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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVIII)

Alcorochel, 28 de maio de 2043

Netos queridos, que mais vos hei-de dizer que vós não saibais, se tudo já foi dito e redito? A década de vinte da vossa entrada na vida adulta foi, também, o tempo da “adolescência” de um novo sistema de ensinagem, que o vosso avô ajudou a conceber com uma pequeníssima contribuição, de que vos falarei nas cartinhas que vos enviarei no próximo mês. Até lá, vos deixarei com referências àqueles que o anunciaram.

Começo pela Nise, que cuidou da loucura benévola daqueles que estavam no Engenho de Dentro, em nada se comparando à loucura daqueles que, fora do hospício, insistiam em manter um sistema falido, gerador de ignorância e infelicidade. Loucos de que nos falava Einstein, que insistiam no errado, delapidando o erário público em projetos, pactos, programas, capacitações, consultorias, assessorias e outras inutilidades. 

Denunciar os maus-tratos infligidos aos ditos “loucos” equivalia a denunciar a guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem liberta e libertadora, na qual os aprendizes lidassem com um conhecimento mutante, “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”

Muito tempo decorreria até que, à semelhança do Jung, o Brasil a Nise encontrasse. E concretizasse a exigência da Cecília, professora-poeta (ou poeta-professora?), sua contemporânea que, nos jornais do Rio, exigia “educação no lugar da corrupção”

O Brasil renascia de tempos sombrios e a Cecília lançava um apelo na forma de versos: 

Vem, retira as algemas dos meus braços

Porque a vida só é possível reinventada.” 

Nos idos de vinte, decorridos cem anos, as suas corajosas “crônicas da educação mostravam-se atuais, porque nos falavam de indignação. Tal como Freire e outros educadores que, no seu tempo, nos disseram que deveremos exercer o dom da revolta perante as injustiças do cotidiano. Como fizera o Freinet, nos campos de batalha pela liberdade da Europa, consciente de que “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiçados, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos.” 

A construção social Escola, que a Cecília denunciou, feita de edifícios com grades, de salas habitadas por solidões, de cartesianas segmentações, de relações hierárquicas e burocratizadas, desprovida de fundamentação científica, sobrevivia, qual cadáver adiado suportado por enfeites paliativos. Para quê mais reformas, mais pactos, se a professora Cecília vivia, em permanência, na idade dos porquês? 

Pelos seus dezesseis anos, a Cecília se fez professora. Mas, quando se candidatou à cátedra de literatura da Escola Normal, foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. Porque expressou a sua rebeldia nas páginas dos jornais, pugnando por uma efetiva renovação educacional, sofreu perseguições.

Cecília ousou romper com os tabus de uma sociedade tão moralmente doente quanto a da década de vinte deste século, denunciando um regime que invocava “a Liberdade como sua padroeira”, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”. Propunha “uma reforma de finalidades, de democratização da escola, todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. 

Cecília foi merecedora dos versos que o Manuel Bandeira lhe dedicou: 

Cecília, és tão forte e tão frágil 

Como a onda ao termo da luta 

Mas a onda é água que afoga 

Tu és enxuta.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVII)

Sabugal, 27 de maio de 2043

Há uns vinte anos, fui até ao interior do país, para conhecer, mais profundamente, o trabalho da Celmira e da sua jovem equipe (dele vos falarei mais adiante). No mesmo dia, mão amiga me fez chegar um fragmento da obra de Oscar Varsavsky. Aqui vo-lo deixo, no original. Espero que a língua castelhana não vos seja estranha… 

“Más importante para el cambio de la sociedad es la falta de educación para el cambio, que significa echar por tierra una serie de valores que, hasta el día de hoy, tienen una fuerza indiscutida. 

(…) Hay miles de estos problemas, que no se resuelven cambiando planes de estudio o colocando televisores en las escuelas, sino pensando concretamente en cómo decir las cosas para que no suenen a catecismo, cómo se enseña la ciencia sin que se convierta en cientificismo.

El gran reto a los pedagogos es diseñar un sistema de enseñanza que, partiendo de un pequeño grupo inicial que sabe lo que desea enseñar, consiga ampliarlo hasta que eso pueda transmitirse a la población sin perder tiempo y sin traicionar su contenido. 

Téngase en cuenta que ese grupo inicial no va a disponer de la Biblia (ni de un librito rojo) ya escrita, cuyo texto basta difundir. Muchas de las ideas estarán todavía tácitas y habrá que explicitarlas. 

¿Cómo se organiza un equipo de redactores de textos, fieles, pero no dogmáticos?

¿Cómo se ligan los principios generales con la realidad cotidiana, para que el niño deje de ver a la enseñanza como un mal cuento de hadas, igualmente falso pero aburrido? 

¿Deben subsistir las escuelas o ser reemplazadas por otro tipo de institución? 

La educación debe continuar toda la vida de una manera formalizada, concurriendo a clases obligatorias, o mediante la lectura informal de revistas o los programas de televisión, ¿o cómo?

Na década de setenta do século passado, quando a Ponte já dava resposta a algumas perguntas, Varsavsky, era referência no Chile e em outros países da América Latina.

O autor formulava perguntas perturbadores para os bem pensantes. Para aqueles que, detendo um saber académico, padeciam de cientificismo, dogmatismo e teoricismo, doenças infantis das ciências da educação. Também por isso, decorrido meio século, a ementa de congressos, a agenda de ministros e a pauta de reuniões de “especialistas” se mantinham cópias de perguntas jamais respondidas.

E a Ana dizia:

“São esses porquês que me fazem insistir em permanecer lutando, questionando avaliações sem sentido, alunos em cabines como baias de cavalo, sentados um atrás e longe do outro. Como seria bom se pudessem ser livres para aprender. Iam amar”.

 A Ana poderia não saber como poderia sair de um sistema de “cabines como baias de cavalo”. Mas, sabia que nele não poderíamos continuar. Perdêramos meio século em estéreis “polémicas” replicadas nas redes sociais, nas quais excelentes teóricos debatiam o “sexo dos anjos” da educação. 

Se nelas eu intervinha com perguntas semelhantes às do Varsavsky, o silêncio era a resposta. A publicação do livrinho “Inovar é Assumir um Compromisso Ético com a Educação” muitos amargos de boca me causou. As críticas veladas (e destrutivas) e as reações negativas de teóricos, que eu considerava amigos, agiram como fator de desmotivação. Como diria o outro, “mal com os homens por amor d’el Rei, mal com el Rei por amor dos homens.” Bom era acabar, deixar abertos caminhos novos. 

Mas ainda passariam meses de cansaço, até confiar nas mãos de amigos do Coletivo da Educação Humanizada e da Escola Aberta um esboço de projeto futuro, os meus parcos conhecimentos e os destinos da deriva educacional.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVI)

Brogueira, 26 de maio de 2043

Netos queridos,

Dissestes terdes ficado surpreendidos com a pergunta deixada no final da cartinha de ontem: “Os responsáveis teriam lido a Lei de Bases do Sistema Educativo?”. Vos esclarecerei.

Como diria a Rúbia, “a educação torna-se subversiva, quando a comunicação envolve o processo da aprendizagem. O livro de Salman Khan, “Um mundo, uma escola”, busca repensar o sistema vigente, para libertar um modelo de mais 200 anos. Vários autores já trazem um pensamento do paradigma da comunicação como o Oliveira Lima, Agostinho da Silva (cuja foto junto a esta cartinha), Antônio Nóvoa, entre outros, que nos ajudam a pensar a Educação numa dinâmica do encontro com o mundo.”

O artigo 48º da LBSE dizia-nos que o funcionamento das escolas se deveria orientar por “uma perspectiva de integração comunitária”, sendo, nesse sentido, favorecida “a fixação local” dos seus professores. Isto é: os professores deveriam residir, trabalhar, viver nas suas comunidades. 

Dizia-nos, também, que a administração e a gestão das escolas se deveriam orientar por “princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo”. Esse desiderato não se concretizava em escolas onde havia diretor, dado que ele estava sujeito ao dever de obediência hierárquica. Mesmo que discordasse de “ordens superiores” era obrigado a cumpri-las. E as famílias dos alunos e os agentes educativos locais quase não participavam da administração e gestão das escolas. Até era frequente que os pais nem sequer pudessem passar do portão da escola dos seus filhos.

Na lei diz ainda que, na administração e gestão das escolas, “devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”. E não era isso que acontecia. A regulamentação da lei era feita segundo uma racionalidade técnico-administrativa, carente de fundamentação científica.  

Voltando ao excelente artigo da Rúbia, que vos dei a conhecer, há alguns dias:

“Necessitamos de unidade mental comum em vez de instintos comuns. Para refletir temos que compreender o sentido de futuro para vida dos seres humanos.

Temos vários autores que retratam este tema. Margaret Mead em seu livro Continuidades da Evolução Cultural, investiga as realizações do homem e sua mudança social. O Pierre Teilhard de Chardin em seu livro, O Futuro do Homem, investiga numa direção cósmica a coletivização da humanidade. 

Essas reflexões servem para compreensão da natureza humana, a identificação com seu semelhante e as diferenças, a ideia de tempo, o encontro, as inovações e as realizações. Assim, se a ciência organiza o caos para criação da ordem, aprender e estudar é fundamental. 

Estudar e investigar são condições existentes nas comunidades de aprendizagem. A curiosidade e o uso dos conceitos ajudará o andamento das comunidades de aprendizagem. Nelas encontramos um laboratório de convivialidades diante do paradigma da comunicação.

As realizações humanas fazem parte da cultura. Para tanto, a cultura eleva a consciência pelo modo como percebemos, imaginamos e simbolizamos o mundo. Bronoviski diz que “não há permanência para os conceitos científicos, porque eles são apenas a nossa interpretação dos fenômenos naturais.” Digamos que há num mundo uma riqueza de conexões, e precisamos ter consciência dessa riqueza. Cá para nós, o que alimenta a comunidade de aprendizagem é justamente a riqueza das conexões existente no mundo. A consciência surge pela capacidade de imaginar. Onde há imaginação, há vontade e há consciência. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLV)

Boquilobo, 25 de maio de 2043

A Lucrécia quis saber a minha opinião sobre “problemas de indisciplina”. Disse que havia “turmas difíceis” na sua escola.

Disse-lhe que não poderia opinar, mas perguntar: 

Por que há “turmas difíceis”? Se deixar de haver turmas, talvez a “dificuldade” desapareça. Por que há turmas, Lucrécia?

“Porque está na lei” – respondeu.

Duvido que esteja, minha amiga. Mas, se está na lei, por que está na lei? Diz-me.

Não respondeu. Lamentou-se:

“Nos intervalos, quase não conseguimos conversar. Mesmo com a porta da sala dos professores fechada, é grande o barulho lá fora. Quase gritamos, para nos fazermos ouvir. O que é que tu achas? Como poderemos resolver esse problema?”

Disse-lhe que estava proibido de “achar” Somente poderia responder fundamentando a resposta numa práxis de mais de cinquenta anos de chão de escola e nas ciências da educação. Respondi:

Há barulho, porque há intervalos, não é?

“Sim. É isso”.

Se deixar de haver intervalos, deixará de haver barulho, não é?

“Sim. É”.

Então, por que há intervalos? Por que razão os alunos têm de esperar pelo intervalo para fazer xixi? Não podem fazer xixi, quando sentem vontade?

Por que razão todas as escolas começam as aulas à mesma hora?

Por que há salas de aula?

Por que duram as aulas cinquenta minutos?

Por que há bimestres, trimestres, quadrimestres, semestres e ano letivo?

Muitas perguntas fazia à Lucrécia. Nenhuma obteve resposta.

Nos anos sessenta e setenta do século passado, visitei aldeias pulsantes de vida, crianças brincando na rua, vizinhos conversando, prédios de escola repletos de alunos.

Nas décadas de oitenta e noventa, a migração para o litoral e para o estrangeiro reduzira o número de alunos, e o ministério resolveu encerrar escolas com menos de dez alunos. Nas aldeias dos idos de vinte, ficariam apenas velhos e casas vazias. O ministério matara comunidades.

O processo de extinção de escolas – mais uma estulta iniciativa ministerial – culminou por vota de 2006. A medida inseria-se no “reordenamento da rede escolar do 1º ciclo”, que o governo pretendia concluir durante a legislatura Era doloroso ver como um Secretário de Estado, por quem eu nutria grande admiração, contribuia para esse grave atentado:

“A existência de escolas dispersas com um número reduzido de alunos tem todo o tipo de inconvenientes, desde prejuízos pedagógicos graves, problemas de socialização, de aproveitamento dos alunos”.

Inconvenientes? Prejuízos pedagógicos? Problemas de socialização? De aproveitamento? Que Deus nos valesse! Inconveniente era destruir culturas, matar comunidades. Prejuízos pedagógicos seriam os resultantes de um modelo educacional criminosamente imposto às escolas. E que socialização oferecia a nova prática? 

De burrice em burrice (sem ofensa para os burros, que eram bem mais inteligentes), os burocratas do ministério foram desertificando povoados. As crianças passaram a ser transportadas para os grandes centros populacionais e armazenadas nos chamados “centros educativos”. Na realidade, eram centros deseducativos, megalómanos prédios, servidos pelo “transporte escolar”.

Nos idos de vinte e três, muitos centros educativos contavam com menos de dez alunos por professor. Em alguns, havia dois ou três alunos por professor. Se assim era, segundo princípios da “pedagogia predial”, por que razão o ministério não mandava fechar os centros educativos? 

Por que “carga d’água” crianças da Brogueira eram obrigadas ao vaivém diário entre a sua aldeia e Torres Novas?

Os responsáveis teriam lido a Lei de Bases do Sistema Educativo?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLIV)

Torres Novas, 24 de maio de 2043

Numa tarde de maio de há vinte, pais, autarcas e outros membros da comunidade se reuniram na Biblioteca de Torres Novas, para preparar o futuro dos seus filhos e cidadãos. Nesse mesmo dia, Rúbia Lóssio publicou um artigo, que tinha por título “A subversiva educação nas comunidades de aprendizagem”.

Com a devida vénia e gratidão, não resisto a transcrever alguns excertos. Rúbia sugeria que perguntássemos a uma criança o que ela desejava ser e quais seriam as suas realizações em benefício da comunidade e da sociedade.

“(…) iremos encontrar explicações na educação. O amigo Zé, do extraordinário projeto Escola da Ponte, lembra que “a educação não é para amadores”, que está no seu livro Inovar é um Compromisso Ético com a Educação. 

Com uma proposta transformadora baseada nas relações cotidianas com as relações curriculares pela autonomia, responsabilidade e solidariedade surgem as comunidades de aprendizagem. 

As comunidades de aprendizagem criam condições de convivialidades unindo ciência, arte e relações cotidianas, a partir dos dispositivos pedagógicos que surgem mediante o aparecimento das necessidades de convivialidades na reconstrução das relações sociais.

A comunidade de aprendizagem é a cena, a dinâmica, a sinergia entre ações, contemplações e projetos. O que alimenta uma comunidade de aprendizagem é o prazer nas convivialidades pela dimensão da investigação. Seria então, os acontecimentos do dia a dia com a vontade da descoberta por algo de interessante interesse o desafio das Comunidades de Aprendizagem? 

Essas comunidades de aprendizagem incentivam as metodologias na perspectiva da criatividade. Seus parâmetros estão na família, costumes, cultura, identidade favorecido pelo encontro. Assim, Zigmunt Bauman denomina comunidade como aconchegante coletivo.

Há de se considerar que, o que alimenta as comunidades de aprendizagem é a intersecção entre ciência, literatura e a vontade de aprender existente na comunidade. Gabriel García Marquez diz que o maior feitiço que existe na vida é a vontade. E, nas comunidades de aprendizagem não falta vontade de aprender. 

A Escola, está perdida diante de tantas novidades e inovações tecnológicas, com isso precisamos inovar com o compromisso ético na educação. Deixar o modelo autoritário, patriarcal, ditado pela indústria dos livros didáticos para uma postura de construção de novos livros realizados pela Comunidades de Aprendizagem. O modo como as crianças percebem o mundo não faz conexão com os livros didáticos.

Precisamos trazer de volta os seres humanos. Trazer a poesia, a fé, a curiosidade, a solidariedade, a autonomia, a responsabilidade e a ternura. A partir da Cidadania do Afeto construiremos espaços de educação de sucesso. A partir das virtudes, de uma matriz axiológica de valores poderemos trilhar um novo tempo nas Comunidades de Aprendizagem, como diz o professor Pacheco. Não poderemos continuar a construir uma educação pela autonegação. Singularidade e alegria devem pautar as Comunidades de Aprendizagem.

“Olhemos com ternura nossos alunos como seres humanos. Dignos de realizações. 

Para começar poderemos criar um memorial de cada aluno, com seus gostos, suas músicas, poesias, livros, filmes, lugares, cores, jogos, brincadeiras, onde sua matrícula não seja apenas um número. Não viemos para este mundo só para competir, viemos para mostrar nossas realizações em benefício da coletividade. Que cada aluno seja compreendido pela formosura de ser um humano e que a educação seja sempre subversiva.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLIII)

Montemor-o-Velho, 23 de maio de 2043

Netos queridos,

Achei esse cartaz, quando andava vasculhando o fundo do baú das velharias. Essa “Conversa” decorreu. Já tinha percorrido o país, “conversando” com educadores, que viriam a modificar o (triste) panorama educacional desse tempo. Pressentia um forte sentimento de autonomia em muitos educadores, cujos projetos de comunidade ia acompanhando. Investi na criação de uma equipe, que tomasse nas suas mãos os destinos dos muitos projetos, que foram surgindo.

A minha amiga Tina fazia parte dessa extraordinária equipe. Assim se manifestava no velho Instagram:

“Se as escolas são pessoas e o sistema educacional são pessoas, quem são os arrumadores de desculpas?

Como detectar um bom arrumador de desculpas, para manter a educação no instrucionismo?
Ele deseja fervorosamente essa transformação em si mesmo?

Ele deseja fervorosamente essa transformação para seus próprios filhos?

Ele deseja fervorosamente essa transformação para seus próprios estudantes?

O sistema educacional é viciado em arrumar excelentes desculpas para se manter agarrado ao convencional.… 

“Sempre foi assim. Foi assim comigo e deu certo. A… a diretora não deixa. Sou obrigada a fazer assim. E eu fiz a minha parte. E essa criança não aprende. Eu fiz o que me orientaram…”

Esta lista pode ser infinita.

Para transitar do Paradigma da Instrução, para o Paradigma da Aprendizagem e Comunicação, e trazer o aprender para o século XXI, é preciso reconhecer que, fazer o que sempre foi feito, não alcançará resultados diferentes.
Arrumar desculpas, não vai tirar a educação da Zona de Conforto e essa mudança precisa começar por quem quer, por mim e por você, nunca pelo outro.
Sair da zona de conforto, não será um movimento aconchegante, cômodo, agradável, suave, leve. Por isso, continuo à procura de educadores com garra, e como disse Tião Rocha: persistentes, insistentes e resistentes.”

Se as palavras da minha amiga Tina, já por si, tocavam o centro de gravidade do profissional de desenvolvimento humano e poderiam ser suficientes para que os professores refletissem e decidissem resolver um problema de natureza moral, acrescentaria algo que apontasse para o domínio da ética.

Há uns quarenta anos, o amigo António Nóvoa escrevia:

“Como conseguir que a educação responda aos anseios e aos desejos de cada um sem que, ao mesmo tempo, renuncie à integração de todos numa cultura partilhada? 

O regresso a dinâmicas associativas, desenvolvidas no quadro de uma narrativa pública da educação, permitirá evitar as tendências burocráticas e corporativas, sem cair numa visão fragmentada dos alunos como clientes e das escolas como serviço privado.

É urgente reforçar um espírito associativo, que entre nós foi sistematicamente asfixiado, para que uma concepção nova da educação como espaço público se concretize no quadro de práticas de autonomia das instituições escolares.

Como conseguir que as famílias e as comunidades sintam que a escola lhes pertence?”

Talvez na esteira das considerações do amigo António, nos idos de vinte e três, algo novo acontecia. Quando, pela enésima vez, percorri o meu país da Educação, no Canto dos Piscos, nas Sementes de Lys, na Manuel da Maia, na Compasso e em outros lugares onde uma nova Humanidade ganhava contornos em iniciativas de uma nova Escola sosseguei os meus voluntariosos ímpetos. Já havia diretores sensíveis e educadores decididos a fazer o que eu, em vão, tentara, ao longo de mais de meio século.

O Simão e a Flor já nasceriam no tempo da Educação. Pais e professores o tinham preparado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLII)

Casal dos Ledos, 22 de maio de 2043

Calhou de estar envolvido em formação, num tempo em que acreditava que se poderia formar professores. Decorria o ano de 2007, se não me falha a memória. No intervalo da ação de formação, saí para arejar e comprar livros. Quando vasculhava as estantes de um sebo, deparei com um título comum de um livro, que nada tinha de vulgar: “A Escola Secundária Moderna”. 

O mestre Lauro tinha escrito um tratado, onde vertera um pouco da sua sabedoria. Procurei outros títulos do autor e apenas encontrei “A Escola para a Comunidade”. 

Europeu etnocêntrico, eu estava crente de que tivessem sido os anglo-saxônicos e os catalães os primeiros a escrever sobre comunidades de aprendizagem. Puro engano! No sul da América, trinta anos antes da construção teórica do Ramon, Lauro apontava caminhos para a transformação da escola em nodo de comunidade de aprendizagem: 

A expressão escola de comunidade procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será um centro comunitário. Não se reduzirá a um lugar fixo murado”. 

Voltei ao local do encontro de formação, feliz pelo encontro com a obra de mais um ilustre Mestre brasileiro. Perguntei a mais de uma centena de professores, ali presente, se alguém sabia do paradeiro do Lauro. Ninguém sabia. Nem sequer tinham ouvido falar de tal nome.

No final do dia, após a saída dos formandos, uma senhora chegou para limpar o salão, varrer, apanhar e jogar copos plásticos e restos de guardanapos no balde do lixo. Aproximou-se e perguntou:

“O senhor doutor perguntou pelo professor Lauro? Eu sei onde ele mora. É no Recreio dos Bandeirantes”.

Aquela senhora o conhecia e indicou-me o endereço da casa, que visitei no dia seguinte. Mantive com o Mestre uma saborosa manhã de conversa. Dali fomos para a “Chave do Tamanho”, onde conheci a Beta, sua filha, e reconheci Piaget, nos mínimos detalhes da vida daquela escola. O bate-papo a três se estendeu por toda a tarde. E o amigo Lauro reiterava a crítica da escola da sala de aula: 

Encontramos escolas como verdadeiros quistos sociais, sem nenhuma relação real com o meio; estas escolas fechadas são elementos perniciosos para o meio. Museus, bibliotecas etc., estando à disposição de todos, deve a escola ensinar o povo a utilizar-se desses instrumentos de cultura (…)  aí se inicia uma escola; todos os serviços escolares, toda a estrutura administrativa, toda a legislação escolar, toda a burocracia resultam à posteriori deste fenômeno primário; cada membro da comunidade, para além da responsabilidade pessoal e social, tem compromisso com as novas gerações.”

Em 2012, a Escola do Projeto Âncora quis homenagear um dos maiores educadores vivos. O Lauro estava muito doente, sem condições de se deslocar do Rio a Cotia. A Beta, sua filha o representou, numa festa organizada pelas crianças. No final, os alunos do Âncora entregaram à Beta umas “cartinhas para o amigo Lauro”. 

Recordo uma manhã de trabalho no Âncora, em janeiro de 2013, quando a Internet nos trouxe a notícia do falecimento do Mestre. Voltei ao Rio e à escola do Lauro, para saber como poderia ajudar a Beta a continuar a obra do seu pai. Era grande a consternação. E era imensa a minha indignação, por saber de uma morte anônima. Nem uma notícia de jornal, nem uma homenagem póstuma a um dos maiores educadores do século XX e XX!

Desde o escolanovismo, o anonimato e o esquecimento era a sina de educadores que contestavam o sistema de ensinagem. 

Quanto professores portugueses teriam lido, ou ouvido falar de Faria de Vasconcelos, de Adolfo Lima, de Irene Lisboa…?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLI)

Nascentes de Luz, 21 de maio de 2043

Não será, certamente, leviano que eu afirme, à Monsieur de La Palisse, que educador é aquele que educa. É aquele (ou aquela) que exerce uma práxis coerente e, enquanto fundamenta a prática com o quanto baste de teoria, contribui para a melhoria da educação. 

Nos idos de vinte, muitos desses educadores havia. Não colhiam o devido reconhecimento pelo conhecimento que produziam, pois esse conhecimento não era “publicado” nem “divulgado” nos meios acadêmicos. Os seus projetos soçobravam por carecerem de sustentabilidade financeira. Ou sobreviviam à míngua de restos de financiamento e do que sobra de opulentos gastos com congressos e quejandos. 

Teoricistas recebiam os louros devidos ao afã dos chamados “práticos”. Pilhavam esses projetos e deles se apropriavam, para os vender em ações de formação, ou os verter em teoricistas teses. O farisaísmo campeava no reino da educação e abútricas empresas lucravam com a situação.

Em seminários e reuniões afins, plateias compostas por professores aclamavam falastrões que lhes ensinavam como deveriam agir em sala de aula. Porém, se esses falastrões fossem colocados em sala de aula, não saberiam realizar aquilo que diziam que os professores deveriam fazer.

Nesse tempo, as práticas efetivas eram contraditórias com o teor dos projetos político-pedagógicos. A ensinagem não contemplava a aprendizagem da vida. Retirava as crianças do mundo, da realidade, confinando-as em prédios com salas de aula fechadas, por vezes rodeadas de grades. 

A escola ensimesmada, que ainda tínhamos era uma forma “modernizada” de socialização do saber, era monológica, monocultural, sem incorporação de diálogo com os saberes circulantes. Mesmo essa escola poderia constituir-se em locus de criação de comunidades, se a identidade difusa que as caracterizava, desse lugar a interações com significado e viesse a contribuir para um desenvolvimento humano sustentável. 

Buber dizia existir uma constante renovação entre o real e a representação do real, que fazia com que o elo fundante de uma comunidade estivesse para além do campo dos dogmas e das regras. Buber falava-nos de uma lei intrínseca da vida, de um processo criativo, em permanente fase instituinte, que respeitava as tensões entre subjetividades. Talvez, então, pudéssemos concluir que a escola com projeto (e que cumprisse o seu projeto…) pudesse ser espaço e tempo de construção de comunidades. 

Um projeto humano sempre foi um ato coletivo e em permanente fase instituinte. A escola poderia ser um lugar, entre outros, de emergência de comunidades de aprendizagem, agindo como um dos nodos de uma rede social física e virtual, possibilitando a partilha de conhecimento real ou virtual, redesenhando mapas e trajetos da aprendizagem. Escolas são pessoas. E aquilo que faz das pessoas comunidades são os valores, as necessidades, os sonhos e até mesmo os problemas que elas partilham.

A transformação ou a reconfiguração das práticas, pressupunha a substituição do frontal passivo, centrado no professor, por um relacional ativo centrado na rede. Nesse frontal ativo sem centro (ou com o centro numa relação de vínculo) se desenvolvia um currículo subjetivo harmonizado com um currículo de comunidade. 

O currículo era uma construção social. Através da participação na construção do currículo, a pessoa exercitava a vida em sociedade. E, se a sociedade decidisse fechar escolas?

Para evitar que escolas com poucos alunos fossem extintas, extinguindo aldeias, criamos círculos de aprendizagem.

Deles vos falarei. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXL)

Pereira, 20 de maio de 2043

Nunca esqueci a minha passagem pelas nascentes de Luz, pelo lugar, onde o silêncio era escutado, onde o canto dos pássaros fazia sentido nos humanos ouvidos, onde rosas floriam namorando as uvas, como vedes pela imagem que junto a esta cartinha.

A Margarida ensinou-me a Pedagogia do Enxerto, técnicas antigas e um método de propagação de plantas. A sua aplicação demandava certos cuidados, para que as mudas funcionassem e não houvesse desperdício de recursos ou perdas de energia.

Nos idos de vinte, ainda havia professores que aprendiam, que se apercebiam da sua incompletude e sabiam que o ser humano estava em permanente estado de projeto. Seres humanos talentosos com projetos pessoais e sociais, agindo à margem dos cemitérios de talentos das salas de aula dessa altura. E educadores investindo na reelaboração da sua cultura pessoal e profissional. 

Não sendo responsáveis por aquilo que deles fora feito, assumiam responsabilidade responsáveis por aquilo que fizessem com aquilo que havia sido feito deles (foi o Sartre quem o dissera, embora por outras palavras).

No périplo da Primavera de vinte e três, embora politiqueiros e burocratas conspirassem na sombra, um “movimento” de regeneração tomava forma concreta e me fazia recordar um naco de freiriana prosa, pelo Paulo inscrita no livro “Professora, sim; tia, não”:

“Como esperar de uma administração de manifesta opção autoritária, que considere, na sua política educacional, a autonomia das escolas? Que considere a participação real dos e das que fazem a escola, na medida em que esta se vá tornando uma casa da comunidade? Como esperar de uma administração autoritária, numa secretaria qualquer, que governe através de colegiados? 

No Brasil, como em Portugal, havia quem ainda não tivesse compreendido que existia diferença entre ditadura e democracia, entre autoridade e autoritarismo no exercício do poder. Se já havia diretores de agrupamento extraordinários, também havia aqueles que se mantinham ordinários, inviabilizando projetos de mudança com tiques autoritários:

“Aqui, quem manda sou eu!”

Como gostava de ver “o copo meio cheio”, já procurara e encontrara administrações e secretarias, que já admitiam ser incontornável considerar a possibilidade de gestão autónoma das escolas. E que a autonomia era ato relacional resultante da reelaboração da cultura pessoal e profissional dos educadores. 

Conheci um professor insatisfeito com o seu desempenho. Ele se perguntava:

“Se eu faço um planejamento perfeito das minhas aulas e preparo belos materiais, por que será que alguns alunos meus reprovam? 

Se eu dou aulas tão bem dadas, por que razão há alunos que não aprendem?”

Um koan (iluminação súbita) se apresentou incontornável. E concluiu: 

“Se eu dou aula e há alunos que não aprendem, esses alunos não aprendem porque eu dou aula.”

Uma profunda perturbação o invadiu, o chão fugiu-lhe debaixo dos pés. Não poderia continuar a dar aula, mas ele só sabia… dar aula. 

Não se permitia manter-se instalado num ritual que condenava muitos jovens à ignorância. Mas, haveria outros modos de ser professor? Outros modos de ensinar? De que maneira todos poderiam aprender? 

Procurou e encontrou professores, outros professores “vivos”, que ousavam fazer as mesmas perguntas e não cediam ao fácil. Com eles se envolveu num projeto de mudança. Juntos, conceberam protótipos de comunidade de aprendizagem, espaços e tempos de uma nova construção social onde, verdadeiramente, se aprendia. 

Com uma tomada de decisão ética, um novo tempo da Educação se anunciava.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXIX)

Moita da Roda, 18 de maio de 2043

Acabo de encontrar notícias de um projeto, que acompanhei, vai para vinte anos. No e-mail (não sei se vos lembrais daquela espécie de carta abreviada, que não carecia de envelope e selo), os educadores da Moita da Roda, da Carreira e da lameira davam notícia de mais uma reunião com a sua comunidade. 

O encontro foi coordenado pelo Michael, morador e pai de dois alunos. As professoras escutaram elogios e críticas, esclareceram dúvidas, fizeram propostas. No final do encontro, sumos, chá e uns copos de tinto (conforme o gosto) acompanharam o saborear de uns docinhos confeccionados pelas crianças e de cerejas do Fundão e fatias de presunto (conforme o gosto). 

Enviei à Adélia e à Andreia o velho email achado no fundo do baú das velharias, onde repousam vestígios de vida vivida, como recordação de tempos idos, feitos de muitas dificuldades e de algumas alegrias. 

Naquele tempo de reinícios, o ranço da velha escola penetrara bem fundo na cultura do lugar. Escolas foram fechadas, aldeias foram despovoadas, assassinadas, viram partir os seus jovens para a cidade grande e os velhos irem morrer num “lar”, na sede do município. 

Em sentido inverso, diretores de agrupamento tentavam manter vivas comunidades em risco de extinção. A instituição Escola ganhava novos significados. Aderia a práticas permaculturais, inventariava tecnologias e saberes populares, retomava tradições…

Na casa de um jovem aluno, os educadores encontraram uma avó, fabricando sabão com restos de óleo. Pais se organizaram numa cooperativa de produção e consumo alimentar resultando na criação de emprego, em geração de renda, sustentabilidade. 

Também eram identificados lugares com potencial educativo: quadras, igrejas, padarias, praças, casas, centros culturais, bibliotecas comunitárias. O mapeamento ia mais fundo, atingia uma segunda camada, com recurso a uma inteligência artificial, que contribuía para o bem-estar de todos e para a humanização do ato de aprender e ensinar.

Na Primavera de vinte e três, o vosso avô andava por terras de Dom Dinis e Dona Isabel. Abro um parêntesis sem parêntesis: 

Dizia a minha amiga Andreia que se deveria inverter a ordem dos nomes e colocar a Isabel como protagonista dos feitos atribuídos ao marido. Creio que a Andreia tinha razão. Aliás, a partir daquela idade em que podemos dizer tudo o que nos via na alma, sem pensar nas consequências, eu afirmava que por detrás de uma grande mulher havia sempre… um homem.

Mas, voltando à vaca fria… Nem só em terras leirienses acontecia renovação. Do Minho ao Algarve (ou deveria ser ao contrário?), diretores de uma nova geração, educadores éticos e comunidades revividas encetavam práticas fundadas numa nova visão de mundo. 

Quando me despedi da margarida e da Eduarda, nas Nascentes de Luz, eu levava comigo a certeza de que, quando chegasse a primavera seguinte e ali voltasse para a celebrar, já iria assistir a profundas transformações sociais.

Muitos anos antes do surgimento dos círculos de aprendizagem e dos protótipos de comunidade de aprendizagem, um sociólogo chamado Pierre escrevera uns livrinhos, nos quais demonstrava que a Escola produzia e reproduzia desigualdades. E que, perversamente, ocultava os seus critérios sob o discurso do mérito individual. 

Muitos educadores encontram nas suas obras a inspiração, para inverter o fatalismo da reprodução escolar e social. E um jovem centenário de nome Edgar dizia-nos que tudo o que vivia deveria regenerar-se incessantemente: o sol, o ser vivo, a biosfera, a sociedade, a cultura… o amor.

 

Por: José Pacheco

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