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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXVIII)

Santa Rosa, 6 de agosto de 2043

Há trinta anos, a imagem que junto a esta cartinha foi colhida quando aprendíamos a construir comunidades de aprendizagem, segundo uma visão de mundo sustentável. Era um tempo de promessas de mudança. Depois, foi um tempo de sonhos traídos. Talvez por isso, a Bruna perguntasse:

“Por que já não pões poesia naquilo que escreves?”

Disse-lhe que, no Gaia Escola, a poesia era uma arma carregada de futuro. E que o idealizado futuro fora hipotecado. 

Mas, no agosto de vinte três, a poesia estava na rua, nas casas, na Internet, consubstancializada em tangíveis gestos. Os sobreviventes de um tempo feito de desamor e medo ressurgiam como freireana fénix e se doavam em amor e coragem.

Na “volta às aulas” do fim de um “recesso”, se reativava, um “grupo de trabalho”. Essas vetustas expressões se juntavam a absurdas locuções, como “carga horária”, e a outras antigas enunciações, como “relatório”. Pois foi um relatório elaborado, ao final de meio ano de reuniões de um GT, que marcou o rumo de poéticos gestos cotidianos. Entre a palavra escrita e a palavra em ato, se concretizou a poesia de Mia Couto: “O poeta faz agricultura às avessas / numa única semente / planta a terra inteira.”

Eis o que constava de um “relatório” pleno de potencial poético:

“O presente relatório contempla o conjunto de atividades desenvolvidas nos primeiros 180 dias de funcionamento do GT criado para o cumprimento efetivo do estabelecido na Constituição da Federação, na Lei de Diretrizes e Bases, na Declaração Universal dos Direitos da Criança, no ECA e nos projetos político-pedagógicos das escolas, de modo a garantir a todos o direito à educação e um desenvolvimento comunitário sustentável.

No período antes referido, com o propósito de viabilizar a criação de uma rede de protótipos de comunidades e aprendizagem, foram efetuados encontros de formação presencial e à distância. Entre encontros, me mantive disponível para acompanhamento do processo de instalação de dispositivos de relação, para a introdução de práticas de currículo tridimensional, de instrumentos de avaliação e do trabalho em círculo de aprendizagem.

A intervenção direta nas escolas permite fazer um “ponto de situação” e planejar próximos passos. Mostrou-se evidente a necessidade de revisão do tipo de formação de professores, porque milhares de cursos não lograram alterar a qualidade da educação. Urge promover uma formação de profissionais de desenvolvimento humano em contexto de inovação educacional, na prática de modalidades de formação propiciadoras de condições de mudança. Ouso sugerir ao departamento de formação, a criação de um círculo de estudos no âmbito do desenvolvimento curricular, estudo de legislação e alfabetização linguística, por serem domínios de intervenção urgente. Urge deixar de considerar o formando como objeto a capacitar e conceber o professor sujeito de aprendizagem, na dignidade do exercício da profissão, e no contexto de uma equipe de projeto. 

A utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação ficou comprometida, dada a falta de uma Internet estável. Mas, apesar das dificuldades, foi possível propiciar aos alunos, a realização de algumas pesquisas, com recurso aos celulares das suas tutoras.

Ainda que precariamente – e mercê do elevado profissionalismo de algumas professoras –, foram formadas equipes de projeto e esboçado o funcionamento de turmas-piloto. De algum modo, foram supridas necessidades de reelaboração da cultura pessoal e profissional de excelentes profissionais. 

(continua)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXVII)

Itacoatiara, 5 de agosto de 2043

Na obra “O Brasil como problema”, Darcy questionava: “Quem implantou esse sistema perverso e pervertido?” E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira precisaria ultrapassar. 

Desde há décadas, a UNESCO e dezenas de outras  organizações, não atinavam com a resposta. mas, ela constava dos manuais de Sociologia, Filosofia, História, ou Psicologia da Educação – se o sistema era perverso e pervertido, mudássemos de sistema. 

Uma pesquisa realizada entre setembro de vinte e dois e abril de vinte e três, dava conta do descalabro. Amanhã, vos enviarei um relatório. Não sei se deverei dar-lhe esse nome, ou se deverei chamar-lhe a “gota de água”, que fez transbordar impaciência.  

Nesse tempo, impunemente, as escolas não cumpriam a Constituição, nem a Lei de Bases. O Estado não cumpria acordos internacionais, que tinha assumido. E eu reagia, viajando sem cessar, ao encontro de educadores vivos, escrevendo esperançosas cartas, crente de que o exemplo de vida de educadores de eleição fosse origem de novas aprendizagens. Ledo engano!

A minha andarilhagem não consentiu que eu beneficiasse de estabilidade afetiva. De lugar em lugar, entre o palco de congressos e o chão das escolas, fui levando uma vida nomade. Na minha centésima ida a Belo Horizonte, pensava poder dispor de um tempo de convívio com amigos que lá tinha deixado. Não tive. Em Confins, o voo não esperaria por retardatários. 

Apenas pude trocar breves palavras com a minha amiga Norma. Passados alguns dias, enviou-me esta mensagem:

“Vc tem buscado nos ensinar, durante anos de convivência no Brasil, a vivenciar comunidades de aprendizagem. Porém, sem conseguir na sua plenitude e continuidade. 

O importante é saber que temos iniciativas de implementar dispositivos e mudança de cultura, em diferentes escolas, pelas quais passou. São iniciativas incipientes, mas tendo vc também como referência. 

Tenho me esforçado para fazer diferença nas escolas onde atuo e atuei, desde que conheci Paulo Freire e você, Zé. Peço desculpas por mim e por outros com os quais convivo e convivi por não conseguirmos. Tentamos alçar vôos na implementação de comunidades de aprendizagem e, infelizmente, não conseguimos. 

Vou me organizar para participar nos encontros de formação, das quartas-feiras e dos sábados.”

Disse à minha amiga que, embreve, seria divulgado o acesso a esses encontros. Fui prepará-los, começando por elaborar um relatório do trabalho realizado até ao fim do “recesso” brasileiro e a meio do período de férias português. Estávamos no agosto de vinte e três e ainda vigorava um sistema de tempo-padrão, ainda havia recessos e férias, como se a inteligência dos alunos parasse de funcionar em dezembro e voltasse a funcionar em fevereiro (em Portugal, entre junho e setembro).

Muito tempo atrás, o Olivier avisava que aprender, em todos os domínios, era desaprender, mudar de hábitos no mais íntimo do ser humano. Aprender era romper com hábitos que se tornaram uma segunda natureza, abandonar pseudocertezas, afastar “obstáculos epistemológicos” oriundos da tradição e da experiência ingénua.

Durante a primeira das pandemias, lancei apelos vários, convites a uma decisão ética. Apercebendo-me de que os professores nada tinham aprendido com a Covid e que a administração educacional se mantinha hierárquica e autoritária como antes era, que as práticas se mantinham tão excludentes como dantes, o que restaria fazer? 

No agosto de vinte e três, pusemos em prática a teoria que o Olivier e outros distintos mestres nos legaram. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXVI)

Ipê, 4 de agosto de 2043

Para que não digais que só vos falo de desaires e queixumes, vos ofereço alguns excertos de boas-novas, recebidas nos idos de vinte.

A “profecia” de Agostinho dos anos sessenta tomava forma concreta. Se o Portugal quinhentista havia desembarcado na África, na Ásia e na América, era chegada a vez de Portugal desembarcar em… Portugal. 

A Escola Aberta de São Paulo abria as portas, para acolher educadores sedentos de novas e humanizadoras práticas. A Marta e a Rute foram as primeiras professoras que atravessaram o oceano, para participar de “vivências” numa das escolas de referência de uma nova construção social. Outras “travessias” se seguiriam. 

“Muito bom dia professor! Escrevo-lhe para confirmar que, nos dias 21, 22 e 23 de agosto, estarei na Escola Aberta de São Paulo. Esta oportunidade vem renovar a esperança de voltar a acreditar que é possível fazer evoluir uma comunidade para valores genuínos, de respeito mútuo, aquela que é a base da co-construção de cada projeto de vida, que pela escola/comunidade se cruza.

É muito importante para mim renovar esta esperança, sobretudo porque a maternidade me trouxe não só essa urgência, mas também uma maior consciência do que quero oferecer ao meu filho e, se possível, aos que se cruzam com ele, comigo (connosco), neste lindo caminho que é a vida. 

Um abraço, até breve, Marta.”

“Bom dia, professor! Sou a Rute, professora viva de São João da Madeira. Hoje, terei reunião com a diretora Helena e o representante do centro de formação, o Daniel. A reunião será às 11h, se surgir alguma dúvida no momento, posso contactá-lo?

Professor obrigada por tudo. A turma-piloto segue, já hoje, para a aprovação. Como eu já não tinha dúvidas, fui respondendo a tudo sem problema e com a ajuda do Daniel. A primeira pergunta que a diretora me colocou foi se eu tinha a certeza. Eu respondi que não só tenho a certeza, como estou à espera disto, há anos!”

“Boa tarde, querido professor! Como está? Só para lhe dizer que a nossa turma piloto foi aprovada na escola de Fundo de Vila. 

Próximo passo? Constituição do Núcleo de Projeto. Desenhar a Lista de Valores e uma proposta de termo de autonomia. Não tenho parado de ler, professor. Mas, o mais importante será trabalhar com o coração.”

Voltando a Portugal, estas educadoras operaram profundas transformações nas suas práticas, e não estavam sós. Nas duas margens do Atlântico, centenas de educadores se lhe seguiram o exemplo. Diretores apoiavam iniciativas. Os projetos das escolas eram analisados pelos núcleos de projeto. Eram elaboradas matrizes axiológicas. Cartas de Princípios definiam o rumo dos projetos que assegurariam coerência escrita e prática. Contratos e termos de autonomia eram enviados para a administração educacional, acompanhados de propostas de diálogo. Planos de inovação eram esboçados. 

E, porque Freire dissera que criar o que não existia deveria ser a pretensão de todo sujeito que estivesse vivo, famílias procuravam nas escolas professores que ainda não tivessem morrido. Na génese das comunidades, se deveria priorizar a necessidade da transformação do professor-objeto de formação em professor-sujeito, no contexto de uma equipe de projeto. Uma formação de novo tipo teria início no décimo segundo dia de agosto. 

O empreendimento era grande demais para ser assegurado por uma pequena equipe. Na semana que antecedeu o primeiro encontro virtual de formação, foram criadas as primeiras “assembleias de redes de comunidades de aprendizagem” (ARCA), em regiões onde já havia “projetos de referência”, como o da Escola Aberta. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXV)

Viradouro, 3 de agosto de 2043

Num agosto dos idos de vinte, ao lado da Priscila, participei num auspicioso encontro e, durante alguns anos, ajudei devotados trabalhadores da educação a colocar alicerces no sonho de um prefeito. Mogi tinha condições de vir a ser um potencial locus de inovação. Com a ajuda da Tina, a Bia e a Noeli assumiam uma exigente coerência praxeológica, não confundindo mudança educacional com modismos importados da Finlândia. Só faltava assegurar continuidade, efetivas mudanças.

“Só o que está morto não muda!” – dissera a Clarice – e o que estava morto deveria ser enterrado. Na cartinha de anteontem, vos falei dos primeiros tempos do projeto “Fazer a Ponte”, tempo de ousadia e resiliência. tempo de desobediência civil. Hoje, vos trarei notícia do início do fim desse tempo opróbrio, feito de obsoletas práticas, que não resistiam ao ímpeto de sete perguntas: 

Por que aprendemos? O que precisamos aprender? Quando aprendemos? Onde aprendemos? Com o quê e com quem aprendemos? Como aprendemos? Como sabemos que aprendemos? 

Em simultâneo com a leitura crítica dos projetos das escolas, esse arrolamento de questões essenciais foi uma das primeiras tarefas dos processos de mudança conducentes à inovação, à conceção da nova construção social de aprendizagem, inúmeras vezes teorizadas e jamais experienciadas. 

Estávamos no agosto de vinte e três. À medida que iam sendo dadas respostas práticas a tais perguntas, logo defrontávamos sete obstáculos.

O primeiro obstáculo à mudança seria eu, se não modificar a minha cultura profissional.

O segundo obstáculo se configurava nas famílias e numa sociedade doente, que “achava que a escola deveria ser como sempre foi” ignorando que nem sempre fora assim.

O terceiro consistia na reação dos alunos, sobretudo universitários viciados em práticas de sala de aula, apenas desejosos de obter um diploma.

O quarto obstáculo decorria da formação inicial e continuada, que teoricamente propunha mudança, mas reproduzia um modelo educacional herdado da primeira revolução industrial.

Lideranças tóxicas que, da administração à direção das escolas, engendravam normativos de cariz técnico-instrumental, se constituíam num quinto obstáculo.

As nefastas intervenções dos áulicos, “especialistas e doutores em educação” saídos das catacumbas da educação do século XIX, eram o sexto obstáculo.

O sétimo era aquele que eu considerava mais doloroso de aceitar – o maior aliado de um professor era outro professor, e o maior inimigo do professor que ousava fazer algo diferente era… outro professor.

Eram sete as perguntas, sete eram os obstáculos e sete os modos de os ultrapassar. Bastaria invocar os pilares da educação da UNESCO e juntar-lhe mais três. Deveríamos reaprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser. Também, a desobedecer, a fundamentar e a desaparecer. Sabíamos que a solidariedade deveria andar a par com o desprendimento, com o dom do desapego. 

Situações vis, vividas em lugares onde uma nova educação acontecia foram a gota de água que faltava para fazer transbordar um copo meio-cheio. É, netos queridos, o vosso avô ainda hoje se refugia em aquosas metáforas, para não dizer da indignação sentida, quando recorda perdas e danos.

Respeitando a atitude conservadora daqueles professores que não queriam mudar, valendo-se da intuição e da amorosidade, não fazendo das crianças cobaias de laboratório, houve quem fizesse jus à memória de Freire. Mas, em muitos lugares, as mazelas do “sistema” deram origem a cemitérios de projetos.

Como ultrapassaríamos os obstáculos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXIV)

Rio do Ouro, 2 de agosto de 2043

Entre agosto e setembro de vinte e três, muitas mensagens, manifestações de cansaço chegaram à minha caixa do correio. Não as guardei no baú das velharias, mas num velho computador. Dele extraio estes apelos.

“Meu nome é Liria. Sou de Teresópolis e trabalho num espaço criativo. Me sinto só, buscando parcerias. Criar um grupo de conversas e convidar pessoas seria um bom caminho?” 

“Sou a Mariana. Faço minha pesquisa de doutorado na Escola Municipal Polo de Educação Integrada, o POEINT, que o senhor conhece e ajudou a construir com as bases pedagógicas alicerçadas na Escola da Ponte. 

Trabalho em outras duas escolas públicas, há 15 anos, estou sozinha, buscando novos caminhos. Confesso que estou um pouco cansada, pois, o Sistema insiste num modelo falido há anos. 

Preciso de ajuda para realizar uma transformação de fato. Ou sou eu que preciso sair do sistema, para que eu possa sobreviver? Não sei se foi bem uma pergunta, mas talvez um grito de socorro.”

Fui a Portugal, correspondendo a convites de amigos. Encontrei uma sociedade exausta de reformismos. Deparei com vidas plastificadas e apressadas, com escolas possuídas por uma angústia pandémica. Reencontrei professores doentes da mesma solidão de antanho. 

“Na escola pública em Portugal não há comunidade, não há autonomia e não há relação. Quando aparece alguém a fazer diferente, é “chacinado”.

“Infelizmente, há poucos professores felizes. Como fazer crianças felizes?”

A norte, revisitei uma Ponte sobre águas turbulentas e agarrei a “segunda oportunidade” da Daniela. No Minho, ajudei dedicadas mães exigindo para os seus filhos uma escola do século XXI. 

Onde suspeitava encontrar só desalento, uma nova geração de educadores despontava, uma utopia se concretizava, uma nova educação surgia. O afã de diretores de agrupamento e de professores marcava um auspicioso recomeço. Não resisti a tão tentador convite. Reuni energias dispersas. E num derradeiro fôlego, me deixei atrair por novos e retomados projetos. 

Voltando ao Brasil, nos encontros de Instagram, em catadupa, surgiam perguntas de sempre.

“Somos um espaço pedagógico e recreativo que atua, também, com Acompanhamento Escolar (Reforço). Entendo que tanto o termo quanto o sentido de “Reforço” é inapropriado (para não dizer outra palavra). O fato é que noto que a comunidade tem muito essa necessidade de que alguém ajude os filhos com as inúmeras ‘tarefas de casa’ passadas pela escola. 

Como atender esse anseio das famílias em ajudar nas tarefas de casa, estudo para prova, trabalhos escolares e, ao mesmo tempo, trabalhar novas construções de aprendizagem com as crianças e adolescentes?”

“Faço serviço voluntário, há muitos anos. Realizo trabalho junto a pessoas em situação de rua e em comunidades terapêuticas para recuperação da dependência química. Fala-se muito em insegurança alimentar, mas como não tê-la presente em lares onde muitas vezes está presente o abuso de drogas e por consequência a violência? 

Como fazer a ” Educação” chegar nestes locais?” 

A resposta sempre foi uma só: pela Educação. Não aquela que, com aspas, era praticada na Família, na Sociedade e na Escola, mas uma nova Educação para um novo tempo, uma nova construção social de Educação.  

Ao longo de meio século, tinham sido muitos os ciclos de euforia a que se sucederam ciclos de frustração. Por isso, recomendava a pais conscientes dos seus direitos que fossem à escola mais próxima e procurassem professores que ainda não tivessem morrido. – Muitos resistentes ainda havia! –  E que lhes estendessem uma mão amiga. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXIII)

Algures, no dia 1 de agosto de 2043

Nos idos de vinte e três, os jovens da fotografia, que junto a esta cartinha, tinham entre 58 e 62 anos de idade. Alguns já eram avós. Três deles já tinham falecido. Era doloroso ver partir um aluno, quase como “arrumar o quarto do filho que já morrera”.

Muita água passou em volta da Terra-de-Entre-Águas (o significado do nome da terra onde a Ponte aconteceu). Há muito tempo já, o vosso avô tomara uma decisão ética irreversível. O tempo de, quixotescamente, pelejar contra ventos e marés cessara. 

Neste ano da graça de quarenta e três, é chegado o tempo de fazer a memória de outro tempo, o dos últimos vinte anos. 

Naquele tempo, tomando consciência da inutilidade do confronto com um monstro de sete cabeças (o “sistema”), decidi recomeçar como começara, na Ponte dos idos de setenta, quando ousei desobedecer a autoritárias ordens e escapar às armadilhas da sorte, logrando estabelecer práticas do paradigma da aprendizagem. pela primeira vez na história da educação o escolanovismo passava da teoria para uma práxis, na qual o aluno assumiu autonomia, passou de objeto a sujeito de aprendizagem.

Quando me emancipei da solidão da sala de aula, a senhora diretora me ordenava que para lá voltasse. Gritava que não permitiria “falta de respeito pelas autoridades” 

Eu recomendava-lhe calma, dizia-lhe que só estava a cumprir a lei e a atender a recomendações de Montessori, de Dewey, da Elise, do Celestin Freinet.

“Não sei quem são esses seus amigos estrangeiros, mas sempre lhe digo que anda com más companhias” (sic)

Aquela diretora “dadora de aula” ignorava a existência e a obra desses e de outros insignes pedagogos. E, sempre que eu quis saber por que me ordenava que voltasse para a sala de aula, ela nada respondia. Ameaçava de fazer queixa ao delegado escolar.

O delegado era boa pessoa, com gentileza me pedia que “acatasse as ordens da senhora diretora”.

Agradecia o conselho, mas não “acatava”.

E lá vinham os inspetores do ministério ameaçar-me com suspensão e até exoneração, acaso eu insistisse em desobedecer aos superiores hierárquicos.

A minha costelinha taurina deixava-os a falar sozinhos. e, serena e resolutamente, aguardava o início dos processos disciplinares.

Havia lido Thoreau:

“Se você já construiu castelos no ar, não tenha vergonha deles. Estão onde devem estar. Agora, dê-lhes alicerces.”

E agia como Gandhi agira e recomendara. 

Na Índia da primeira metade do século XX, reagira às injustiças perpetradas pelo Império Britânico. monopólio britânico proibia os hindus de produzir o seu próprio sal e Gandhi decidiu desobedecer às “Leis do Sal”. 

Quando o colonizador ameaçou com represálias, Gandhi informou o vice-rei de que iniciaria uma desobediência civil em massa. E levou os indianos a desafiar o imposto salino cobrado pelos ingleses.  A “Marcha do Sal” foi uma das iniciativas não-violentas, que contribuíram para libertar a Índia do colonialismo britânico. 

Em 76, eu lera a crítica do instrucionismo feita pela Clarice, quase numa espécie de autocrítica: 

Quando penso que eu dava aulas de matemática e português a ginasianos, mal acredito. Porque hoje seria incapaz de resolver uma raíz quadrada. Quanto a português, era com o maior tédio que eu dava regras de gramática. Depois, felizmente, vim a esquecê-las. É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente”.

Há setenta anos, colocamos na entrada da Escola da Ponte um cartaz com versos atribuídos à Clarice:

“Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.

Só o que está morto não muda!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXII)

Engenho do Mato, 31 de julho de 2043

Uma professora universitária divulgava dados de pesquisa recente: “sessenta por cento dos municípios não cumpriam a lei antirracista, que  estava no papel há vinte anos”. Referia-se aos direitos dos negros, que, no dizer da pesquisadora, “não faziam parte da prática quotidiana das escolas, porque só havia dois tipos de escola”: as escolas que cumpriam as leis e as escolas que não cumpriam as leis”.

Foi, exatamente, aquilo que ela disse, num congresso a que assisti. Denunciava a discriminação, a exclusão dos negros. Esquecia a dos brancos quase negros, a dos negros quase brancos, a dos brancos, a de todas as cores. Eram raras as “escolas “arco-íris” cumpridoras da lei. 

A senhora findou o discurso dizendo ser necessária uma “virada epistemológica”. Tinha razão. Só não sabia que essa “virada” já tinha começado. E, por habitar o “sétimo céu” da teorização, por quase nada saber da prática pesquisada, se quedou pelo discurso. 

E eis que, no mesmo dia, acolho queixas de jovens almas censuradas. Do chão da escola, vinha a voz de uma resistente:

“Boa noite, professor! Vou te contar uma historinha de uma cidade “desconhecida”. A gestão da cidade está preocupada, pois estamos no ano de SARESP + SAEB + IDEB = $$$.

O paradigma da aprendizagem e o da comunicação chegou há menos de dois anos nesta cidade e, em respeito a Anísio Teixeira, o pai da escola pública, alguns professores vivos se recusaram a praticar a educação bancária e adestrar os alunos para passar em provas ineficientes, que só testam a decoreba de conteúdo depositado.

Por conta das provas externas ($$$), mais uma vez os professores vivos receberam ameaças nada veladas de encerramento dos seus projetos. Muitos municípios devem estar preocupados ($$$) com as notas que medem a decoreba das crianças. 

Aproxima-se um ano de sofrimento para os aprendizes e para os professores.”

Outras mensagens eram lenitivo para a descrença e para evitar do sofrimento:

“Que momento especial de partilha que tivemos ontem ❤️ (assim mesmo, com um coraçãozinho a acompanhar). Foi nítido ver união e respeito entre todos nós.

Segue um breve resumo de algumas reflexões, que deram lugar a nossa árvore de valores: a diversidade está presente, tanto no pessoal, quanto no cultural, respeito ao outro, seja adulto ou criança; valorizar a relação com o outro, pois temos de parar de fazer pelo outro, para fazer com o outro.”

A todos os educadores que ainda resistiam, recomendei que, para cumprir a lei, exercessem desobediência civil, pacifica e decididamente, para que não lhes acontecesse o mesmo que a outros professores que, sem o saber, profissionalmente, morriam aos vinte e eram enterrados aos sessenta. 

O poeta argentino Santiago Kovadloff avisava: 

“Morrer bem é morrer a tempo. Não há pior inferno do que assistir as exéquias do próprio desejo. Ao funeral das nossas paixões. A morte é por isso… o que nos persegue diariamente. O que nos esteriliza, o que encalece a pele. A ausência de propósito, apatia, desapego aos seres… Essa é a morte que mata e não a que vem depois. Por isso, vamos implorar que a morte nos surpreenda sedentos ainda, exercendo a alegria de criar. Que nos desligue quando ainda estamos ligados.”

Há tempos, vos disse que, sempre que alguém me pedia ajuda, eu sugeria que fosse à escola mais próxima e procurasse um professor que ainda não tivesse morrido. Pedia-lhes que estivessem atentos e atentas às cartinhas do mês de agosto e que não faltassem aos encontros de sábado. O primeiro realizar-se-ia no dia 12. a diligente Zizi divulgaria o modo de participar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXI)

Várzea das Moças, 30 de julho de 2043

Naquela tarde de um distante domingo de julho, a fraterna e alegre companhia da Valéria, da Vovó Ludi e do Mauro me fez recordar um outro julho feito de tristeza e luto. Dei por mim relendo mensagens recebidas do meu amigo Rubem. Tinham decorrido nove anos sobre o seu falecimento, mas sentia a sua inefável presença junto daqueles que mantinham viva a sua memória. E senti necessidade de lhe escrever esta carta, quase perdida no fundo do baú das velharias.

Querido amigo,

Eu já havia publicado algumas cartas, quando tu, o Manoel e o Ariano partiram. Falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram quinze anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país. 

Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não cessa o meu aprender com professores, para os quais és inspiração e que conservam na memória e nas práticas as tuas sábias palavras: 

Educar não é ensinar matemática, química, português, que essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. A coisa mais deletéria na relação do professor com o aluno é dar a resposta.”

Poéticas e cruéis sentenças escreveste, meu amigo, porque a tua vida foi coerente com aquilo que escreveste. A tua obra – extensa, diversificada, pautada numa complexa simplicidade – suscita múltiplas leituras. Instigou-me a penetrar mais fundo em contraditórias realidades, observadas por um desarmado olhar europeu, que se surpreendia perante o ostracismo a que alguns pedagogos brasileiros eram remetidos. 

Deste-me a conhecer facetas inesperadas de um Freire, sobre cuja integração na universidade redigiste um “não-parecer”. Como ele, sofreste o exílio, no período sombrio dos governos militares, que marcou o desaparecimento das escolas vocacionais e de outros projetos, que poderiam ter alçado a educação brasileira ao nível da excelência. 

Sei que te fará feliz o saber que uma nova geração de educadores emerge, no Brasil como em Portugal, operando ruturas e não prescindindo do património que tu e outros pedagogos nos legaram. 

Valeu a pena teres vivido “na contramão da História”, aprendendo a surfar o dilúvio de lixo educacional em que a sociedade e a escola se afundaram. Valeu a pena viver a sina de “romântico-conspirador”, pois confirmaste a existência de seres (que o Brecht diria serem indispensáveis), numa carta, de que ouso transcrever um pequeno excerto: 

“O bom é sentir que a “pia conspiratio” é muito maior do que se imagina. Há milhares de irmãos e irmãs desconhecidos sonhando o mesmo sonho.“

Na tua derradeira entrevista, reiteraste a afirmação de que a educação deveria passar por profundas mudanças. Pois fica sabendo, querido amigo, eu talvez os governantes tenham, finalmente, reconhecido o dito de Mandela: 

A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.”

Resta saber qual é a educação que os governantes têm em mente. Resta saber se essa proclamação é um grito do Ipiranga educacional, ou um prenúncio de morte, porque o sistema já não aguenta mais promessas e paliativos. Tu, que dizias que os educadores deveriam ser esperançosos, saberás agora, que a esperança (de “esperar”) não poderá ser adiada. 

Requiescat in pace, amigo Rubem. Se o teu estatuto de pastor te conferir crédito junto do Pai, pede-Lhe misericórdia para as crianças e o perdão daqueles educadores que recusam escutar-te.

 

Por: José Pacheco

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