem-se dentro e fora dela.”
Jorge Sampaio fez apelo à participação responsável e à mudança:
“É preciso recusar tendências autoritaristas e saudosistas.”
O Presidente estava atento a uma proposta de alteração da Lei de Bases, à imposição do regresso da figura do diretor, anulando práticas de direção, gestão e administração baseadas em conselhos, não-hierarquizada, como era o caso da Ponte.
Temendo o impacto de tal medida na Ponte como em outros projetos de mudança, comentou
“Não quero um País complacente com um destino escolar medíocre”.
O exercício de cidadania nas escolas regrediu, quando um decreto foi publicado e novos modos de regulação e controle foram instituídos. Quando o ministério da educação, unilateralmente e à revelia do disposto no contrato de autonomia celebrado em 2004, retirou à Ponte direitos adquiridos. Quase meio século decorrido sobre a “Revolução do Cravos”, o povo português ainda não havia tomado consciência de que ninguém adormecera “fascista” no dia 24 de abril, nem acordara “democrata” no dia seguinte.
A longa visita à escola terminou na reunião da Assembleia. O Presidente e a esposa intervieram, para realçar o comportamento exemplar dos alunos, o elevado sentido do exercício democrático.
Nessa noite, a televisão mostrava o final da reunião da Assembleia. Visivelmente emocionado, Jorge Sampaio se despediu, dizendo:
“Recebi de vós lições de cidadania. E peço-vos que nunca deixeis de erguer o braço, para pedir a palavra!”
Jorge Sampaio era um presidente que considerava que a cidadania “não se esgotava na escola”, mas que tinha aí “elementos essenciais de consolidação”. Comovido com a manifestação de cidadania dos alunos da Ponte, com a voz embargada, confidenciou:
“Um dia, aos oito anos, a professora disse-me que era eu que ia fazer o discurso semanal. Esse discurso foi comentado e criticado. Só mais tarde, percebi o quanto esta experiência de intervenção foi útil para o resto da minha vida”.
Quando, nos idos de noventa, o Presidente nos visitou, continuavam sólidas as minhas convicções. Estava próximo meio século de vida vivida, tempo de confucianamente nos livramos de dúvidas e entendermos a mensagem do “Decreto do Céu”. Ao chegar aos setenta, eu “seguia o meu coração, sem passar dos limites”.
Nestas puras manhãs de 2043, a Vida me ensina a ser designer de um ser humano futuro-presente, que se revê num aprendiz de utopias.
Por: José Pacheco