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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVIII)

Marina da Glória, 24 de novembro de 2043

Voltava do Rio com uma estranha sensação de “dejá vú” e, num cantinho da Internet, me aguardava um textinho do amigo Matias com o título “O supermercado, a escola e a guerra civil”.

“Para evitar o desespero e criar novos entusiasmos, para libertar as iniciativas e suscitar a criatividade, acreditamos que é hoje mais razoável decidir mudar de viatura do que esgotarmo-nos a consertar um motor definitivamente desconsertado. 

A escola transformou-se num supermercado onde os adultos distribuem conhecimentos que apenas servem para ter sucesso na escola.”

Esta é a tese de Philippe Meirieu e de George Marc, desenvolvida na obra “L’école ou la guerre civile”. Segundo os autores, as escolas são hoje máquinas, que tanto integram como excluem, e os professores que escolhem a profissão não têm condições para responder positivamente à imensidão de pedidos e mandatos sociais, trabalhando no mesmo modelo (no mesmo molde) escolar.

Para evitar o stress e a depressão profissionais, a fuga da escola e o
desinvestimento na profissão, parece urgente construir um novo sentido para a escola (sustentam os autores que o principal problema da escola é o seu projeto educativo e não a carência de meios), experimentar novas formas de organizar os saberes, de distribuir os tempos e ocupar os espaços escolares,
desmistificar a “excelência” dos exames, instituir novas modalidades de trabalho docente, de aprender e praticar a democracia deliberativa que promova e consagre os direitos das pessoas (cada vez mais ameaçadas pelas novas exclusões sociais).

Trata-se, ao fim e ao cabo, de mudar de viatura porque esta está já, irremediavelmente, gasta. De mudar de paradigma porque este já nem sequer serve a ordem taylorista para que foi criado.

E só os professores – esses seres frágeis e excecionais, como tenho vindo a escrever – podem protagonizar estas mudanças. Mas para isso é preciso um projeto político forte que os envolva e mobilize. O que, desde há muitos anos, não tem vindo a acontecer.

O José Matias escrevera esse texto em 2011. E já estávamos no novembro de 2023. Durante uma dúzia de anos, os seus colegas universitários repetiram esse jargão, na génese de leis e de pareceres, sem que nada tenha mudado. Durante cinquenta anos – refiro-me ao tempo entre a dita Revolução dos Cravos e o ano de 2023 – palestrantes tinham repetido a mesma lengalenga, nos palcos dos congressos. Milhares de cursos ministrados por competentes formadores não tinham logrado mudança, muito menos inovação. Esta só surgia nos slogans publicitários e em teses guardadas nos arquivos das universidades. 

Sempre que ouvia falar de escolas “inovadoras”, de imediato, ia á sua procura. De inovação nada tinham. Não apontavam “um novo sentido para a escola”, nem nelas se experimentava” novas formas de organizar os saberes, de distribuir os tempos e ocupar os espaços escolares, desmistificar a “excelência” dos exames, instituir novas modalidades de trabalho docente, de aprender e praticar a democracia deliberativa”.

Como dizia o amigo José Matias, tratava-se, afinal, de “mudar de viatura”, porque aquela estava, irremediavelmente, gasta, de “mudar de paradigma”, porque aquele que vigorava nas escolas já nem sequer servia a ordem taylorista para que fora criado.

Talvez não por acaso, quando regressava da Marina da Glória, o amigo António, que andava observando práticas e tomando notas no chão de escolas, me ligou. Combinamos encontrar-nos na minha mátria brasileira, para repensar a Escola e tentar encontrar modos de “mudar de viatura”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVII)

Lagoa de Piratininga, 23 de novembro de 2043

Dizia-se que o Brasil era o país com mais leis. Havia quem dissesse serem elas mais de milhão. O país da Educação não era pobre em regulamentação. Infelizmente, a regulamentação da lei-mãe manifestava caráter técnico-instrumental, continha laivos de uma racionalidade burocrática, instrucionista. Na prática e em contradição com o discurso, rejeitava-se a ideia de que as escolas poderiam constituir-se em espaços coletivos de criação de novas realidades. Por força de atavismos e vícios, todas as escolas deveriam ser “iguais à face da lei”. E até onde nos conduziria essa pretensa “igualdade”?

Na busca de “resultados”, escolas particulares antecipavam as férias, “para que os professores pudessem ser preparados para as aulas online”. Empresas de ensinagem praticavam um marketing agressivo, explorando a fragilidade do sistema público de ensino, tirando partido das dificuldades sentidas pelas famílias, prometendo soluções mágicas. Inclusive, ensinando as crianças a… brincar. O asqueroso anúncio assim rezava:

“Você poderá reunir seu filho (a) e seus amigos (cada um em sua casa) através de uma sala de reunião online onde um de nossos recreadores irá comandar brincadeiras e diverti-los por 40 minutos a uma hora. É necessário que o cliente tenha um computador, tablet ou celular com boa conexão de internet.” 

Seguia-se uma lista de preços, para diferentes tempos de consumo do brincar: um preço “para 40 minutos de Recreação On-Line (até 3 crianças no mesmo local), outro para criança adicional na sala em local diferente, até no máximo 12 crianças na sala. Ou duas sessões de 30 minutos de Recreação On-Line (com intervalo de 10 minutos) etc.” O pagamento deveria ser efetivado por transferência bancária, até a data da live.

No dia em que este absurdo anúncio foi colocado na Internet, muitos educadores me dirigiram e-mails, em que manifestavam surpresa e revolta. A Carla escreveu:

“Um mundo que contrata pessoas para brincar com os filhos online!!! Quero ir embora desse planeta!!! Desculpe o desabafo.”

Respondi: 

“O desabafo é legítimo, querida amiga. Mas não vás embora do planeta, porque o planeta está carente de pessoas, de educadoras como tu.” 

A Carla não estava sozinha. Era uma “romântica conspiradora” – já vos falei deles – remando contra uma maré de insanidade, defendendo as crianças da sanha persecutória da administração educacional e dos mercadores de ensinagem. 

Talvez te recordes, Alice, das personificações, que este avô usava, para te falar de sinistras criaturas: 

“Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem ecos de infâmia. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos.”

Havia técnicos amorosos e críticos, na administração do sistema. Porém quando os Românticos Conspiradores colaboravam com a administração, esses técnicos eram intimidados, ameaçados pelos “papagaios” e proibidos de cooperar. 

A maioria obedeceu aos “superiores”. Outros “administrativos” assumiram uma atitude ética, consubstanciada em mensagens como esta:

“Infelizmente, não tenho boas notícias. Também puxaram meu tapete e, depois de muito sofrimento e reflexão, decidi solicitar minha saída da secretaria da educação. Percebi que estava cercada por pessoas incompetentes e más e não quero mais ficar num lugar onde eu não tenho espaço, apoio e autonomia para trabalhar. (…) Sinto-me envergonhada e triste por ver que a premência está em resolver coisas burocráticas e deixar a educação em segundo plano.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVI)

Inoã, 22 de novembro de 2043

Como já vos contei, há alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma “utopia” que, em equipa, íamos ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbação que eu semeava por tudo o que era colóquio ou congresso, lançou-me um desafio:

“Por que não vais desassossegar espíritos para uma instituição de formação inicial de professores?” 

Acabei por aceder ao repto. Confesso tê-lo feito por curiosidade, apenas “à experiência” e desconfiado de que não iria manter-me por lá por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas à minha irremediável tendência de (fraternalmente) provocar. 

A primeira surpresa foi a de constatar o drama de jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de docência não deixam durar muito, aderindo, entusiasticamente, às ideias do Freinet, do Dewey, do Rogers, do Freire, para que não fossem apenas matéria a decorar para os exames, nem fizessem desses egrégios autores múmias dissecadas em dissertações.

Em sucessivas fornadas, concluído o curso, lá foram em busca do projeto do seu sonho. Foram muitos os chamados e escassos os escolhidos. Dos que se perderam em opções fáceis não rezará a história, nem eu. Só lamento o tempo perdido e desejo que, um qualquer dia, venham a encontrar-se. 

Ontem, dei-vos a conhecer a mensagem recebida de um aluno que desistiu de ser professor, que optou pela “solução mais simples”. Confesso que essa desistência foi causa de grande perturbação. Ele era um jovem inteligente, generoso, idealista.

Quando a mediocridade se sobrepõe à generosidade, a indignação é coisa pouca. Sempre que me confronto com a amargura da desistência, do insucesso de um ex-aluno, sinto-me o mais miserável dos professores. O insucesso de um jovem e de um professor jovem é algo que me custa a digerir. Tanto mais que me assaltava algum sentimento de culpa. Contribuíra para a tragédia. Não fizera tudo o que devia. Falhara. 

Apesar da injeção de paliativos, o sistema ia de mal a pior. E, dado que se continuava a confundir argumentos com especulações, todos ralhavam e ninguém tinha razão. Por esse e por outros bons motivos, vinha defendendo ser inadiável criar condições para que aqueles que buscavam fazer uma escola diferente, mais fraterna, mais digna, a pudessem concretizar. Alguma coisa teria de mudar nas escolas, para que ninguém, por ignorância, preguiça, ou acomodação, ousasse “não querer” e pudesse impedir os que quisessem. 

Quantos mais verdadeiros professores teriam de desistir? Quantos mais verdadeiros projetos seriam liquidados com a chegada à escola de um “professor não sensibilizado para o trabalho cooperativo”? 

Os professores envolvidos em projetos (que não fossem apenas de papel) não procuravam a obtenção de privilégios. Bem pelo contrário: para viabilizarem a formação de equipas de projeto, muitos que conheci fizeram opções de vida que acarretaram prejuízos para a sua vida pessoal e profissional. Poderei prová-lo.

Muitos outros, por via de uma legislação obsoleta, viram ser-lhes negado o direito a participar (como diria o saudoso Paulo Freire) nos projetos dos seus sonhos, e já se aposentaram. Viram a burocracia aliar-se aos que “não queriam” e que tinham o “direito de não querer”. 

Ao longo de cinco décadas, vi o trabalho de equipas de professores ser destruído, em escassos dias, por outros professores, que, por não estarem atentos à necessidade de reelaboração da sua cultura pessoal e profissional, se mantinham cativos de uma cultura de funcionário público. 

Mas, au bout du chagrin, une fenêtre ouvert…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXV)

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2043

Perante o entusiasmo dos meus jovens alunos do curso de formação inicial de professores, pedia que, às primeiras contrariedades no exercício da profissão, não transformassem o idealismo em pragmatismo e o pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a refugiar-se no “dar aulas e manter a disciplina”, mudassem logo de profissão. Só desse modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianças e jovens que lhes coubessem em sorte educar. 

Aqueles a quem os acasos da vida conferiram coerência defrontaram obstáculos e reveses, que as escolas não são bem aquilo que vem nos livros. 

A partir de meados dos anos noventa, passei a receber telefonemas, cartas e mensagens por uma Internet, que nesse tempo nascia.

Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como professores. Outras mensagens eram restos de uma esperança dissolvida no ácido da vida real. Havia algumas em que pediam conselho, davam notícia de sucessos e, quase sempre, de insucessos. 

Em finais do século passado, um jovem aluno, um dos mais promissores entre aqueles que por mim passaram, isto escreveu:

 “Pois é, tudo tem uma razão de ser e mesmo a minha demora em responder tem razão de ser. As coisas aqui estão muito piores, infelizmente. Uma colega nossa, que está a dar apoio, tem que olhar várias vezes para o lado, porque, dentro das salas onde ela dá apoio, os profes batem nas crianças. 

Temos que continuar um bocado discretos para não termos problemas no final do ano. Toda a gente é muito simpática, mas só consegue ver um tipo de trabalho à frente dos olhos: aquele que dá pouco trabalho (pensam eles). 

Logo no início do ano pude verificar algumas coisas que me deixaram muito desagradado. Os miúdos sentam-se todos virados para a frente em carteiras individuais e começa-se o ano com três semanas de grafismos. 

Não interessa se existem miúdos repetentes dentro da sala de aula. Sugeri que se fizesse trabalho diferenciado e a resposta foi: 

“Nem pense numa coisa dessas! Você é jovem, utópico, mas isso passa… Faça o mesmo trabalho com todos.”

Se falo em criar uma associação de pais: 

“Nem pense nisso! Na escola do Manuel deu muito mau resultado. Fazemos uma reunião com eles no início do ano, faz-se duas ou três festinhas e chega.”

Falo em marcar reuniões com os pais: 

“Não dá muito jeito, porque a Dona Filomena é que fica com a chave da escola. E a senhora diretora também não gosta muito de reuniões. Sabe como é…”

Logo em setembro, dizem-me: 

“Lá para o Natal, o colega coloca os alunos que precisam de apoio numa lista, porque, assim, depois, tem desculpa para os reprovar, no final do ano.”

O que custa mais é mesmo ter de trabalhar numa sala de aula, onde nada se pode fazer de diferente. O que fazer, então? 

Tendo em conta que todos os princípios pedagógicos, que adquiri ao longo destes últimos anos contrariam frontalmente tudo aquilo que era obrigado a fazer, decidi embora. “Ter a lucidez para dar conta e ir-me embora”, lembra-se?

O ânimo com que ia para as aulas era muito pouco. Penso, sinceramente, que para trabalhar deste modo existem muitas pessoas com mais vontade e facilidade do que eu para lidar com esta situação. Sei que, se calhar, optei pela solução mais simples e que deveria ter lutado mais. Ainda tentei levantar os assuntos de várias formas, mas o resultado foi sempre o mesmo. 

Por outro lado, o que se ganha é tão pouco que se torna relativamente fácil conseguir o mesmo rendimento de outras fontes. 

Quando falou comigo, já eu tinha tomado a decisão e por isso é que fiquei meio engasgado (…)”

E a carta continuava no mesmo tom.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIV)

Bosque Fundo 20 de novembro de 2043

Creio ser oportuno fazer um pouco de história, para que uma memória tradicionalmente curta não apague  

Há uns quarenta anos, professores, secretários de educação, famílias me pediam que fizesse “uma Escola da Ponte”. Eu já lera o Darcy antropólogo e o Darcy educador. Já ia perdendo o meu etnocentrismo europeu e ajudando a desfazer mitos. Nunca faria réplicas de uma escola onde, em três décadas de resiliência e sofrimento, contra ventos e marés de maldade, tinha sobrevivido. 

Em Campinas, São Paulo, Natal, Contagem, Lajeado, São José do Rio Preto, Brasília, Belo Horizonte, Cotia e em outros lugares onde despontavam projetos com potencial inovador, logo surgiam manobras de destruição. 

Visitava escolas “montessorianas”, “waldorfianas”, “freinetianas”, “freirianas” e lá não via vestígios de Montessori, Steiner, Freinet ou Freire. O “centro” continuava a ser o professor. E, se retirássemos das salas de aula os raros vestígios de escolanovismo, precários paliativos e modismos, as práticas seriam idênticas às do século XIX, revestidas de digital. 

Começava a intuir que o aluno não seria o centro de projetos neoliberais, que não havia “centro”, mas relação. E que, no contexto de uma relação pedagógica e antropagógica, a aprendizagem aconteceria através da criação de vínculos multidimensionais.

Para tal, seriam, gradual e prudentemente, erradicados dispositivos sem sentido, como sala de aula, turma, carga horária, prova etc. A implantação de círculos de aprendizagem marcaria a transição de um ciclo de mudança para um ciclo de inovação, apoiada numa rede de espaços de referência, para “imersões”, facultar “vivências” formativas. 

Estando assegurada a sustentabilidade legal e científica dos projetos, as práticas fundamentar-se-iam naquilo que de útil identificássemos nas propostas fundadas nos paradigmas da instrução, da  aprendizagem e da comunicação, contemplando o desenvolvimento no domínio pessoal e sócio moral, apoiando a redefinição do papel do professor, na transição entre o modelo “tradicional” e  uma profissionalidade assente na prática do “designer  educacional”, através de projetos de produção de vida e de sentido para a vida. 

Estaria assegurado o crescimento do educando em todos os aspetos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que pudesse atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspetiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integrava.

Apesar das precárias condições de intervenções iniciais, concretizou-se a introdução de tutorias, bases de reconfiguração das práticas escolares, bem como contatos dialogantes com famílias e comunidade. 

Por essa altura, em Portugal, acreditando nas boas intenções de um ministério, professores e comunidades se movimentavam. O Governo assumia como prioridade a concretização de uma política educativa centrada nas pessoas, que garantisse sucesso educativo e igualdade de oportunidades. Reconhecia que “nem todos os alunos veem garantido o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo”. 

No Brasil, era preparado mais um Plano Nacional de Educação. Tentava-se que os “sete eixos” do novo PNE não tivessem o mesmo destino das “vinte medidas” do plano anterior (que não tinham sido cumpridas).

Estavam reunidas as condições para uma adequação gradual a novos modos de conceber e fazer educação, transformando as escolas em espaços de produção de conhecimento e cultura, conectando os interesses dos estudantes com os saberes comunitários. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIII)

Brasília, 19 de novembro de 2043

Netos queridos, em outra cartinha, falei-vos de alguns “impactos” sofridos no início da profissão de professor. Como quando aceitei o convite para trabalhar numa universidade, esperando vir a aprender algo que me permitisse melhorar o trabalho que ia sendo feito na Ponte. 

Ledo engano! No primeiro dia de formador, joguei no lixo os papéis encimados pela expressão “registos de presença”. No projeto (escrito) daquela instituição estava escrito que se pretendia “formar professores autônomos e responsáveis”. Como se poderia atingir esse objetivo impondo instrumentos de controle?

Não tardou que enfrentasse animosidade, pois havia alunos, que faltavam às “aulas” de outros professores controladas por registos de presença, para participar nos meus encontros de aprender a ser professor. 

Chegaram notícias de destrutiva crítica, provindas de professáurios, que diziam ser o meu trabalho “uma porcaria” e que ameaçavam os alunos de “reprovar por faltas”. Pedi aos alunos que convidassem esses críticos para um debate franco, através do qual provassem que “dar aula” era o certo e que o meu modo de fazer aprender estava errado. Nunca aceitaram o convite. 

Não conseguia conter a minha perplexidade. Os meus colegas diziam ser montessorianos, freinetianos, escolanovistas… Mas, mais tese, menos tese, mantinham-se tão instrucionistas quanto os meus antigos mestres.

Quando propus desenvolver uma avaliação formativa, contínua e sistemática, com recurso a portfólio, fui surpreendido por um fenômeno, que considerava erradicado. Os meus alunos entregavam-me “trabalhos de pesquisa” enfeitados com citações do tipo: “segundo fulano, conforme Piaget, Vygotsky disse, beltrano disse”

Eu devolvia os textos, dizendo que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram pesquisas, eram cópias. E que eu não era fofoqueiro, não me interessava saber aquilo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes, a produção de conhecimento.

Chegada a era da Internet, reinterpretei o fenômeno. Deparei com o copy past digital, que não dotava os professores de um saber-fazer fecundante de práxis coerentes, nem os habilitava a argumentar num espaço de debate transformado em terra de ninguém. 

A breve passagem por essa instituição de formação foi tempo suficiente para que eu compreendesse por que razão os professores só sabiam replicar aulas. Amiúde, os professores da formação inicial citavam Schön e o amigo Nóvoa, dizendo serem os professores profissionais intelectuais, reflexivos e críticos das suas práticas. Mas, cadê esses profissionais?

Quando recusei “dar aula” naquela faculdade, chegaram a insinuar “prescindir” da minha presença na instituição. Não “prescindiram”. E, quando, ao cabo de meia dúzia de anos, tomei a decisão de ir embora, muitos colegas me pediram que ficasse. 

Quiseram saber o porquê da minha irredutível decisão.

“Vou embora, porque é intenso o “fogo amigo”. E eu não tenho vocação para o martírio”.

Nos anos seguintes, foram muitas as modas pedagógicas adotadas pelos formadores. Houve um tempo em que as vedetas eram as “taxonomias”. Depois, a “pedagogia dos projetos”. Na transição de século, o “empreendedorismo”, a “cultura maker”, o “ensino híbrido”. Mais tarde, a “educação integral” e as “neurociências”. Nos idos de vinte deste século, as escolas continuavam a enfeitar-se de “novidades” em tudo semelhantes aos paliativos cultuados no século XX.

A contragosto vos narro estes fatos. Nas próximas cartinhas, vos falarei de reinvenção, da humanização do ato de educar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXII)

Mendes, 18 de novembro de 2043

O 12º ENARC foi um separador de águas, uma espécie de balanço de erros e fracassos, juntamente com uma vontade indômita de recomeçar. Foi tempo de distanciamento crítico – o que tínhamos andado a fazer, ao longo de cinquenta anos? 

Enquanto uns tantos, teoricamente, debatiam mudança e inovação, outros as vivenciavam no chão de escola. Eram dois submundos paralelos, que urgia religar. Um currículo eurocêntrico jamais questionado obstava a que se praticasse Darcy. Concursos e premiações como a do “Professor do Ano” eram reflexo de uma cultura profissional feita de solidão e de autossuficiência. Na era das “palestras”, se replicava “lugares-comuns” num discurso pedagógico vazio: 

“Práticas pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI”; “pensamento crítico e autoria; “atender a diferentes ritmos e necessidades dos alunos”; “educação integral”; “trabalho autónomo e diferentes estilos de aprendizagem centrados no aluno.” 

E cadê o “centro no aluno”?

Empresas oportunistas recorriam a um marketing feito de falsidade, repleto de jargão científico e citações de autores consagrados: 

“O professor gere o currículo, estabelece o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem; “estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas”; “uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente”; o professor partilha com os seus pares as estratégias, recursos e práticas, como profissional reflexivo, comprometido e empenhado com a sua profissão.”

E cadê o “profissional reflexivo”?

E por aí seguia o relambório, confirmando que a sofisticação do discurso contrastava com a miséria das práticas. 

Foi nesse contexto que recuperamos uma “carta de princípios” de que a minha amiga Carla fora incentivadora e coautora, nos primeiros tempos dos Românticos Conspiradores”: 

“A educação, que prepara para a democracia deve se dar através de práticas não-autoritárias, que permitam a ampla participação de educandos, dos educadores, das famílias e da comunidade. Só é possível uma educação para a ação cidadã, se a educação for pela e na ação cidadã. As práticas educativas promotoras da liberdade, autonomia, respeito, responsabilidade, equidade e solidariedade, devem estar associadas aos princípios anteriores, para permitir que atinjamos o objetivo maior: a autorresponsabilização social.”

Repetimos o convite formulado na apresentação do Terceiro Manifesto da Educação, apresentado pelo RC na primeira CONANE, a se 2013:

“A você, que ama a educação e concorda que é possível fazer uma educação diferente da que aí está, fazemos um convite: Arregace as mangas e venha desdobrar o Manifesto pela Educação em ações concretas, que beneficiem nossos estudantes, suas famílias e a sociedade brasileira.”

Tinham passado dez anos. À semelhança dos dois anteriores manifestos, também o terceiro não lograra fazer “arregaçar as mangas”. 

Dez anos foram perdidos? 

Não. A criação de círculos de aprendizagem e protótipos de comunidade propiciaria uma efetiva educação integral, contemplaria a multidimensionalidade da experiência humana – afetiva, ética, sócio emocional, cultural, intelectual, espiritual. 

Grupos de Trabalho aprovaram minutas de contratos e termos de autonomia. Gozando de efetiva e responsável autonomia, revistos os regulamentos e os regimentos, professores ajustaram as suas práticas ao teor dos projetos das escolas e a novos modos de conceber e fazer educação, integrando-se culturalmente, e articulando os saberes escolares com os saberes comunitários. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXI)

Mendes, 17 de novembro de 2043

Sempre que alguém a mim se dirigia, pedindo ajuda, eu indicava um rumo. Aos professores, o rumo da assunção de um compromisso ético. Aos pais, um outro rumo – o da escola mais próxima:

“Faça a matrícula do seu filho. Leia o projeto da escola e procure um professor que ainda esteja vivo. Ajude-o. Cuide do seu filho… e do professor.”

Os professores são como os melões. Só os conhecendo por dentro se pode avaliar da sua qualidade. Quando nos deixamos conduzir pela aparência, a surpresa pode ser bem desagradável. Quebrado o verniz da casca, uns revelam-se maduros, outros verdes, outros… quase podres.

Estava cogitando sobre essa matéria, quando a Esperança me telefonou, para me doar mais um pouco de esperança. O amigo António dizia que ela era a última morrer e eu retorqui que a esperança nunca morreria. Felizmente, para as crianças e para os apreciadores de melões, nesse tempo, abundavam esperançosos frutos maduros. 

A Esperança era educadora. Fazia um belo par com outro educador (ledos infantes que a quem tais educadores cabem em sorte!). Como não é por acaso que há acasos, as palavras da Esperança chegaram no momento exato de dever esquecer criaturas que, de tão amargas, não deveriam usar o nome “professor”.

A palavra “professor” só se ajustava na perfeição à Esperança e a muitos outros que, assumindo um compromisso ético,  honravam a sua nobre profissão. 

Eram educadores como a Esperança e o Paulo os coautores de uma reforma marginal, silenciosa, que ia acontecendo um pouco por toda a parte, avessa às modas, impercetível, pródiga em profissionais que antecipavam o tempo profetizado por Tolstoi, há quase dois séculos: 

“A Escola deixará de ser talvez tal como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa”. 

À medida que se aproximava o termo da minha carreira de professor, sentia-me irmanado com os que recusavam aprender a geografia dos comboios para viver na era dos aviões e aceitavam o desafio de repensar a Escola, tarefa sempre coletiva. 

Sentia-me parte de uma fraternidade, agindo à revelia da bricolage normativa. A pedra de toque da suave mutação era a solidariedade manifesta nos encontros anuais dos Românticos Conspiradores. O 12º ENARC (Encontro Nacional) aconteceu na Mendes da minha amiga Maria Paula, nos idos de novembro de vinte e três. O Mauro e a Valéria assumiram a componente organizativa. A equipe da secretaria de educação, brilhantemente, acolheu os RC. 

Catorze anos decorridos sobre o primeiro dos encontros, estavam presentes o Guga e eu. Sobre as cinzas de dezenas de projetos, uma nova e ágil geração despontava. Mas, quem eram os RC?

No início do século, publiquei um artigo no suplemento Sinapse do jornal Folha de São Paulo. A certo passo, escrevi:

“É preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia era realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia”. Esse artigo foi pretexto para alguns encontros de educadores das escolas “invisíveis”, como eu lhes chamava. 

O movimento Românticos Conspiradores constituiu-se a partir de uma rede colaborativa, formada por pessoas que buscavam a transformação da educação pública. A finalidade era a de promover a comunicação e o apoio mútuo entre pessoas, organizações e projetos, que tivessem por objetivo contribuir para a superação de arcaicos paradigmas educacionais.

 

Por: José Pachceo

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXX)

São Gonçalo, 16 de novembro de 2043

Num novembro auspicioso, acompanhei a Vovó Ludi, na primeira das visitas à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Campus de São Gonçalo.

Recebera da Sueli o convite para a visita. A Sueli que havia participado no mesmo grupo de trabalho que, em 2014, a pedido do ministro Renato Janine, inventariou 178 escolas com potencial de inovação. 

Já tinha ouvido falar de gente que, na UERJ, buscava novos caminhos para os descaminhos em que a Educação, nesse tempo, se perdera. Mas, o que sucedeu no encontro de 15 de novembro de há vinte anos excedeu a minha expectativa. Estava perante professores e alunos decididos a interpelar práticas ancestrais e a rever processos e metodologias de formação de professores.

Deixei-os com um convite. Melhor dizendo, dois convites. O primeiro: que se estabelecesse um diálogo, no qual a equipe de educação humanizada, em que me incluía, pudesse auscultar necessidades, saber quais as necessidades por detrás das necessidades, desenvolver teoria e aplicar “soluções”. O segundo: que se criasse uma turma-piloto, gérmen de uma escola de aplicação de… “soluções”.

Recordo com ternura o início desse encontro, a passagem do enfileiramento para a disposição das cadeiras em círculo. Com ternura, porque a inusitada situação me fez lembrar tempos idos. 

A disposição do mobiliário era de somenos importância. Já havia observado boas práticas (de transição) em salas de aula onde se praticava o enfileiramento. Por outro lado, assistira a arremedos paliativos, em “espaços de aprendizagem” (como indevidamente lhes chamavam), com as mesas dispostas em círculo e semicírculo.

No início dos anos setenta, enquanto professor do turno da tarde, com os meus alunos, eu cumpria o ritual da passagem do sentar enfileirado para o sentar em círculo. 

Não tardou a reprimenda da colega mais antiga, que, por ser a mais antiga, detinha prioridade na escolha de turno:

“Senhor Professor, deixe ficar as carteiras na posição normal!”

Assim mesmo: a mensagem escrita no quadro era imperativa. Com respeito pela “antiguidade”, por baixo da ordem dada, deixei esta pergunta:

“Colega, diga-me qual é a “posição normal.”

Na reunião do Conselho Escolar seguinte, o ambiente era de “cortar à faca”. Passei a constituir um incómodo para aquelas professoras, eu era “persona non grata”. Sofri um ano inteiro de insinuações, injustas acusações e outras “violências simbólicas”. Aquele foi o primeiro impacto com uma cultura de escola passadista, com um submundo feito de ignorante arrogância.  

Sofri o segundo impacto, quando, numa escola dos cafundós de Portugal, uma professora propagou um boato e eu quase fui assassinado. Compreendi que o maior aliado de um professor é outro professor. Mas, também, que o maior inimigo de um professor que ousa questionar é outro professor. 

Sofri o terceiro impacto, quando fui trabalhar numa instituição de formação inicial de professores. Recebi um presente envenenado. Logo à chegada, entregaram-me umas folhas contendo os nomes dos alunos com quem iria interagir. Perguntei para que serviam aquelas folhas. Responderam que eram registos de presenças, que os alunos deveriam assinar à entrada e à saída de cada aula. Perguntei:

“Aqui, ainda se “dá aula”? Esta não é uma “escola superior” de formação de professores? No projeto desta escola está escrito que se pretende formar professores autónomos, responsáveis. Como se desenvolverá autonomia numa sala de aula? Como se desenvolve nos futuros professores a responsabilidade, se eles são sistematicamente controlados?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIX)

Manaus, 15 de novembro de 2043

Numa velha rede social dos anos vinte, o meu amigo Celso publicou versos de um poeta recentemente falecido. Foram escritos por Thiago de Mello, na parede da cela de uma prisão do tempo da ditadura:

“Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar / Vem ver comigo, companheiro / a cor do mundo mudar.

Vale a pena não dormir para esperar / a cor do mundo mudar.

Já é madrugada / vem o sol, quero alegria / que é para esquecer o que eu sofria.

Quem sofre fica acordado / defendendo o coração / Vamos juntos, multidão / trabalhar pela alegria / amanhã é um novo dia.”

Tinham decorrido mais de quarenta anos, quando, num fim de tarde brasileiro, reparti com o autor do poema uma mesa de congresso. 

As palavras daquele homem todo vestido de branco fizeram com que eu regressasse aos idos de sessenta, quando, num escuso recanto de uma livraria “alternativa” (de oposição à ditadura de Salazar), encontrei um poster com “‘Os Estatutos do Homem’. 

Pendurei-o no meu quarto de dormir. Para ele olhava, todas manhãs, durante cerca de dez anos, até que o papel amareleceu e já quase era possível ler os “Estatutos”. Também já não precisava. Tinha decorado o texto. Em momentos críticos, ele saía de mim para a prática quotidiana. 

Quando, no Brasil, se esboçava o espectro da ditadura, em Portugal já sopravam ventos de liberdade. E o poema do Thiago me acompanhava em todos os lugares onde eu ia e onde uma autora de liberdade, de dignidade, emergia de quase meio século de podres poderes.

Em 2004, meio século após o início da ditadura e da escrita dos “Estatutos”, Thiago de Melo publicava o seu último livro de poemas. Á beira do rio Andirá, na floresta, onde quis viver e morrer, ainda preparava dois livros de prosa, porque, há muito tempo já, avisara:

“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar”

Nesse mesmo ano, estava implícita na “carta de princípios” dos Românticos Conspiradores uma ideia de comunidade, de aprendizagem compartilhada, de práticas colaborativas. Muitos núcleos de prática surgiram. Estou a lembrar-me, por exemplo, do núcleo “Quero-Quero” do Rio Grande do Sul, onde a “docência compartilhada” era prática diária. Os RC recriavam espaços de vida em comum e o segundo dos princípios dos RC – “Educar-se em Solidariedade” – era disso evidência: 

“A educação é um processo relacional, possuindo um caráter social que deve ser assumido nas práticas educativas. 

A solidariedade, mais do que um objetivo ético a ser atingido, é uma condição primordial para a realização do trabalho educativo. Portanto, este só se desenvolverá plenamente, se considerar e incluir as diversas relações entre todos os atores envolvidos: educandos, educadores, gestores, famílias e comunidades. 

No caso da escola, é indispensável que abra suas portas à comunidade, a fim de constituir-se em polo integrador e irradiador do saber e do esforço social pela educação.”

Em 2023, os Românticos Conspiradores organizavam o seu décimo segundo encontro nacional. E continuavam animados do espírito dos Estatutos “decretados” pelo poeta Thiago: 

“Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento.

O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente, como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.”

 

Por: José Pacheco

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