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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVIII)

Cariri, 14 de dezembro de 2043

Nas vésperas da criação das ARCAs (creio já vos ter falado dessa fraterna organização), eram intensas as trocas epistolares. Transcrevo uma mensagem, relato de auspicioso futuro. Amanhã, vos trarei uma carta reivindicativa.

“Prezado Professor José Pacheco,

Ao longo dos últimos quatro anos, o grupo escola esteve num denso e intenso processo de transformação da escola. Indagamo-nos o motivo pelo qual não estávamos conseguindo concretizar o nosso compromisso: proporcionar aprendizagem com sentido e significado às crianças.

A identificação dos problemas e a construção das alternativas que construímos não foram suficientes para explicar e superar as enormes dificuldades de aprendizagem. Prosseguimos com a indagação.

Afinal, quais os motivos pelos quais profissionais, em sua grande maioria, comprometidos com a educação e com as crianças matriculadas nesta escola e com competência pedagógica, não alcançam melhores resultados?

Foi um esforço enorme do grupo, reflexões, mudanças, com muita disposição e disponibilidade. Identificamos avanços nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, principalmente naqueles referentes ao protagonismo e participação na vida escolar. Não obstante, tais avanços (de absoluta importância, diga-se), e considerando-se o empenho frente a empreitada de tal monta, o grupo não estava satisfeito plenamente com os resultados,

Convidamos educadores, diretores de escola, supervisores, para que respondessem às nossas indagações. O corolário desse processo foi a sua presença em nossa escola, num dos momentos de maior boniteza que vivemos, ao longo dos nove anos de projeto. Foi um imenso impacto em nossa comunidade escolar. 

Fazendo convergir nossas indagações com o diálogo que mantivemos, construímos orientações. Definimos nossa proposta, qual seja: para melhorar é preciso transformar. Mas qual modelo seguir? Nossa resposta: nenhuma. Inspiração e exemplo foi o que buscamos, para construir uma escola da qual todos se orgulhem de fazer parte. 

Buscamos conhecer escolas com práticas transformadoras, na nossa rede municipal e em outras redes, tais como o Projeto Âncora, a Campos Salles, al Amorim Lima etc. Amiúde trazem em seu bojo a proposta de transformação da organização escolar. 

A partir destes exemplos, destas inspirações, e com base no princípio de não seguir modelos, no nosso horizonte foi se desenhando o ideal de uma escola na qual professores são sinonimizem a prática docente com dar aulas e alunos, a provas, crianças divididas por faixa etária; trabalhos isolados em salas de aula, regras e normas apenas impostas e cobradas. 

Na avaliação do grupo escola, escolhemos aspectos que pudessem se constituir como ponte entre a escola que temos e a que queremos construir. Os professores não mais prepararam aulas, mas construíram roteiros de aprendizagem. Passamos a contar com espaços de aprendizagem para além da sala de aula; elaboramos os valores que devem fundar todas as ações, projetos e planejamentos da escola, a partir de seminários, cujo escopo foi o de refletir a a partir do seu  Dicionário de Valores – Respondemos a pergunta: Por qual desses valores eu iria até o fim do mundo para defender? Escolhemos Responsabilidade, Respeito e Autonomia.

Fizemos a opção ética, profissional e político-pedagógica de que, como diria Paulo Freire, “O mundo não é, o mundo está sendo”, e com passos curtos, mas firmes, construímos veredas rumo ao processo de transformação da escola, demonstrando que “outro mundo é possível”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVII)

São Cristóvão, 13 de dezembro de 2043

Netos muito queridos, certamente, estareis recordados de vos ter contado uma estória passada numa instituição universitária, cujos protagonistas foram alunos do último semestre do curso de formação inicial de professores, jovens que tinham sido preparados para a docência.

Dizia-nos o dicionário que docente era quem ensinava; quem “ministrava aulas”. E muitos dos “ministradores” nunca chegaram a ser professores. Aqueles que iriam dar aulas de química tudo sabiam de química. Os de história conheciam bem os conteúdos da sua disciplina. O mesmo acontecia com os futuros docentes de língua portuguesa, matemática, física, música, filosofia… Eram exímios no domínio da “matéria” da área em que se tinham especializado. O drama consistia em que, ao pretender ensinar alunos, não faziam a mínima ideia de como os alunos aprendiam. Um conhecido palestrante dissera que os dadores de aula pensavam que ensinavam, enquanto os seus alunos fingiam que aprendiam.

Nessa instituição, como na maioria das escolas de formação, não eram criados os “viveiros do futuro”, que o Mestre Morin havia imaginado. Quando pedi aos meus alunos “evidências de aprendizagem”, para que constassem dos seus portfólios, entregaram-me “trabalhos de conclusão de curso” enfeitados com citações do tipo: segundo Piaget, Vygotsky disse… Eu devolvia-lhes os textos, dizendo-lhes que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram fruto de pesquisa – eram cópias. 

Disse-lhes que não me aparecessem com trabalhos semelhantes a teses engordadas com a costumeira lengalenga do “fulano disse”, do “beltrano disse”, porque eu não era “pedagogo fofoqueiro”, não me interessava saber aquilo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes, a produção de conhecimento. Se eu quisesse saber o que algum pedagogo escrevera, iria ler as suas obras.

Desde o final da década de setenta, nada de novo havia surgido no domínio da produção de conhecimento, no campo das ciências da educação. Nesse tempo, essa delicada área das “ciências humanas” em que todo o mundo se sentia no direito de dar opinião fora invadida pela praga do teoricismo. 

Peagadeuses e quejandos fabricavam e vendiam palestras de power point, publicavam “papers” (o anglicanismo parecia conferir maior credibilidade à “fofoca teoricista”), que não passavam de citações de outras citações (obra, autor, número de página), como se esse “rigor” conferisse à produção teórica – melhor dizendo, reprodução – caráter científico.

Estávamos nos anos noventa, tempo do aparecimento do copy past da Internet. Cortei o mal pela raiz. Ajudei os meus jovens alunos. Ensinei-lhes aquilo que, nos quatro anos de formação, lhes deveriam ter ensinado. 

Para que soubessem pesquisar, ensinei-os a elaborar roteiros de pesquisa, a selecionar informação pertinente, a avaliar e a comparar diferentes informações (como já havia uma precária Internet, desenvolveram senso crítico suficiente para identificar “fake news”). Ensinei-os a comunicar, a produzir currículo, a sintetizar conhecimento, a partilhar “evidências de aprendizagem”, a transformar conhecimento em ação, desenvolvendo “competências”.

Encontrei-os, trinta anos depois, cinquentões, dirigindo agrupamentos de escolas, ou vereadores da educação em autarquias. Os professores eram maioria. Uma minoria tinha fugido das agruras do chão da escola, fora dar aula na universidade. 

A prática de sala de aula, com maior ou menor tratamento paliativo ou com a introdução de modismos readaptados, seguia igual à dos ancestrais.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVI)

Ilha Bela, 12 de dezembro de 2043

Foi por volta dos idos de vinte que as redes de comunidades de aprendizagem foram surgindo. Eram ensaios de novas construções sociais, caraterizados pela prática de uma efetiva educação integral. Eram projetos de humanização, que a todos garantiriam o direito à educação.

Talvez fossem a Escola Pública sonhada por Anísio, o espírito e a letra de Lauro e de outros insignes educadores:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento. Isto é: a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio.”

Sentindo-se como um nodo de uma comunidade, a escola cria, planeja e respira projetos de interesse da sua gente, da sua realidade. Em comunidade, cumpriria preceitos da Constituição, da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Naquele tempo, eram criados “grupos de trabalho”. O primeiro fora criado pela Portaria Nº 276, de 16 de agosto de 2019, da Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal. A esse “GT” era outorgada a missão de propor “Diretrizes de Política Pública para a Implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino” (sic).

Quase três anos decorridos, O “Termo de Referência” de 20 de maio de 2022, da Secretaria Municipal de Educação de Maricá antecedeu a publicação da Resolução PMM/SE Nº 16/ 2022, de 19 de dezembro de 2022, anunciadora do GT das comunidades de Maricá. 

No ano seguinte, em Portugal, uma Assembleia de Redes de Comunidades de Aprendizagem” punha em prática promessas deixadas pelo decreto-lei 55 de 2018 e propunha a criação de “grupo de trabalho ministerial”, visando conceber e desenvolver novas construções sociais de aprendizagem.

Entretanto, já havia outros grupos de trabalho em funcionamento, em Mogi das Cruzes e em outros municípios brasileiros. 

Projetos educativos e projetos político-pedagógicos das escolas puderam (enfim!) ser concretizados, efetivando objetivos constantes das leis de bases do Brasil e de Portugal. Visava-se: promover o crescimento do educando em todos os aspectos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele possa interferir, atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspectiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integra; reconfigurar práticas educativas; produzir práticas integradas (na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação), religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Cultura, Saúde e Ambiente, em projetos de educação integral.

Netos queridos, poderá ser para vós fastidiosa esta descrição de fatos. Mas, em 2043, importa fazer história e refazer a história oficial, porque a memória dos homens costuma ser curta e deturpada.

Há vinte anso, acontecia a primeira co-criação de protótipos de comunidade de aprendizagem, a partir de “turmas-piloto” e de “círculos de aprendizagem”. Escolas e universidades se transformavam em “lócus de referência”. Acolhiam visitantes, facultavam “residência pedagógica” a quem desejasse conviver, por alguns dias, com crianças, professores e comunidade.

Projetos com potencial inovador já não eram fragilizados ou destruídos, pois assumiam a dignidade da autonomia. Práticas democráticas e de trabalho em equipe eram incrementadas.

O sonho de Darcy virava (ou, “era tornado”) realidade.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLV)

Mogi das Cruzes, 11 de dezembro de 2043

Philippe Meirieu foi comentador atento do drama educacional. No texto “Entre dizer e fazer”, falou-nos de onze tensões, que atravessam a profissão de professor:

“Entre educação e liberdade, entre o todo poder do adulto e a impotência do mestre…

Entre transferência de conhecimento fixo e descoberta livre do próprio conhecimento, entre obrigação de aprender e respeitar o interesse do aluno…

Entre formalização enciclopédica e submissão ao desejo de aprender, entre a primazia do programa e a primazia do projeto…

Entre confiar no que o aluno sabe fazer e romper com os dados, entre usar o “já” e descobrir outros universos…

Entre a obediência a um mundo fixo e prático de democracia na Escola, entre o respeito escrupuloso pela ordem escolar e a autogestão pedagógica…

Entre enquadramento imposto e liberdade de iniciativa, entre acompanhamento rigoroso e emancipação necessária…

Entre a tomada de riscos necessária e a suspensão crítica necessária, entre a inibição e a passagem para agir…

Entre grupos homogéneos e heterogéneos, entre adaptação às necessidades individuais e enriquecimento pelas diferenças…

Entre planejamento necessário e decisão improvisada…

Entre obrigação de resultados e obrigação de meios…

Ensinando especialista em conhecimento e especialista em pedagogia.”

Esse escrito foi publicado em 2004. Citava “tensões”, que eram as mesmas sentidas em 94, em 84, em 74… E assim permaneceram, ao longo das primeiras décadas deste século. Havia quem se atirasse a este tipo de escritos como gato a bofe. E os saboreasse, “entre o dizer e o fazer”.

O amigo Matias bem dizia ser preciso parar de “jogar às escolas”. O cansaço se apoderava do corpo e do espírito de um avô, que reunia as parcas energias que ainda restavam, para tentar criar uma A.R.C.A., que organizasse a dispersão de projetos, retomasse projetos suspensos, acolhesse novas tentativas de ultrapassar as “onze tensões” e mais algumas.

Nos idos de vinte e três, o marketing agressivo de “colégios de elite” iludia uma opinião pública acrítica. Cinicamente, teoricistas caducos diziam serem as iniciativas de mudança “mero romantismo”. Instituições intelectual e moralmente corruptas, alegavam que as mudanças propostas “não eram oportunas”. Quando apresentávamos propostas efetivamente inovadoras, professáurios afirmavam “já ter feito isso”. 

Valia-nos o desfazer de “tensões” por quem não hesitava entre “o dizer e o fazer”.

No Sul, o Bruno conseguia que a Escola da Floresta assegurasse sustentabilidade financeira, enquanto a Comunidade da Lagoa das Amendoeiras buscava proventos que matassem a fome das suas crianças. No Mato Grosso, a Zizi envolvia comunidades em projetos de educação ambiental (e não só…), enquanto, em Mogi das Cruzes, a Tina participava no projeto “Agrofloresta na Escola”, no Centro Educacional Jabuti.

Esses projetos não eram notícia. Esses educadores dissolviam as “onze tensões” do Meirieu num quotidiano feito de perseverança. Não se quedavam entre o “dizer e o fazer”. Faziam!

As “tensões” jamais ultrapassadas redundavam em dramas que a escola da sala de aula, competitiva e estacionada no “dizer”, provocava.

Em Portugal, os professores adoeciam. No Brasil, eram assassinados por ex-alunos. No Japão, só entre 1972 a 2013, mais de cem alunos se suicidavam no dia do regresso às aulas. Na Índia, jovens alunas se suicidavam, por não terem conseguido “entrar na universidade”. “Entre o dizer e o fazer” teoricista, sucessivas gerações de seres humanos não se humanizaram.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIV)

Recreio dos Bandeirantes, 10 de dezembro de 2043

Nos idos de vinte e três, não passava um dia sem que eu lesse o que a minha amiga Tina publicava. Religiosamente, guardei seus escritos no baú, junto de objetos remotos, mas de indispensável e atual releitura. 

Por isso, lhes retiro a poeira e vo-los dou a ler:

“Uma parede está sendo construída no lugar errado. Há uma comissão, composta por engenheiros e especialistas em construção de paredes, que se une em uma força tarefa para estudar como podem fazer a obra dar certo. Depois de muito estudo, a comissão decide mudar o tipo de material que vem sendo usado para subir a parede. Agora, com o novo material, mais tecnológico, a parede fica bonitona. Ao término da obra, ninguém entende porque, apesar de bonita, a parede deu errado.

Ai daquele que se atreve a dizer que, com base na lei e nos teóricos, ali deveria ter uma ponte.

Até quando a educação vai receber maquiagem nova no que está dando errado?”

E a Tina listava aquilo “que estava dando errado”, para que ninguém tivesse dúvidas: Conteudismo, Instrucionismo, Padronização (geradora da exclusão e evasão), Foco na ensinagem, Fragmentação dos saberes em disciplinas, Professor detentor do saber, controlador, Sala de aula, Carteiras enfileiradas, Nota, Prova, Uso sequencial de material didático, Separação de estudantes por idade ou nível de conhecimento, Competição (geradora do bullying e evasão), Olhar repressor e desaprovador, Ranqueamento, Punição ao erro, Desprezo à curiosidade… E acrescentava que naquela lista, o que não era ilegal, era imoral.

A Tina era um daqueles seres humanos a quem fora concedido o dom de uma amorosa indignação, e deu significativo contributo para a humanização do ato de aprender e ensinar. Confirmava aquilo que Brecht dissera, há um século:

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.”

Naquele sábado de novembro, a Tina andava pelas escolas de Mogi, participando do plantio de quarenta árvores, comemorando a chegada de uma primavera, que traria com ela o princípio do fim de uma Educação e de uma Humanidade desumanizadas.

E em que consistia “reumanizar” a Educação? 

Não seria, certamente, em teorizar o amor, mas de Amor em ato. De concretizar velhas promessas e propostas de mudança. De efetivar um Educação capaz de reumanizar a comunidade mundial, a partir das comunidades locais. Seria preciso escutá-las, para resgatar a esperança num futuro, que se construiria num novo saber cuidar.

Os exemplos de Vida da minha amiga Tina me davam alento para não desistir. Inspirado na sua Vida e na sua obra, isto escrevi num livrinho:

“Compreendi por que razão certos professáurios recorriam a uma abundante adjetivação – “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros – quando se referiam a professores como a minha amiga. 

Alguns faleceram, outros estão à espera de alguém que os descubra. Insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.” 

Porque se aproximava o Natal, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela, até uma claridade que rompia as trevas de um casebre, eu mantinha a crença de encontrar mais um marco de referência de uma Escola que irradiasse uma luz dissipadora de desumanas trevas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIII)

Caraíva, 9 de dezembro de 2043

Na mesma semana da visita ao Campo de São Bento, a Bruna sofria com o drama de uma infância desvalida, a Fernanda organizava um evento, que marcaria a criação da A.R.C.A. do Sul da Bahia. Eu pedia às minhas amigas Caina e Ilana que participassem, colaborassem, pois conhecia a generosidade que as caraterizava e a força de vontade da Fernanda. 

Dizia-se que eu era “casamenteiro”, que juntava pessoas, que unia os desunidos. Talvez! Mas, nos idos de vinte, já era raro encontrar energia, ânimo, para enfrentar adversidades. 

Os inovadores eram uma espécie em vias de extinção e não habitavam escolas às quais uma qualquer organização, atrevidamente e lamentavelmente, tinha posto o rótulo de “inovação”. Até havia organizações, que se reclamavam de “educação transformadora”, especializadas em elaborar mapas de “escolas inovadoras”, mas que não passavam de caricaturas de mudança.

Dadores de aula hesitantes diziam que “talvez não fosse o momento adequado”. Tal como numa canção da Deolinda: 

“Agora não, que eu acho que não posso / Agora não, que falta um impresso”.

Nos períodos de recesso, como nas interrupções de atividade letiva, diretores de escola lamentavam “não ter tempo para tratar dessas coisas”, porque:

“Sabes como é Zé, no final do período e no final do ano letivo, temos muita papelada para preencher. E temos as avaliações”.

“Avaliações ou classificações? E porquê no final de um período, se a lei diz que a avaliação deve ser contínua? 

Se lhes dirigia essas e outras perguntas desconstrutoras, manifestavam incómodo:

“Lá vens tu com essas teorias!”

Não eram “teorias”, eram práticas fundamentadas numa teoria prudente.

No dealbar deste século, num livrinho com o título “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”, de que a Janaína partiu para montar uma bela peça de teatro, tentei contar ao Marcos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. 

Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. A cada olhar de estupefação do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada. 

Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que lhe dava a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? 

Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?

Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase do Rosseau: 

“Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. 

Depois, para o sossegar, disse-lhe que seria possível reinventar a Escola. 

Para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, sempre que pressentia a virginal perturbação do meu neto, me socorria de uma mentirinha piedosa: 

“Isso era antigamente.”

Num nove de dezembro de há vinte anos, tal qual fénix renascida, educadores resilientes geraram os alicerces das ARCAs.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLII)

Cidade do Porto, 8 de dezembro de 2043

Entrados no mês de maio, as lojas se preparavam para o Dia das Mães. No Brasil, a data era a segunda em números de vendas, perdendo apenas para o Natal. O Dia das Mães fabricado nos Estados Unidos mobilizava todo o comércio.

A criadora desse “Dia”, Anna Jarvis, não esperava que ele fosse usado em campanhas publicitárias e transformado em uma data comercial. Anos depois da criação da data comemorativa, Anna passou a pedir o fim dela, segundo o livro “Em Memória da Maternidade”.

No Portugal de 1973, o “Dia do Pai” era 19 de março (Dia de São José) e o 8 de dezembro ainda era o “Dia da Mãe”. Na véspera do “Dia da Senhora da Conceição” de 2023, a Mariana anunciava à família que iria ser mãe. A Vovó Ludi iria ser avó pela segunda vez. A Analu iria ter um priminho para brincar. A vida se renovava. 

Essa notícia fez assomar ao mais recôndito recanto da memória de muito longo prazo eventos de cinquenta anos antes. No “Dia da Mãe” de 1973, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição se enfeitou de flores, para receber os devotos da Virgem Maria. E o Grupo Coral, mais uma vez, animou a cerimónia – nesse dia, de modo diferente do habitual. 

Era ainda o tempo da ditadura de Salazar. O padre – vim a saber, mais tarde, ser informador da polícia política – feito “vendilhão do templo”, tinha vendido lugares nos genuflexórios das primeiras filas. Os elementos do Grupo Coral estragaram o negócio, pediram aos escuteiros que se sentassem nas primeiras filas e assim fizeram. Instalou-se a confusão. E, naquele 8 de dezembro, se formou uma “célula” de desobediência civil. Nela criei amizades duradouras. 

A Revolução dos Cravos não tardaria a chegar. Com o seu advento o grupo se dispersou. Dele fazia parte uma extraordinária mãe e educadora, que, ao longo de três décadas, participaria do projeto Fazer a Ponte. E um jovem professor primário, que se fez psicólogo e acabou professor universitário. Um dia, vos falarei das metamorfoses por que passaram, ao longo de meio século.

Ao longo de todo esse tempo, boas surpresas e outras tantas deceções me mostraram quão volúvel poderia ser um ser humano. A inconstância era a regra. E dei por mim, também, a atravessar ciclos mutacionais. De modo que, quando me perguntavam: 

“O senhor é o Professor Pacheco?”

Eu respondia:

“Tem dias, meu amigo, tem dias!”

Face à perplexidade expressa no rosto do meu interlocutor, juntava uma “explicação”:

“Tem dias em que acredito que eu seja eu. Em outros dias, eu passo horas à minha procura, como qualquer outro ser humano. Ou não será assim?”

Um embaraçado silêncio era resposta. 

A cinquenta anos de distância, eu procurava identificar o que de mim o mundo tinha feito e o que eu fizera daquilo que o mundo de mim havia feito. 

Já o Camões o tinha sentido, não há meio século, mas há cinco séculos:

“Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

A quinhentos anos de distância, o soneto “Busque Amor novas artes, novo engenho” – uma obra-prima quinhentista – passava por tratos de polé, nas mãos de quem o dissecava, como se fora o poema um cadáver esquartejado a bisturi. Chamavam a isso “Interpretação do texto”:

“Segundo os versos do poema, o eu lírico: a) está à procura do Amor / b) está amando e cheio de esperanças / c) está seguro devido ao Amor / d) está sem esperança.”

Os testes de escolha múltipla não abriam espaço para a subjetividade. Não se contemplava a imprevisibilidade do agir humano. Dadores de aula sedimentavam o tédio e o desamor. Pobres criaturas, que estavam tão seguras do “seu método” como alheias à vida – não “tinham dias”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLI)

Rio Bonito, 7 de dezembro de 2043

A Ana, da Escola Júlia Cortines, nos pusera em contato com educadores sedentos de mudança, e lá fomos até Rio Bonito. Uma boa surpresa nos esperava nesse encontro, algo raramente visto: a secretaria da educação estava representada por três excelentes educadoras.

No dia seguinte, fomos até ao Campo de São Bento, à escola da Ana, para conversar sobre valores e adaptar uma “dinâmica de grupo” às necessidades daquele momento. 

A Escola Júlia Cortines estava aconchegada num terreno que, a partir de 1697, albergava o Mosteiro de São Bento. O parque, que fora urbanizado em 1908, segundo um projeto de um engenheiro paisagista, era o principal jardim público urbano de Niterói. Entre canteiros, um lago artificial, brinquedos para crianças e um pequeno parque de diversões, acontecia… Escola. 

O lugar era inspirador, com o seu coreto, marco do romantismo popular de fins do século XIX, tombado como Patrimônio Cultural, em 1985. Nos fins de semana, uma feira de artesanato lhe fazia companhia, reunindo pessoas ao seu redor. Ao longo do ano, o parque se animava com variadas atrações: exposições, lançamentos de livros, shows, cursos e apresentação de filmes e vídeos.

Dentro do Campo de São Bento funcionavam o Grupo Escolar Joaquim Távora, o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e o Jardim de Infância Júlia Cortines. 

A Escola Júlia Cortines dispunha de biblioteca, auditório, espaço de informática e espaços de aprendizagem sem fim, num imenso parque. Ali, entre o Campo de São Bento e o Morro do Estado, fraternalmente unindo escolas, professores, gestores, nascia uma rede de comunidades de aprendizagem.

Esse agradável final de tarde terminou com um rápido regresso a casa, onde nos esperava mais uma live, dessa vez, com o Rodrigo e outros amigos. Um tempo de deliciosa conversa, que seria o culminar de uma série de encontros, nos quais preparamos o que seria o ano experimental da criação de novas construções sociais de aprendizagem. E talvez a envolvência daquele coreto pudesse transformar-se numa… ágora.

E quem nos levara até à Anísio, à Darcy, à Júlia? Os nossos amigos Karina e Vinícius. Desde há 17 anos, faziam de sonhos realidades. Na Casa Reviver, uma equipe de jovens e de gente boa menos jovem “fazia a diferença”, acompanhando o dia a dia dos projetos de vida de muitas crianças e famílias. 

Um pouco por todo o Brasil, fomos encontrando focos de humanização. Também fomos colhendo, aqui e ali, relatos de desumanidade:

“As nossas crianças continuam a ser vítimas de “bala perdida”, diariamente, fuziladas por efeito de um sistema educacional falido. Estão mortas, com um celular na mão, que na vida adulta trocam por drogas e muitos filhos. Em meio ao bombardeio de tantas guerras e vulnerabilidade social: violências – abuso sexual, desemprego, racismo, feminicídio, corrupção – nos sentíamos numa ilha na cidade que exclui e nos tira a voz.

Mas, não desistimos. Vamos construindo pontes de esperança. Haverá dias melhores, certamente!”

Dias melhores chegariam. Educadores das duas margens do Atlântico lançaram um debate não reservado a “especialistas”, mas de todas as pessoas – as redes eram pessoas, não eram instituições – e essa iniciativa viria a ser origem da criação de assembleias (ARCAs), em que o diálogo aberto e transparente não se limitava a queixas e lamentações. O debate colocava os “especialistas”, os “doutores” e os “cientistas da educação” perante um dever de coerência

Dizia o amigo Nóvoa que não valeria a pena uma permanente indignação, caso ela não se traduzisse em ação decidida e constante. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXL)

Gávea, 6 de novembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Por isso, na cartinha de hoje, retomaremos a leitura do extraordinário depoimento do amigo Nóvoa. Ele falava-nos – em 2006! – de “transbordamento curricular”, uma das “manobras de diversão” em que o sistema de ensinagem era fértil, no intuito de disfarçar as suas fragilidades.

Nóvoa enunciava o que, em poucos meses, aquilo que os senhores deputados da Assembleia da República tinham proposto integrar no currículo escolar:

“Preservação do património cultural, dos monumentos, das tradições e das culturas locais; educação para a saúde, nas suas múltiplas vertentes, desde a saúde oral até ao combate às epidemias e, em particular, à gripe das aves; prevenção da toxicodependência e do tabagismo, bem como na promoção de comportamentos saudáveis; educação alimentar e numa correta aprendizagem de hábitos de consumo, aos mais diversos níveis; educação sexual, combatendo assim um dos dramas maiores da sociedade portuguesa, sobretudo nos meios mais pobres; prevenção dos acidentes, através de uma cuidadosa educação rodoviária. 

Referiu-se ainda que a escola não pode alhear-se de um conjunto de “cuidados” a prestar às crianças e chamou-se a atenção para o seu papel no combate aos maus-tratos, aos abusos sexuais e à violência no seio da família. Falou-se na educação para a cidadania, na promoção dos valores, na prevenção da delinquência juvenil e na criação de ambientes sociais e familiares seguros. E na necessidade de assegurar o “pleno desenvolvimento físico, intelectual, cívico e moral dos alunos”. E, como não podia deixar de ser, aqui se referiu a importância das necessidades educativas especiais, aqui se insistiu na aprendizagem das novas tecnologias e na aquisição de “competências de empregabilidade”, etc. etc. etc.

Tudo isto apenas nos últimos meses de debates nesta Câmara. E tudo isto é justo e acertado. E tudo isto merece ponderação. E nenhum de nós se atreveria a excluir uma única destas tarefas da lista de tarefas da Escola. Mas será que ela pode fazer tudo isto, para além daquela que é a sua missão primordial? 

A minha resposta é não. A escola está esmagada, sufocada, por um excesso de missões. Importa, pois, recentrá-la nas atividades especificamente escolares, o que obriga, por outro lado, ao reforço de um espaço público de educação, no qual as famílias, em primeiro lugar, mas também as empresas, as igrejas, as associações, os centros de saúde ou as autarquias, entre tantas outras entidades, assumam as suas próprias responsabilidades. 

Há quanto tempo repetimos, em Portugal e no resto do mundo, que os currículos e os programas são demasiado extensos? Mas todos os dias lá colocamos uma nova disciplina, um novo conteúdo programático, uma nova competência. E depois… os professores que resolvam o problema como puderem. 

A escola é criticada (e bem) por causa dos maus resultados dos alunos, nomeadamente, em disciplinas nucleares. Mas é também criticada (e igualmente bem) por não preparar as novas gerações para a sociedade do conhecimento, para as novas tecnologias, para a inovação. 

No seu discurso de tomada de posse, o Presidente da República afirmou que a escola, mais do que ensinar, deve ensinar a aprender, acrescentando mesmo que mais decisivo ainda era “aprender a empreender”. Não é um dilema fácil de resolver, pois é preciso estabelecer prioridades e não basta dizer que tudo é importante. Estamos preparados para o enfrentar?” 

Clarividente, o amigo Nóvoa repetiria a mesma pergunta, anos a fio e de diferentes modos. 

Qual seria a resposta?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIX)

São Conrado, 4 de dezembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. E, naquele livro de que vos falei em outras caras – “Evidentemente” –, o amigo Nóvoa questionava a ideia de um “único melhor sistema”. Vede:

“O último terço do século XIX é um período essencial para compreender a consolidação de formas de organização escolar que, apesar de sucessivas tentativas de mudança, resistiram até aos dias de hoje. 

Há um conjunto de evoluções que produzem a gramática da escola: alunos agrupados em classes graduadas, com uma composição homogénea e um número de efetivos pouco variável; professores atuando a título individual, com perfil de generalistas (ensino primário) ou de especialistas (ensino secundário); espaços estruturados de ação escolar, induzindo uma pedagogia construída essencialmente no interior da sala de aula; horários escolares rigidamente estabelecidos, que impõem um controlo social do tempo escolar; saberes organizados em disciplinas escolares, que são as referências estruturantes do ensino e da pedagogia. 

É neste momento, de grande densidade histórica, que se fabrica uma conceção de trabalho escolar, que está impregnada de uma pedagogia nova e de práticas de ensino que integram princípios de avaliação, de progressão e de organização dos estudos.”

A “impregnação” consolidou-se, ao longo do século XX, malgrado as críticas e os devaneios teóricos de académicos ociosos. Até mesmo as escolas montessorianas, waldorfianas, freinetianas e outras propostas escolanovistas não escaparam à “impregnação” e mantiveram o tipo de organização: “classes”, “sala de aula”, horários padronizados etc. Se o que é evidente… mente, voltemos ao livro, que o amigo Nóvoa publicou em 2005:

“No caso do ensino primário, as escolas centrais são a melhor ilustração deste processo. A ideia de dividir as aulas da instrução primária em “classes”, distribuindo os alunos “não pela idade ou pela altura, mas pelo seu estado de adiantamento”, constitui uma novidade. 

A regulamentação dos programas para cada classe configura um “ensino metódico e progressivo” e um modelo de ação do professor que estão na origem da “escola moderna” (…) No caso do ensino liceal, a reforma de 1894-1895 consagra a passagem de um sistema de disciplinas avulsas para um regime de classes. Os textos regulamentares sobre a prática do ensino fixavam, à partida, que nenhuma disciplina do plano de estudos era independente e que todas estavam ligadas “pelo princípio de uma intenção comum”. 

Como escreverá mais tarde o autor da reforma, Jaime Moniz, tratava-se de instituir uma “distribuição comum, consecutiva, paralela, por justaposição, gradual”, valorizando uma organização horizontal do currículo, baseada na ligação entre as disciplinas e na coordenação do trabalho dos professores. O modelo tinha como principal objetivo “reduzir à unidade, no espírito do aluno, a variedade forçosa das matérias de ensino”.

Estes apontamentos breves permitem compreender a “naturalização” de uma gramática, que define as fronteiras da modernidade escolar. O modelo impõe-se como o único melhor sistema – o “The one best system” de David Tyack. Não é apenas o melhor sistema, mas sim o único possível e, mesmo, imaginável. Reside aqui a sua força e a explicação para a sua permanência no tempo.”

Bem pregara Freire, dizendo que o fracasso era do sistema! 

Nos idos de vinte, a “naturalização” do “único melhor sistema” concebido na Prússia prosseguia. Até ao momento em que já não valia a pena aplicar-lhe paliativos. Até ao momento em que uma nova construção social surgiu.

 

Por: José Pacheco

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