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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVIII)

Mendes, 14 de novembro de 2043

O Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores se aproximava e as palavras da nossa amiga Tina davam o mote para o que nesse ENARC viria a ser esboçado: uma nova construção social de aprendizagem. Escutêmo-la, num saboroso texto datado de novembro de há vinte anos:

“Anísio Teixeira é o “pai da escola pública”, dizia que a escola não deveria adestrar alunos para passar em testes. Foi assassinado.

Paulo Freire combateu a educação bancária. Foi perseguido e exilado.

Maria Nilde Mascellani defendeu a integração entre escolas e território. Sofreu difamação e foi perseguida.

Rubem Alves defendeu escolas que são asas e combateu escolas que são gaiolas. Foi perseguido e exilado.

Pestalozzi, educador da humanidade, defendeu que a aprendizagem parte do concreto para o abstrato. Foi humilhado.

Darcy Ribeiro defendeu a democratização do ensino público. Foi perseguido e fracassou em tudo que fez.

Atuar pela transformação da educação é uma profissão de risco, pois mexe com as estruturas de poder. Quem quer uma população com pensamento analítico, crítico e criativo?

É uma profissão de risco, sujeita a perseguição, conchavo, humilhação e difamação, manipulada por quem tem poder, por invejosos maus-caracteres, mais interessados em “sair bem na foto”, do que em, verdadeiramente, transformar a educação.

Em escolas de salas de aula seriadas, com ensino padronizado, conteudista e instrucionista, com crianças emparedadas, enfileiradas e uniformizadas, com saberes fragmentados em matérias, apostilas e materiais didáticos com uso padronizado e sequenciado, com professores isolados, controlados e controladores, se reproduz a educação bancária, permanecendo os professores os detentores do saber, com “boas práticas” como: educação sócio emocional, inclusão, combate ao bullying, projeto de vida, escuta empática, gamificação, robótica, maker, tecnologias as mais diversas, metodologias ativas e educação (em tempo) integral… “Boas práticas”, que, não passam de “cortina de fumaça”, paliativos que desviam o foco do que realmente precisa ser modificado nas estruturas do sistema educacional.

Será que é ignorância ou desonestidade?

A cada 100 adolescentes que concluem o Ensino Médio, somente 5 apresentam níveis satisfatórios em matemática. 95% dos alunos terminam sem o conhecimento esperado de matemática.

É básico para qualquer pesquisador saber a diferença entre uma pesquisa qualitativa da quantitativa. A educação deve ser a única instituição que mede a qualidade pela quantidade, fazendo do volume uma falsa demonstração de qualidade. São investidos milhões com palestras, formações continuadas, materiais didáticos, equipamentos tecnológicos etc. E a Educação continua como sempre foi.

Os paliativos são muito desejados pelo poder público, pois trazem um floreado suave, agradável e a certeza da preservação de todos na Zona de Conforto. Servem para disfarçar o desperdício de vidas e a morte de potências criativas.

Quantas crianças alegres, curiosas, exploradoras, viraram bagaços humanos na adolescência, desinteressados, depressivos e com pensamentos suicidas?

Quantos professores sonhadores, idealistas e com muita garra, adoeceram ao se perceberem péssimos aplicadores de apostilas?

A educação está escandalosamente custosa de vidas.”

Vinte anos decorridos, me apercebo de que o texto da amiga Tina poderia ser utilizado como documento-base do encontro, pois era como um “grito de alerta” de alguém que dedicara toda a sua vida ao bem-estar da infância desvalida.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVII)

Camboinhas, 13 de novembro de 2043

Como referi na cartinha de ontem, foram muitas as vezes que disse a professores portugueses e brasileiros que lhes faltava amor próprio tanto quanto sobrava a síndrome do vira-lata e um sentimento de inferioridade relativamente ao estrangeiro. Foram muitas as vezes que pude testemunhar o quanto a melhor educação estava nos dois países onde me foi dado viver, e me desgostava que os professores portugueses e brasileiros desconhecessem a vida e a obra de uma extraordinária plêiade de educadores pátrios.

Haveria explicação para tal fenómeno? Após eu ter descrito a colegas austríacos os feitos de Jacob Rodrigues Pereira, apercebi-me de que a explicação estava a ser dada em alemão, pelos olhares indignados que sobre mim pousavam.

Calei-me. Senti-me penitente de pecados que não cometi e herdeiro de ignomínias. Caía inteiro sobre mim o peso do opróbrio, uma maldição que sucessivas gerações não apagaram. O cicerone, que apresentou a instituição de Viena referia estar Jacob sepultado no cemitério hebraico de Villette, em Paris. E algo se partiu cá dentro. 

Talvez inconscientemente, eu ocultara a dura realidade da diáspora judaica. Jacob Pereira, português, natural de Peniche, fora forçado a fugir de Portugal, para escapar às garras da Santa Inquisição. 

Efetivamente, o nosso país foi berço de génios que não mereceu, desde os filósofos judeus que se refugiaram nos Países Baixos – o caso de Spinoza – até aos que, não sendo judeus, foram eles próprios e pagaram pela ousadia. 

No encontro de Leiria, me reconciliei com tristes memórias, quando escutei falar de Pedro Demo. Esse extraordinário educador e amigo era citado por educadores portugueses. E, após vinte minutos de fala, durante as quais fez mais de vinte citações sobre educar pela pesquisa em novos ambientes de aprendizagem, a formanda finalizou a apresentação, dizendo:

“Peço desculpa de não saber dizer mais. Sou apenas mãe e enfermeira.”

Coube a outra formanda – dessa feita, professora – contar a estória de mais um insigne educador vivo. Começou deste modo:

“Vede se adivinhais qual foi o meu autor…” – e projetou slides com frases de Fernando Pessoa.

“Eu não conhecia este autor. E adorei estudá-lo.

A mão dele era analfabeta

Já conta 90 anos. Está bem vivo. É o Manuel Sérgio!”

Com a alegria estampada no seu rosto, continuou a descrição da vida e obra do Manuel.  

“Foi um estudioso da motricidade humana. Criticava o ensino de educação física dos anos sessenta e dizia que o homem não é meramente físico, é uma pluralidade bio-socio-psíquica, vivendo em interdependência. Também dizia que a transcendência é o sentido da vida.

Afirmava que não há desporto sem ética, sem valores. Que estamos na sociedade do espetáculo e do consumismo. E que o Papa Francisco dissera “Esta Economia mata.”

“Consegui encontrar uma tese sobre ele. O Manuel Sérgio inspirou o treinador Mourinho. Defendia que um treinador deveria ser um educador. E denunciava o que chamava de “maior drama do seu país”: o dos idosos sozinhos, nos asilos.”

“O que mais vos tocou no discurso deste homem?”

E se estabeleceu o diálogo.

Antes do intervalo, ainda houve tempo para ouvir falar de Coménius, que, em 1592, propunha uma educação para todos, no tempo de aprender de cada um, mais a interdisciplinaridade e a aprendizagem ao longo da vida

“Andamos, há mais de quinhentos anos a falar do mesmo. É frustrante. Bom! Quem quiser saber mais, tem aqui um documentário.”

À saída, sorrindo, uma formanda reproduziu uma situação típica das escolas desse tempo:

“Senhor Professor, posso ir fazer xixi? Posso?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXVI)

Inoã, 12 de novembro de 2043

No encontro de Leiria, se falou de insignes educadores portugueses e brasileiros. de personagens da história da educação, de que muitos educadores desconheciam a existência. Escutei uma enfermeira falar de Bento de Jesus Caraça – uma enfermeira!

“Como dizia Bento de Jesus Caraça, “há sábios que não são homens cultos e, por isso, estou sempre pronto a corrigir os meus erros.” 

Esse eminente pedagogo defendia o direito de acesso universal aos bens culturais. E que, para que o povo pudesse ter uma visão geral do mundo e das suas vidas, os bens culturais deveriam de preço baixo e usar de uma linguagem ao alcance de todos.”

Bento nascera em 1901. Aprendera as primeiras letras ensinado por trabalhadores do campo. E alcançara o estatuto de professor catedrático aos 28 anos. Por estar associado a movimentos antifascistas, foi preso, torturado e impedido de lecionar.”

Nos idos de oitenta, no período da adesão à Comunidade Económica Europeia, eram frequentes os congressos de educação, para os quais cada país da “Comunidade” enviava os melhores dos seus projetos. 

Na Paris de 1985, a Ponte foi reconhecida como o melhor dos projetos dos doze países europeus presentes num desses encontros. Em 1996, na cidade de Viena de Áustria, visitei uma famosa instituição. No átrio do vetusto edifício, três enormes telas prenderam-me a atenção. Do lado esquerdo, a figura austera do Imperador Francisco José. Na tela da direita, a delicada fragilidade do imperatriz. Entre ambos, um quadro que refletia um desgaste de séculos. 

A luz do sol, ainda que filtrada, esbatera os tons vivos, restava a pálida dignidade da figura: um homem de ar grave e dócil postura. Quem seria? Que feitos lhe granjearam a honra de estar ladeado de imperadores? Talvez um relevante político austríaco do século XVIII ou XIX, talvez um pedagogo austríaco de nomeada. 

Aproximei-me, coloquei-me em posição de leitura da inscrição em letras góticas douradas. E ali estava um nome quebrado pelas fendas que o tempo imprimiu no verniz: Jacob Rodrigues Pereira. 

Senti que um insuspeito patriotismo se apossava de mim. Ao meu lado, professores de outros países liam a esbatida inscrição do quadro e interrogavam-se sobre quem seria aquela personagem. Antes que o cicerone se adiantasse, eu respondi – confesso que com uma pontinha de orgulho – tratar-se de um pedagogo português, que viveu no século XVIII e que dedicou a sua vida à educação de crianças surdas. 

Para alguns visitantes, tão ávidos de informação como reverentes perante o relevo concedido pela instituição ao dito pedagogo, acrescentei – em inglês e em francês, como mandava a circunstância – mais algumas curiosidades. Que, perante os prodígios operados por Jacob R. Pereira, o rei Luís XV lhe concedera uma pensão avultada, que uma academia francesa se rendera aos seus méritos, que fora repetidamente elogiado por sábios como Buffon, que o pedagogo português – e eu sublinhava a palavra “português” – publicara (em 1762) o estudo “Observations sur les sourds-muets”, que… 

Ali estava eu, português, professor, a reivindicar glórias pátrias. Mas, a mais de dois mil quilómetros de distância, quantos portugueses, quantos professores conheceriam sequer o nome e a obra de tão insigne pedagogo? 

Há mais de duzentos anos, Jacob Rodrigues Pereira disse, por exemplo, o que Piaget haveria de repetir muito mais tarde: que a inteligência (também) passa pelos sentidos. Sem retirar importância à obra de Piaget – em pormenor abordada em compêndios e teses – alguém saberá explicar por que se ostraciza o que é nacional e é bom?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXV)

Murches, 11 de novembro de 2043

Decorria o mês de novembro de há vinte anos, num Verão de São Martinho mortiço, com suspeitas de corrupção em órgãos do Governo e no rame-rame  da rotineira escola, cenário habitual num país-jardim à beira-mar plantado.

Voltei a Lisboa na agradável companhia da Rita, do Pedro, da Paula Cainço e da Paula Gaspar. Mais uma vez, encontrei abrigo e calor humano na casa dos meus amigos António e Elisa, com um chazinho bem quente a acompanhar. 

Na manhã seguinte, voltaria ao Brasil, levando na bagagem boas recordações. Nos encontros de amigos, partíramos daquilo que nos era familiar, próximo, para um exercício de memória e uma pergunta: o que gostaríamos de ser, quando fôssemos crianças?

A ação de formação de que, ontem, vos falei, decorria “ativa, diversificada e socializadora”. Conversamos sobre a escola que foi a nossa escola. Ali, não havia objetos a capacitar, mas sujeitos de uma aprendizagem “integradora e significativa”, braço erguido, pedindo a palavra, emocionadas evocações de educadores que, em tempos idos, mudando de escola. deixaram projetos pelo caminho… e os retomavam. Com a Vovó Ludi, eles eram a última oportunidade de acreditar. Eu esperava que acreditassem, que fossem a geração do agir, do fazer. 

Na sala de aula da universidade, a Maria ensaiava novos modos de ensinar e aprender. E escutava: 

“Então, a professora não vai dar aula?

“No século XXI, já não se dá aula, caro João” – respondia a Maria.

Naquele dia de formação em equipe, a aprendizagem acontecia, sempre que se comunicava, para partilhar aprendizagens.

“O que aprendemos? O que iremos fazer com isso?” – A Paula redescobria em Nise da Silveira a origem da arteterapia, as razões da incompatibilidade com processos da sociedade psiquiátrica. culminados na lobotomia e nos maus-tratos de Barbacena, na prisão de Nise às ordens de Vargas, quando uma enfermeira a denunciou. 

Em Leiria, educadores portugueses falavam do Engenho de Dentro da década de trinta, de uma carta a Carl Jung, da criação de um museu de imagens do inconsciente, dos feitos de Nise. Na outra margem do Atlântico, educadores portugueses citavam Nise:

“Todo mundo tem um pouco de loucura.”

“Não sou filantrópica. Sou curiosa do abismo.”

E agradeciam:

“Muito obrigado! Não conhecíamos Nise da Silveira.”

Falava-se de “inventários de valores, de círculos de vizinhança, de “parcerias” (escapando à estapafúrdia moda do uso de anglicanismos como “stakeholder”), se descrevia o modo como se fizera levantamentos de potencial educativo das comunidades.

“Colocamos a “lupa” à volta das nossas moradas, reunimos no círculo de proximidade, investimos numa escola próxima, reunimos na Mata de Marrazes, toda a manhã a conversar, ideias a borbulhar. O que poderíamos fazer pelos nossos filhos e pelos filhos dos outros?”

“Descobrimos que temos vizinhos. A minha vizinha do lado tinha um abacateiro. O marido o tinha plantado. “Não sei para que serve” – disse a minha vizinha. Eu peguei num saco e o enchi de abacates.”

“Olá! Criámos um logo, para sentirmos a alegria da tribo. Que tal? Pusemos no ChatGPT os nossos valores… saiu uma pintura” – junto a esta cartinha a “pintura”, que guardei, durante vinte anos, junto de outras maravilhas que o encontro de Leiria me ofereceu – “Definimos os valores da Semente e, agora, estamos a trabalhar com a comunidade, em círculos de vizinhança. 

Criamos um site. “Fomos à Biblioteca Jose Saramago. Saímos de lá às dez da noite. Perguntaram-me “Por que estais ali tantas horas?”

“Porque estamos juntos. Porque ainda há meninos com olhos brilhantes.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIV)

Leiria, 10 de novembro de 2043

De manhã, bem cedinho, o amigo João me levou da Foz do Arelho até Lisboa. No dia anterior, a Rita me levara para as Caldas, para um auspicioso encontro. 

Este vosso avô continuava tão andarilho como dantes. Porém, convicto de que uma nova geração de educadores (pais, professores, gestores) iria, em breve, prescindir dos meus préstimos e eu poderia (enfim!) descansar.

Depois de um belo repasto e de agradável conversa regada a tinto da casa, na casa da Magda e do Bernardo, lá fui até Leiria. À chegada, a incansável Andreia me esperava, com um farnel a preceito, para que o vosso avô não fosse dormir com o estômago vazio. Eu não tinha casa nem dinheiro, mas era rico de amigos. Seguiu-se um sábado de boas surpresas. 

Em 1996, eu havia desistido de fazer formação. Em 1992, tinha criado o primeiro centro de formação contínua e também tinha o primeiro alvará de formador e de consultor de formação. Eu me senti como o maior responsável pelo caos instalado na formação. 

O Centro de Formação da Associação PROF realizava, única e exclusivamente, círculos de estudo, enquanto os cardápios de outros centros eram preenchidos com velhas modalidades, como o curso, o módulo de curso, seminário, estágio. Chegados a meados dos anos noventa, a formação era uma grande mentira construída sobre vinte milhões de euros. E eu não poderia pactuar com mentiras.

Mas, há vinte anos, educadores da região de Leiria me levaram a preparar uma ação de formação. Com a Hélia, concebi um círculo de estudos. Voltei à formação.

“Professor, está mais animado?”

À primeira pergunta respondi afirmativamente. E o que se seguiu me animou ainda mais.

Partimos do contexto de uma sala de aula da Escola Superior de Educação de Leiria. E, num sábado de há vinte anos, a avaliação da formação foi um ato de partilha de descobertas. 

Consegui ficar seis horas saboreando evidências de aprendizagem, sem abrir a boca, sem julgamento, nem questionamento. Apenas escutando com enlevo e respeito manifestações de uma nova profissionalidade, de uma nova consciência e da prática de necessária mudança. Tinha sugerido que estudassem autores que, de algum modo, tivessem influenciado essa prática, dado que não há prática sem teoria e todos deveriam saber fundamentá-la cientificamente. E as apresentações abriram com… Paulo Freire.

“Antes e durante sermos professores. nós somos pessoas. Freire no disse. Somos todos aprendizes.”

Em seguida, uma Montessori, que foi médica, psicóloga e má aluna, pois só aos treze anos conseguiu completar a instrução primária. Biografia exposta, a par de relatos de trabalho em equipe de professores e pais, vídeo e dramatizações a acompanhar a descrição dessa educadora exemplar, manifestações de criatividade na formação. E o convite:

“Então, colegas, quereis falar? Perguntar?”

E o diálogo corria solto e formativo. O pai Michael até propôs um exercício de “olhos fechados”, com recurso ao “ChatGPT”. Agostinho da Silva foi por ele estudado:

“Agostinho renunciou a bens materiais e incitou ao uso livre da liberdade. Fui à biblioteca da Carreira. Pesquisei. Não encontrei um livro sequer sobre Agostinho. Na Internet, assisti a um filme sobre ele. Entendi o porquê da Festa do Espírito Santo. Agostinho fez-me viajar.”

E, mais adiante:

“Os professores têm falta de poder. Se as crianças aprendessem com liberdade construiriam um mundo gratuito onde não haveria crime. Fui guarda nacional republicano. Quando li Agostinho, me arrepiei. Não tenho apresentação para vos mostrar. Falo com o coração. Alguém quer falar? Partilhar?”

(continua)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIII)

Caldas da Rainha, 9 de novembro de 2043

Mãos amigas encaminharam para a minha caixa de correio as imagens que junto a esta cartinha. Nelas, duas mães velam os seus filhos, no mesmo lugar do mundo, com uma diferença de 2.000 anos.

Mos idos de vinte, não hesitei em denunciar cíclicas tragédias resultantes de uma iníqua “ordem social”, obra de políticos formatados por um iníquo modelo educacional fundado na competitividade negativa, que, já no início do século XX, Maria Montessori denunciara. Na Ucrânia, no Iémen, na Faixa de Gaza, a agonia da infância acompanhava a agonia de um modelo escolar que, a todo o custo, os poderosos do mundo tentavam manter.

Nele reinava a competitividade negativa. Estrambólicas premiações da “melhor escola do mundo” culminavam campanhas de acirrado marketing político. E era curta a distância entre escolas que afixavam “quadros de mérito”, a divulgação de rankings e o “And the winner is!” de ridículos concursos de “Professor Nota 10”. 

Proliferavam “inovações” na Internet. Empresas e fundações patrocinavam generosamente organizações consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, assessoradas por áulicos universitários saídos das catacumbas da educação do século XVIII.

A curiosidade me impeliu à consulta do currículum vitae de palestrantes de “lives” e congressos. Havia muitos “especialistas em educação” formados em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças… 

Psicólogos protagonizavam “lives” de autoajuda. Médicos davam formação sobre “neuroeducação em sala de aula”. Economistas introduziam o “e-learning em sala de aula”. Filósofos discorriam sobre “computação ubíqua em sala de aula”. Comunicadores principescamente pagos proferiam palestras sobre “inovação”, recuperando pedagogias fósseis, como a do “aluno no centro do processo de aprendizagem”. E os professores as reproduziam em situações de ensinagem… em sala de aula. 

Escutei um “especialista” dizer que havia “ajudado muitos alunos do 1º ciclo a adaptar-se a passagem da monodocência para a pluridocência do 2º ciclo”. E, no tempo dessa transição, crianças desenvolviam incontinência urinária, outras ficavam febris, na “hora de ir para a escola”. 

“É assim a vida!” – diziam alguns – “Terão de se adaptar.”

A que “adaptação” se referiam? Ao conformismo? À subserviência? Referir-se-iam a alunos doentes de normose, escolarmente domesticados, que poderiam regressar à sua escola para matar colegas e professores? 

Câmaras de vigilância eram colocadas em salas de aula, acompanhadas da advertência: 

“Agora, terão de se comportar!”. 

Matava-se a moral, quando se levava a agir com medo de castigo, impedia-se o desenvolvimento moral dos jovens.

Quando, no chão da escola, perguntava a uma criança o que gostaria de saber, ou fazer, ela respondia:

“Eu posso dizer o que quero saber? E o que quero fazer?”

Já não faziam perguntas, nem sabiam o que responder. A curiosidade infantil se esvaíra. Já tinham escutado milhares de respostas a perguntas que nunca tinham feito. Já tinham perdido o hábito de perguntar, de interrogar a vida. 

O amigo Matias lançava veementes apelos: 

Deixem as crianças em paz e não façam de conta que a escolarização segue os cânones normais. Não afoguem as crianças com classificações, modismos escolares totalmente despropositados. Afirmem a importância da comunicação e convivialidade, libertem a casa da lógica da escolarização.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXII)

Restelo, 8 de novembro de 2043

Voltei a remexer em velhos baús, reencontrando papéis, compact disk, que já não tenho onde ver e ouvir, pen drive empoeiradas e papéis. Muitos papéis, os restos mais duráveis, que me fazem restaurar boas e más memórias. Neles achei uma notícia de há, exatamente, vinte anos, quando a minha amiga Helena me levou a participar no primeiro “Innovators Forum”. “Especialistas em Educação pedem novos modelos de ensino” era a parangona da notícia. Seguia-se a descrição do evento.

“A Educação foi o tema central, que juntou especialistas nacionais e internacionais, para discutir tendências, desafios e oportunidades nesta área crítica para a sociedade, sempre com uma lente de futuro. O evento contou com mais de mil participantes, professores, alunos, empresários e decisores.”

A Cláudia deu o mote, evocando a memória e propósito do pai Belmiro:

“O futuro precisa de ser desenhado e inventado. Precisamos de novas abordagens, novas experiências e muita determinação dos vários agentes da sociedade”.

“Ao longo da manhã, subiram a palco diversos especialistas para debater as mudanças que devem existir para escalar a Educação do futuro. Entre eles Sugata Mitra, que mostrou a sua visão sobre o futuro da Educação, destacando, em particular, que o sucesso dos alunos não deve ser medido pelo nível de conhecimento, mas antes pela sua capacidade de compreensão, comunicação, que o propósito da Educação passa por permitir às pessoas viver vidas felizes, saudáveis e úteis.

O Innovators Forum contou com diversos debates centrados em tópicos como os novos modelos educativos em Portugal ou a necessidade de repensar o tradicional sistema de ensino. José Pacheco, educador fundador da Escola da Ponte e da Open Learning School chegou mesmo a referir que o atual “sistema não funciona, é inútil. Ele não pode ser melhorado, tem de ser mudado”.

Recordo-me de, no final do encontro, ter comentado que “não há bela sem senão” Realçada a oportunidade e a importância dessa reunião, nela voltei a assistir à naturalização de um modelo educacional obsoleto, pois os oradores continuavam a falar de “sala de aula”, “turma”, “carga horária” e “quinto ano”.

Vinte anos antes, um pai atento e preocupado me dizia que a filha tinha produzido um vídeo sobre piratas e manifestado vontade de aprender a “fazer cinema”. O João perguntava:

“Como aproveitar este desejo dela? Devo “forçar” perguntas? 

O professor da minha filha marcou estes trabalhos, para hoje: Português: gramática – determinantes (artigos definidos e indefinidos, possessivos e demonstrativos); Matemática: diagrama de caule-e-folhas; frações; tabuadas; operações; unidades de medida de comprimento; Estudo do Meio: solos e formas de relevo; meios aquáticos; sistema solar; pontos cardeais; itinerários; Cidadania: ser responsável.

O que poderia aquele pai fazer, perante absurdos? Que “conselho” eu poderia dar a um pai, que demonstrava tanta preocupação e sensibilidade? Não soube o que responder a essas interrogações:

Como organizo o desenvolvimento do projeto? E a avaliação? Como sei que aprendeu? Uma apresentação sobre o projeto é suficiente? O trabalho escrito é suficiente?”

No dia seguinte ao do Fórum fui até às Caldas, conversar com pais e mães da qualidade do João, pais e mães conscientes da necessidade de usar as propostas de especialistas e palestrantes no contexto de uma nova construção social de aprendizagem. E lamentei que ainda houvesse especialistas, palestrantes e professores que não se apercebiam da farsa de fingir que se ensinava “dando aula”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXI)

Lisboa, 7 de novembro de 2043

Por volta de novembro de dois mil e vinte e três, na Faixa de Gaza, entre os muitos milhares de vítimas dos bombardeios israelitas, mais de 3400 eram crianças.

Condoído, Mia Couto falava de caixões pequeninos. Os mesmos que as minhas mais distantes recordações de infância me trazem. Não havia dia que não visse passar esses caixões pequeninos no ombro do homem que os levava para o cemitério. Na Ilha dos Tigres da década de cinquenta, era absurda a taxa de mortalidade infantil. Setenta anos decorridos, a fome e as guerras continuavam a ceifar vidas de inocentes. 

Conversava com colegas professores, quando um deles perguntou:

“O que é que isso tem a ver a educação?”

“Tem tudo.” – respondi – “Quem educou os monstros que cometem tais crimes?”

A Família os tinha engendrado e educado. O Estado, através da Escola, havia naturalizado um modelo educacional origem de múltiplas violências. A Sociedade os tinha educado e condenado.

Rompendo o silêncio da denúncia da barbárie, vozes conscientes se faziam ouvir. Como a de Craig Mokhiber:

“Esta será minha última comunicação oficial como Diretor do Escritório de Nova York do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Estou escrevendo para você em um momento de grande angústia para o mundo, inclusive para muitos de nossos colegas. Mais uma vez, estamos testemunhando o desenrolar de um genocídio diante de nossos olhos e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo. 

Foi nos escritórios da ONU que trabalhei durante os genocídios contra os tutsis, os muçulmanos bósnios, os yazidis e os rohingyas. Em todos os casos, quando a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, ficou dolorosamente claro que havíamos falhado em nosso dever de cumprir os imperativos de prevenir atrocidades em massa, proteger os vulneráveis e responsabilizar os perpetradores. O mesmo tem acontecido com as sucessivas ondas de assassinatos e perseguição de palestinos ao longo da existência das Nações Unidas.

Estamos falhando, mais uma vez. Como advogado de direitos humanos com mais de trinta anos de experiência nesse campo, estou bem ciente de que o conceito de genocídio foi muitas vezes abusado politicamente. Mas a atual matança do povo palestino, enraizada em uma ideologia etnonacionalista colonial, uma continuação de décadas de perseguição e limpeza sistemáticas, baseada inteiramente em sua arabidade e associada a declarações explícitas de intenção do governo israelense e de líderes militares, não deixa espaço para dúvidas ou debates. 

Em Gaza, casas, escolas, igrejas, mesquitas e instalações médicas estão sendo atacadas sem motivo e milhares de civis estão sendo massacrados. Na Cisjordânia, incluindo a Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e realocadas exclusivamente com base na raça. Além disso, pogroms violentos perpetrados por colonos são acompanhados por unidades militares israelenses. O apartheid reina em todo o país.

Entrei para esta Organização na década de 1980 porque encontrei uma instituição baseada em princípios e padrões que estavam resolutamente do lado dos direitos humanos. Esse é um caso exemplar de genocídio. Temos muito pelo que nos desculpar. Mas o caminho da expiação é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípios adotada nos últimos dias em cidades do mundo todo, onde milhões de pessoas estão se manifestando contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas.”

Na cartinha de amanhã, talvez volte a falar-vos da tristeza dos caixões pequeninos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDX)

Galeão, 6 de setembro de 2043

Em meados da década de oitenta, encontrei o Mestre Patrício, nos encontros da Comissão da Reforma do Sistema Educativo (CRSE), cadinho da Lei de Bases de 86. Depois, segui-lhe os passos, no projeto da Escola Cultural. Na génese da Lei de Bases, o pensamento do Mestre projetava um novo olhar sobre a Educação e sobre a Escola: 

“É preciso que o Homem se conheça a si próprio, no seu ser, é preciso que o Homem se forme, se eduque, se cumpra no seu ser – que cada pessoa possa ser outro para ser ele mesmo”.

Nos idos de sessenta, eu havia lido Mounier e a sua proposta personalista. Tinha estudado Dottrens e o seu ensino individualizado. Em 86, a Ponte já havia completado uma década de projeto, e o aluno era, efetivamente, o centro do processo de aprendizagem. Mas, pressentia lacunas no nosso labor pedagógico. A abordagem simultaneamente pedagógica e antropagógica do Mestre Patrício nos ajudou a colmatá-las.  

A proposta de “Escola Cultural”, também chamada “Educação Pluridimensional”, tinha cariz escolanovista, fora influenciada por Claparède, Montessori, Dewey, e antecedeu, em décadas, os debates sobre “Educação Integral”. A proposta de uma nova Paideia, visava a educação integral do ser humano considerado multidimensional – não apenas no domínio da cognição, mas, igualmente, no domínio da afetividade, emoção, ética, estética e até mesmo no da espiritualidade.

A produção de conhecimento caraterística da Escola Cultural aproximava-se do conceito e da prática do currículo tridimensional concebido pelos Românticos Conspiradores de 2004 e pelo Movimento de Educação Humanizada da década de vinte. Cada dimensão – da subjetividade, da comunidade e da consciência planetária – no seu conjunto, se revelava na transmissão do legado cultural e na criação cultural.

No site do Centro Educativo inspirado na obra do mestre Patrício se falava de redução do impacto ambiental, da maximização de um impacto social positivo e de uma estratégia de sustentabilidade global, desenhada em torno dos ODS. E as conferências nele realizadas eram tempos de comunitários encontros: 

“Que as conferências sejam presenciais e que seja possível conviver-se, debater-se e sonhar-se o futuro da educação em comunidade”.

Era evidente a tomada de consciência de que os projetos de humanização da educação contemporâneos não se coadunavam com as práticas escolares de então, origem remota de um mundo em guerra permanente, da corrupção generalizada e de outras e de outras violências. 

A obra do Mestre Patrício poderia ajudar a concretizar tal mudança, mas era, quase por completo, ignorada. Nos idos de vinte, falava-se de autonomia, de protagonismo juvenil, afirmava-se a necessidade de transformar o aluno em sujeito de aprendizagem, enquanto se mantinha hegemônico o trabalho pedagógico centrado no professor. 

Estávamos entrando na geração 5.0. já dispúnhamos de impressoras 3d, com as quais podíamos fabricar objetos, sem sair de casa. A Internet das coisas facilitava a vida em comum. O wi-fi planetário transformava o mundo uma pequena aldeia. A robótica e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial iriam substituir o ser humano em múltiplas situações. 

Talvez tivesse chegado o tempo de fazer justiça ao Metre Patrício, de voltar a estudar a Escola Cultural, de repensar a educação a partir da produção de vínculos entre pessoas.

“O homem é o único ser que conhecemos que se trabalha a si mesmo sobre uma ideia de si mesmo. Ou seja: o homem é o único ser sobre a Terra que quer ser outro para ser ele mesmo” – Mestre Patrício dixit.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDIX)

Inoã, 5 de novembro de 2043

Muitos anos atrás, no livro “Mágoas da Escola”, Daniel Pennac escrevia:

Eu era, portanto, um mau aluno. Na minha infância, chegava todos os dias a casa perseguido pela escola. 

As minhas cadernetas refletiam a censura dos professores. Quando não era o pior da turma, era o penúltimo. Impenetrável à aritmética primeiro, à matemática em seguida, profundamente disortográfico, refratário à memorização das datas e à localização dos pontos geográficos, inapto para a aprendizagem de línguas estrangeiras, considerado preguiçoso (lições não estudadas, deveres por fazer), levava para casa notas lamentáveis que nem a música, uma qualquer atividade desportiva ou extracurricular, de resto, conseguia remediar.

Compreendes? És, ao menos, capaz de compreender o que te explico?”

No velhinho Instagram, a Tina respondia ao Daniel, “explicava”, publicando textos de antologia, marcados pela coragem da denúncia. 

Essa boa amiga mereceria ser mais lida, mas aquele era um tempo de “influencers” fabricados com um marketing agressivo, e a educação não era assunto do interesse dos “influenciados”. 

Por isso, na tentativa de fazer um mínimo de justiça a uma pessoa ímpar e educadora humanizadora, transcrevo parte de um contundente texto da sua autoria, publicado há cerca de vinte anos. Se ainda estiver na Internet, valerá a pena que vades ler o que a Tina lá deixou. Podereis procura-la no endereço https://www.instagram.com/tinacarvalho_educadora/ 

Transformar a educação é meu propósito de vida. Minhas prioridades e decisões estão sempre ligadas a este propósito.

Eu não tenho tempo para lidar com preguiçosos parasitas e sanguessugas, nem para estar entre os que desfilam egos inflados e vaidades vazias.

Inquieto-me com invejosos medíocres, tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares e imitando seus talentos.

Já não tenho tempo para discutir paliativos inúteis sobre pseudo-inovações na educação, que só geram cortinas de fumaça, impedindo que se mexa no que realmente é necessário: a transição paradigmática.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas.

As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos (Mário de Andrade). O tempo está escasso para os rótulos, é necessário debater a essência educacional. A infância tem pressa e a sanidade dos educadores também.

Quero estar com pessoas persistentes, insistentes e resistentes (Tião Rocha). Que mesmo com medo, encaram desafios e acreditam que é possível fazer escolas que são asas e que entendem o conceito de que ostra feliz não faz pérolas. (Rubem Alves).

Quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que se dedica para livrar as crianças e professores do “moedor de carnes” (Rubem Alves), através da Educação Humanizada em Comunidades de Aprendizagem.

Só quero caminhar perto de pessoas de verdade. O essencial é invisível aos olhos (Saint Exupéry). Basta o essencial.”

Um dos livros preferidos das crianças da Escola da Ponte era aquele que dava pelo título “Como um Romance”, obra do mesmo autor, o Daniel. Sobretudo, porque o autor listava os “Direitos imprescritíveis do leitor”:

O direito de não ler.

O direito de pular as páginas.

O direito de não terminar de ler o livro.

O direito de reler.

O direito de ler no importa o quê.

O direito ao “bovarismo” (doença textualmente transmissível).

O direito de ler não importa onde.

O direito de ler uma frase aqui e outra ali.

O direito de ler em voz alta.

O direito de se calar.

Calar-se era algo que a minha amiga Tina não conseguia. E ainda bem!

 

Por: José Pacheco

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