Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCIV)

Campos de Goytacazes, 12 de setembro de 2042

Ainda vivos e lúcidos, conheci alguns dos vultos da educação, embora não me perdoasse de, nos meus tempos de África, ter estado paredes-meias com Freire e não o ter encontrado. Para compensar essa perda, recebi na Escola da Ponte dos idos de noventa, a Fátima, sua filha. Acompanhada do marido Ladislau, identificaram nos mais discretos movimentos e artefatos da Ponte a presença do Mestre.

Fui até à Escola da Vila, em demanda da filha Madalena. Mas só chegaria a ter ensejo de a encontrar, quando com ela partilhei a mesa de um congresso. Foi em Mairinque, lembro bem, e era como se nos tivéssemos conhecido há mil
anos. A filha do Mestre o invocava. Nela Freire se manifestava. Até ao momento em que o senso comum de um professáurio a interpelou. Fazíamos referência à práxis freiriana da Ponte. Poupo-vos ao teor da intervenção da criatura. Dir-vos-ei somente que carregava meia dúzia de lugares-comuns do discurso pedagógico, para rematar com uma disparatada afirmação. Serenamente, a Madalena retorquiu:

“Faça o favor de fundamentar o que acaba de dizer.”

O professáurio titubeou alguns dos jargões mais conhecidos das ciências da educação.

“Fundamente a sua afirmação” – repetiu a Madalena.

O indivíduo apresentou credenciais de “doutor”, mas… não fundamentou.

No final da sessão, fraternalmente, me acerquei dele e mantivemos uma conversa afável, sem que ele manifestasse consciência de que tagarelara decoreba de tratado académico, sem contrapartida praxeológica. Era mais um representante da estranha e perniciosa espécie dos freirianos não-praticantes.

Nesse tempo, a dialética freiriana manifestava-se de três modos. A primeira era a “tradicional”: reflexão-ação-reflexão. A reflexão e o planejamento só fariam sentido se agíssemos. A reflexão-na-ação manifestava-se num saber-fazer transformador da realidade e produção da história. A reflexão na ação acontecia quando concomitante com a vivência, a situação, ou quando retrospetiva. Nesse sentido, interpretávamos a dialética freiriana de outro modo: ação-reflexão-ação.

 

Zarpávamos da ação, de práticas já testadas e consideradas criações úteis, para conseguirmos operar mudança. Consolidada a mudança, empreendíamos caminhos de inovação. Íamos em demanda de algo efetivamente inédito.
Ao produzir inovação, novos modos de ensinar e de aprender, questionávamos práticas hegemônicas, demonstrávamos a origem socioinstitucional do insucesso escolar, interpelávamos o discurso da “naturalização” de fenômenos educacionais, como o da exclusão escolar e social.

Adorno denunciou “determinações objetivas da subjetividade”, que considerava responsáveis pela perenização da formação social vigente. O mundo era movimento, transformação da realidade social, construção humana, mas a
terceira versão da “dialética” era estática, reduzia-se a uma monótona e supérflua sequência: reflexão-reflexão-reflexão.

Disso não saiam os não-praticantes. Eram teoricistas inveterados, perdiam-se no labirinto das citações de citações, na teorização de teorias teorizadas, e “inventando” novas designações para velhos conceitos. Apesar dos pesares, Freire era celebrado, dialogicamente praticado. E Gadotti, um dos grandes reinterpretes de Freire, advertia que a prática dialógica se situava nos antípodas da pedagogia metafísica. Dizia-nos que a constituição do homem acontecia pela ascensão da consciência coletiva efetivada de maneira concreta na ação, numa interação que dava existência ao próprio homem.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCIII)

Cordeiro, 11 de setembro de 2042

O verão de 22 fora o mais quente já registado na Europa. Ficara marcado por ondas de calor e uma seca severa, que deixou albufeiras com reservas de água abaixo dos 40%. Na França, a onda de calor até calou as cigarras de Provença. Temperaturas recordes afetaram a sociedade e a Natureza. A floresta ardia sem cessar.

A desertificação das comunidades rurais era uma das responsáveis pelo desastre. Escolas com menos de vinte alunos tinham sido encerradas. As crianças eram transportadas para megalômanos edifícios construídos nas
sedes dos municípios. Já não havia crianças nas aldeias. Comunidades eram extintas. Famílias despachavam os idosos para enormes asilos, também na sede dos municípios. Os mega agrupamentos escolares desmembraram comunidades, provocaram congestionamento de trânsito. Se em alguns agrupamentos de escolas havia um professor para 10 ou 11 alunos, outros agrupamentos havia onde a proporção professor-aluno era de 1 para 2 ou 3. Mais um absurdo!

Se os (i)responsáveis soubessem que escolas são pessoas e não prédios, seria possível reverter o despovoamento e criar, ou recriar comunidades. Mas, somente em meados da década de vinte foi possível criar círculos de aprendizagem, de vizinhança nesses lugares, evitando o desperdício de transporte escolar, incentivando o caminhar, a deslocação a pé, ou de bicicleta.

Nos idos de vinte, as escolas ainda funcionavam num horário-padrão, com intervalos de fazer xixi e jogar no celular. A simultaneidade de entrada e saída dos prédios-escolas aumentava a complexidade das deslocações. Os congestionamentos de trânsito à porta das escolas criavam um primeiro pico de tensão do dia, o estresse de pais e filhos.

O amigo Carlos afirmava: “Persiste a falta de contacto com os espaços informais, os espaços que permitem o inesperado, que permitem desenvolver capacidade de adaptação: um sinal de trânsito, atravessar a estrada, andar no passeio, ser capaz de resolver problemas, apreciar a cidade. As crianças são vítimas do trabalho dos pais e não têm espaço nem tempo para serem autónomas. Na família, impera o medo e uma superproteção patológica. Vão ter problemas de saúde física, mental, social e emocional, e falta de conhecimento ecológico do local onde crescem e onde vivem.”

Urgia repensar, reconstruir a cidade. Porém, o automóvel tomava conta da cidade. Os pais alegavam ser necessário usar uma viatura, para levar os filhos à escola: “Não tenho confiança e não há meios seguros para deixar o filho ir sozinho”.

E o Carlos reagia:

“Se uma criança passa a vida dentro de um automóvel, apenas fomenta a memória espacial no trajeto, mas não vive corporalmente as sensações fundamentais para o desenvolvimento motor, social, emocional e cognitivo. Isto
impede o desafio e a criatividade. Andar de bicicleta é fundamental, tal como a descoberta dos lugares, o desenvolvimento da imaginação, a consciência da biodiversidade”.

Havia carreiras de transporte público, mas os pais não se sentiam confortáveis em deixarem os filhos em autocarros comuns. E lá voltava o amigo Carlos a falar de qualidade de vida: “Todas as manhãs, milhares de automóveis não respeitam a velocidade junto à escola. Largam as crianças e vão buscá-las ao fim da tarde. As crianças não podem ficar sentadas, quietas e caladas, horas a fio, em casa, na escola e no carro. Corpos ativos dão cérebros ativos através de emoções e sentimentos.”

O Carlos pregava no deserto. A sua voz somente foi escutada, quando protótipos de comunidade foram criados e anómalas situações foram corrigidas.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCII)

Niterói, 10 de setembro de 2042

A Alberta, professora recém-formada e “com o sangue na guelra”, chegou à sua nova escola decidida a criar um núcleo de projeto. Não conhecia os hábitos da casa e ousou levar um livro do Morin para a reunião do “pedagógico”. Foi fatal, pois não tardou a ouvir:

“Olha esta! Armada em intelectual! Era só o que nos faltava!”

“Ó colega, eu encontrei este livro na biblioteca.” – titubeou. 

“Na biblioteca? Vê-se bem que a colega ainda é nova, que ainda tem umas ideias esquisitas. Assim, não vai longe! Eu lhe asseguro” – replicou a professora mais velha. 

Enganou-se a professora mais velha, pois a colega mais nova foi “longe”. Foi para longe daquela escola, peregrinar em busca de escolas não habitadas por sombras. Foi resistindo ao desdém e ao desânimo, até ao dia em que encontrou um lugar a que pôde, finalmente, chamar escola. E, com professores a quem pôde chamar professores, ajudou a levantar um projeto resiliente.

Qualquer caminhada nos ensina que não há everestes definitivos. O limite dos mares, as arestas dos abismos onde imperavam os monstros de todas as mitologias, tudo o que aparenta ser o último e definitivo passo não é mais do que o primeiro passo de cada recomeço. 

Quando assistia ao desânimo de algum professor, fazia-lhe ver o quanto tinha para andar, o quanto deveria acreditar na passada. Falava-lhe dos educadores de todos os tempos que iam a seu lado, numa incessante caminhada. Falava-lhe de resiliência. 

O amigo Conrado era um jovem resiliente e sábio. Nos idos de vinte, assumira um voluntariado consciente numa escola resiliente. E fazia o seu caminho apoiado naquilo que uma ciência prudente lhe oferecia. Passo a palavra ao Conrado:

“No início do ano de 2021 recebi o convite para participar de uma reunião virtual – ainda em decorrência da pandemia do Corona Vírus – na qual seria apresentada uma proposta de trabalho voluntário. E me voluntarizei. 

Constituída a equipe de projeto, retomamos a proposta elaborada pelo Grupo de Trabalho da Inovação do MEC (2015) e a “recomendação” do José: “Uma educação de boa qualidade, que assegure excelência acadêmica e
inclusão social, é possível, se redefinido o conceito de “escola”, se
acontecer a reconfiguração das práticas escolares no contexto de novas
construções sociais de aprendizagem”.

Mais que uma transição, almejávamos uma rutura com o modelo arcaico de Escola que prioriza a transmissão de informações e adota uma avaliação que segrega e compara. Para maioria dos educadores da escola, essas transformações representavam um choque com sua cultura profissional: o professor deixaria de ser quem dá respostas passando a ser quem faz perguntas. – não adianta ser qualquer pergunta, precisam ser boas
perguntas, que motivem o aprendiz a buscar respostas.

A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa-ação, que associa teoria e
prática de modo que os participantes se envolvem de maneira participativa e/ou
cooperativa, permitindo que os mesmos adotem uma postura reflexiva e crítica sobre si mesmos. Essa pesquisa se aproxima da dialética freiriana, na medida em que parte da ação, perpassa pela reflexão que gera nova ação, constituindo o ciclo promovedor de mudanças atitudinais” 

Durante um ano, o Conrado conviveu com educadores entusiastas e outros receosos, ajudado pelas por duas solidárias Martas. Aos poucos, foi esboçando o perfil de um professor-tutor, documento que achei numa das minhas incursões num velho baú. O Conrado o partilhou, quer com professores descrentes, quer com educadores excecionais e… resilientes. Eram raros, mas os havia. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCI)

São Gonçalo, 9 de setembro de 2042

Desde a primeira chegada do Homem à Lua, centenas de objetos foram deixados na sua superfície, como mensagens para eventuais extraterrestres de passagem pelo nosso satélite. 

Nesse tempo, as viagens espaciais dependiam do uso de pesadas naves e de imenso tempo de travessia do universo conhecido. Até que chegou o tempo dos hologramas intergalácticos, o tempo em que se demonstrou que o tempo era… invenção humana. 

Os primeiros calendários organizaram a vida das primeiras sociedades organizadas. Para plantar e colher, a tempo era contado de forma macro, compreendendo intervalos de semanas, meses. A divisão sistemática do tempo surgiu com os relógios solares, ampulhetas e relógios mecânicos. Até que a compreensão de tempo se modificou por obra de Einstein e da sua Teoria da Relatividade.

Em 2012, o físico Rovelli afirmou que o tempo era algo inexistente, que era apenas uma convenção. Rovelli dizia que o tempo era um referencial útil apenas na Terra. Assim como a noção de ‘baixo e cima’, o tempo só fazia sentido no nosso planeta. 

A computação quântica lançou nova luz sobre o conhecimento do universo e modificou a nossa visão do tempo. Ele decorria diferentemente, de acordo com relações gravitacionais, e em velocidades diferentes para pessoas diferentes, dependendo de onde estivessem e como se locomovessem.

No século XIX, um estudo de Fredric Myers, cofundador da Society for Psychical Research precedeu o que, na década de trinta do nosso século, se ensaiou: a comunicação de pensamentos, sentimentos, conhecimentos entre pessoas, sem recurso à audição ou à visão. 

A comunicação à distância ultrapassava a capacidade da nossa normal perceção, estava para além do tempo. O falar sem palavras estivera atrofiado por excesso de estímulos externos, mas, nessa década, a capacidade extrassensorial se revelou como faculdade interna de qualquer ser humano. Desde há pouco tempo, como sabeis, já é possível comunicar com lugares distantes, com habitantes de outras galáxias. 

Da galáxia 23876, a “Galáxia do Triângulo”, vizinha de Andrômeda, chegou uma mensagem da Maria, uma jovem do século XXII. Deixei ao cuidado do meu amigo Henrique a “entrega” da “resposta” e colocarei, aqui, em breves palavras, o muito que transmiti sem precisar de recorrer a palavras ditas.  

A Maria demandava respostas:

“Qual o interesse da escola do tempo em foi professor e por que se aprendia o que se aprendia? Por que a escola deixou de existir? Por que minha escola não pode ser igual à do século XXI? Quais as causas do fracasso dessa escola? Como a escola deve ser? Por que a escola não se transformou antes de ser extinta? Se sabiam como ter uma escola melhor, por que não o fizeram?” 

E eu as transformei em perguntas:

“Na prática, aprendia-se o que impunham que se aprendesse? A escola deixou de existir, ou se reconfigurou? O ser humano terá aprendido a não repetir erros cometidos nos séculos XIX e XX? Ou continuaria a agir como freio da aprendizagem e da felicidade humana? Uma escola melhor não seria aquela que ajudasse a curar uma sociedade doente? 

“Respondi” a todas as interrogações com novas interrogações. Gradualmente, no seu tempo, a Maria foi achando respostas, as suas respostas e, também, universais respostas. Compreendeu por que, nos idos de vinte, a velha escola foi dando lugar a novas construções sociais.

Mas, como qualquer criança de qualquer tempo, de qualquer recanto do universo, a Maria é feita de uma curiosidade insaciável, que a escola do nosso tempo, felizmente, já não mata. 

Dela acabei de receber novos questionamentos.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXC)

Aldeia, 8 de setembro de 2042

Nos idos de vinte, a comunicação social dava conta de uma crise, a da “falta de professores”. No Brasil, como em Portugal, “professores sem formação” poderiam “dar aulas”. Uma “resolução” até permitia que estudantes de cursos de licenciatura, a partir do quarto semestre”, fossem “contratados para dar aula”. E uma professora universitária comentava a situação:

“É um remendo muito malfeito. Mais uma vez, vão jogar mais problemas para dentro da escola, porque vão contratar pessoas sem formação e sem experiência para atuar em sala de aula.”

Confesso a minha perplexidade. A crítica justa não cairia sobre a universitária autora da crítica? Afinal, quem (não) formava os professores? 

O André fez vestibular para ser matemático. Completou os dois primeiros anos do curso com elevadas classificações. No final do segundo ano, decidiu não ser apenas um matemático, mas professor dessa disciplina. Fiquei preocupado. 

O André passara dois anos aprendendo noções matemáticas, era especialista em matemática, mas nenhuma disciplina do seu curso o preparara para ser professor de matemática. Apenas beneficiava de uma vantagem relativamente aos colegas da sua turma: fora aluno da Ponte. 

Perguntei-lhe se, nos anos letivos seguintes, o currículo do curso incluiria disciplinas que o habilitassem para exercer a profissão de professor. 

“Haverá duas: “Metodologias de Ensino” e “Psicologia da Educação”. 

“Só isso?”

“Só isso.” – respondeu.

A minha preocupação aumentou.

Na primeira aula (naquele tempo, ainda havia aula), o professor de “Metodologias” informou que iria “substituir o professor titular da cadeira” e que nada sabia de metodologias. Fizera doutoramento em História da Matemática, e passou um ano inteiro ditando a sua tese em fastidiosas aulas. A professora de Psicologia distribuiu e comentou apontamentos sobre alguns autores. Perguntou se havia dúvidas, e dado que as não havia, marcou data de exame. 

Nos anos noventa, uma nova fornada de “docentes” iniciou a sua vida profissional, tudo sabendo de matemática e nada sabendo de ser professor. Ano após ano, milhares de matemáticos, engenheiros, advogados, historiadores, padres, literatos, músicos, arquitetos e outros formandos universitários ingressavam numa carreira desprovidos das mais elementares noções de ciências da educação.

A ingenuidade pedagógica e a reprodução do modelo educacional que fora o seu enquanto alunos eram causas do “insucesso escolar”. E os improvisados docentes nem chegavam a aperceber-se da sua quota parte de responsabilidade pelo insucesso e abandono intelectual da maioria dos seus alunos.

Não se julgue que o curso do Magistério de então diferia significativamente da formação do André e dos seus companheiros. Nem o meu curso deu a um sistema de ensino massificado engenheiros capazes de serem verdadeiros professores. Alguns dos improvisados “docentes” usavam de bom senso e conseguiam mitigar a ignorância com leituras e a frequência de cursos. 

Um desses professores, que não envelhecera profissionalmente, disse-me: 

“Há muitos anos, eu percebi que era um desqualificado com canudo. Admiti que nada sabia de ser professor. A compreensão da dimensão do meu drama assustou-me. Reagi fugindo para a frente. 

Apesar das dificuldades defrontadas, preferi o caminho da autenticidade e do conflito. Recusei o fácil caminho de reproduzir o que é velho e não serve. Penetrei os mistérios do fenómeno educativo. Ainda vou no início, mas me converti”. 

Nos idos de vinte, ajudei muitos educadores nas suas “conversões”.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXIX)

Macaé, 7 de setembro de 2042

Certo dia, um leitor do meu livrinho “Dicionário de Valores” me perguntou qual seria o valor dos valores, “o valor mais importante”. Naquela altura, não soube que resposta dar. Hoje, talvez saiba.

Diria o Nietzsche que valores falsos e palavras enganosas eram os piores inimigos para os mortais. Para não cair em falsidades e enganos, no segundo dos encontros do projeto das novas construções sociais, conversamos sobre matrizes axiológicas e tentamos definir o valor “coerência”. 

Ser coerente seria apenas ser congruente, estabelecer concordância entre ideias e fatos? No contexto escolar, talvez a coerência assumisse a forma de fidelidade a princípios. Mas, em nome da verdade (palavra rara nos projetos político-pedagógicos das escolas) se diga que valores abundantes no discurso pedagógico raramente se traduziam em atitudes, talvez por não serem passíveis de concretização no contexto de uma sala de aula. 

Por exemplo: se o professor tinha dever de obediência hierárquica, se não era autônomo, como poderia educar em autonomia? Ninguém conseguiria dar o que não possuía. Se a autonomia era algo que se exercia em relação a outrem e o professor estava sozinho em sala de aula, como poderia ensinar autonomia? 

A mudança das instituições processava-se a partir da transformação das pessoas que as mantinham. Se o professor pretendia despertar sentimentos de respeito ou de responsabilidade nos seus alunos, precisaria de colocar esses sentimentos nas suas atitudes. Por que ficar entre o discurso da mediocridade e a linguagem do génio? Por que ficar no meio-termo? Schweitzer foi coerente: abandonou o conforto da cidade, foi selva adentro e consumou ideais. 

Cortázar escreveu que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Tão importante como escutar uma palestra seria escutar-se a si próprio. Tão importante como ler um livro seria escutar-se, verificar a coerência entre a teorização e o agir. E, também, saber fundamentar aquilo que se fazia, assumindo compromissos. A teoria só se converteria em ato, quando assumida em situações reais. 

Nos anos vinte, precisávamos de menos visionários e de mais coerência praxeológica. Dizia Lewin que produzir teoria sem prática era como viajar no vazio; prática sem teoria era como viajar no escuro. Há vinte anos, sabíamos que a pedagogia agia numa fronteira ténue entre intenção e gesto, pelo que não nos deveríamos preocupar apenas com “grades” ou “matrizes” curriculares. Se mostrava necessário estarmos atentos aos modos de trabalho, que deveriam considerar, por exemplo, o ambiente social em que o aluno vivia. 

“A escola é apenas um momento da educação; a casa e a praça são os verdadeiros estabelecimentos pedagógicos”, dizia Pestalozzi. Que não nos esquecêssemos da necessidade de harmonizar valores do projeto escolar com os valores do projeto familiar (mesmo que ninguém o tivesse escrito). 

Se nos lares e nas ruas escasseava a tranquilidade e a reflexão, como pretender que os alunos se mantivessem quietos e calados em sala de aula? Se havia professores que se atropelavam, se interrompiam a fala de outros professores, ou não os escutavam, sussurrando no pé do ouvido do colega do lado, como se poderia exigir dos alunos o erguer de um braço, para solicitar a sua vez de falar?

Posturas de cidadania básica não eram comuns, no decurso de reuniões de professores. Na universidade das cátedras – matriz, origem de todo o modelo educacional – a distância entre o que, teoricamente, os académicos propunham e a sua prática era abissal. Cadê a coerência?

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXVIII)

São José, 6 de setembro de 2042

Voltemos às preciosas considerações do amigo Conrado e à descrição da sua vivência no coletivo da 115 Norte, cujo objetivo deste modo ele definia:

“Reconfigurar as práticas e o modelo de escola, bem como sua organização e como as diversas relações nessa perspetiva acontecem, a fim de engajar, cada vez mais, os agentes educativos nos processos educacionais e obter maiores índices de aprendizagens, vivências e experiências significativas para todos, consequentemente, melhorando a qualidade da educação.”

O meu amigo concluíra que a Escola Classe 115 Norte agia em conformidade com a proposta de Anísio Teixeira, a de reconfiguração da rede educacional do Distrito Federal, que “deveria servir de modelo e inspiração para todo o país”. Também nisso estava certo e, nessa altura, já levávamos sessenta anos de atraso:

“A mudança é respaldada, tanto pelo compromisso ético dos educadores, quanto pelos preceitos, valores, princípios, visões, missões e objetivos explicitados no Projeto Político Pedagógico da instituição. Ao perceber que, ensinando a todos do mesmo jeito, havia aqueles que não aprendiam, não poderiam mais continuar a trabalhar da mesma maneira. A nossa Constituição diz que a educação é um direito de todos e não um privilégio para alguns.”

O Conrado descrevia, na perfeição possível, o que passaria a ser conhecida por tutoria e qual a sua génese:

“Foi criada uma “turma-piloto” constituída por estudantes de várias idades, sob consentimento das famílias, tendo a “tutoria” como dispositivo de mudança e elaboração de “projetos de vida”. Por se tratar de uma abordagem diferente de “dar aulas”, a tutoria requer uma habilidade específica: a gestão da imprevisibilidade. A partir das falas do educando, o tutor deve saber postular questionamentos pertinentes ao objeto de interesse, para que este se torne objeto de estudo. As perguntas devem ser intrigantes o bastante para motivar o aprendiz a ir em busca das respostas.”

Completando a introdução do seu trabalho, o Conrado citava o Mestre Lauro:

“O único meio de provocar motivação é criar uma necessidade de ação, isto é, provocar um desequilíbrio homeostático orgânico ou psicológico. A dúvida e o problema são desequilíbrios motivadores da reflexão”

“Necessidade de ação” e reflexão” … onde já teria ouvido isso? A mensagem do Mestre Lauro juntava-se à do Mestre Freire e à de outros mensageiros de uma nova educação, que do anúncio se fazia ação. 

Uma nova geração – a do Conrado, da Zizi e tantos outros – viria a tomar o lugar de uma geração de transição. Prestes a me retirar da ribalta educacional, iria juntar ao dom do desapego a tranquilidade de quem sabia que o cinzentismo educacional dessa época não era o fim do mundo – era apenas o princípio.

Havia quem me criticasse por ter esta “estranha mania de ter fé na vida” e de reiterar a minha fé nos professores que não tinham perdido a fé. Alimentava-me de esperança, porque ela nunca seria a última a morrer – ela nunca morreria. 

O amigo Rubem dizia que os educadores não eram pessoas otimistas, mas seres esperançosos. Porque o otimismo era da natureza do tempo, enquanto a esperança era da natureza da eternidade. Por isso, eu só poderia acreditar na geração do Conrado e nos professores que ainda não tinham morrido, profissionalmente. 

Mudar só parecia ser impossível para quem nunca tentasse mudar. Eu sabia que, quando fazíamos pontaria à perfeição, descobríamos que ela era um alvo móvel. Mas, também sabia que chegaria o momento em que as portas das escolas se abririam para deixar entrar o futuro.

 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXVII)

Itapeba, 5 de setembro de 2042

Lá pelos idos de vinte, havia quem perguntasse:

“Como poderei ensinar aos meus alunos o que é um círculo de aprendizagem?”
“Dando aula” – respondia.
“Como conseguirei ensinar a fazer roteiros de estudo?”
“Dando aula”.

A resposta era sempre essa. Se a competência do professor era “dar aula”, eu valorizava essa competência, embora acrescentasse que talvez a não desse do modo como, até então, a “dera”. Quando professores me perguntavam como aprenderiam a ser tutores, eu respondia: “Dando aula”. E indicava a pessoa que poderia ajudá-los a dar essa aula: o amigo Conrado”. Esse amigo fizera a experiência de trabalho tutorial e compartilhara “as dificuldades vividas e avanços alcançados”. Num excelente trabalho acadêmico, iniciava a partilha de conhecimento manifestando gratidão a todos e todas que compuseram o enredo da sua vida, aos que lhe serviram de exemplo e inspiração. Agradecia à equipe da Escola Classe 115 Norte do Distrito Federal, por lhe ter proporcionado uma experiência “engrandecedora”.

Era assim o amigo Conrado: um jovem promissor, de pouca idade, mas de um imenso saber e sensibilidade. Há vinte anos, autorizou-me a transcrever parte do seu relato de experiência educacional enquanto tutor voluntário. Escutemo-lo.

“A inovação requer coragem para fazer diferente. Foi ao me deparar com uma instituição repleta de pessoas corajosas, que aceitei participar do desafio da concretização de práticas do emergente paradigma da comunicação.
No papel de tutor, acompanhei o processo de aprendizagem de um educando, através de encontros virtuais diários, recorrendo à metodologia de trabalho de projeto, na construção de um currículo de subjetividade, a partir dos desejos e interesses do aprendiz.”

Havia quem duvidasse da concretização do projeto “Novas Construções Sociais de Aprendizagem”. Desconheciam a sua origem, o seu enquadramento legal e o suporte científico que o Conrado, a seu modo, esboçava.

“Descrevo os desafios, dificuldades e aprendizagens, embasando a prática e as sugestões de ajustes em aportes teóricos educacionais contemporâneos; A metodologia utilizada se constituiu de registros sistemáticos do pesquisador perante os dados relevantes à pesquisa coletados durante a prática do próprio voluntariado. Como referencial teórico esse trabalho faz interlocução com as obras de Pedro Demo, Lauro Lima, Edgar Morin, pois os mesmos são referências na área da Metodologia de Pesquisa na educação básica e na inovação educacional.”

Aprendemos a fazer tutoria nos encontros formativos e transformadores das manhãs de sábado. O primeiro dos encontros aconteceria no início do setembro de vinte e dois, a convite de uma extraordinária equipe:

“Prezados amigos e prezadas amigas, estamos desde há muito contribuindo com iniciativas que tencionam liberar a educação escolar das amarras da apatia e da repetição de modelos fracassados. Com alegria fomos convidados a incluir neste processo outras equipes de profissionais de educação pública, sejam de redes municipais ou estaduais, ou concentradas em escolas específicas. No intuito de oferecer subsídios a esses que desejam integrar-se nesse movimento de mudança, convidamos a uma reunião virtual às 10 horas de Brasília e 14 horas de Portugal do dia 3 de setembro. Na ocasião, aqueles que estão há mais tempo no processo de revisão de valores e práticas poderão compartilhar as dificuldades vividas e os avanços alcançados. Abraço fraterno!”

E assim partimos para conceber novas construções sociais de aprendizagem.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXV)

Maricá, 3 de setembro de 2042

Hoje, precisamente hoje, completam-se vinte anos sobre a realização do primeiro encontro virtual de um processo de transformação, que culminou na criação dos primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem. 

Nesse tempo, face a obstáculos aparentemente intransponíveis, agíamos como Darcy recomendava:

“Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada”.

A Zizi, a Tina, a Cléo, o Mauro, a Valéria e outros educadores de uma dedicada equipe, voluntariamente, se lançaram no afã de partilhar saberes, sem nada esperar em troca. Pois o Alain dissera: 

“Fazes o que deves e nunca esperes nada em troca. Se vier alguma coisa, acolhe-a como se de um presente se tratasse”. 

E o Philippe o corroborava:

“A reciprocidade não é nada comigo. É assunto do outro e só dele. Esperar a reciprocidade, não é dar um presente, é fazer comércio. O que, evidentemente, não impede que quando a reciprocidade advém, a possamos viver como uma verdadeira felicidade. A felicidade nunca está no lugar onde a esperamos; nunca vem quando a exigimos”.

Eram tempos sombrios aqueles em que empreendemos caminhos de mudança e inovação, tempos de fome e sede de justiça, a par da fome resultante da desigualdade social. Uma crise econômica e múltiplas violências se juntavam a uma epidemia de corrupção. Eram tempos que Saramago assim caracterizou:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”.

Quando éreis crianças, eu sentia dificuldade em vos explicar absurdos. Os seres humanos de tenra idade não possuem a capacidade de os digerir. Outra solução não me restava, a não ser a de transformar a reflexão em estórias. 

Contei-vos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tentei explicar-vos o que era uma “turma”. Tarefa difícil! A cada vosso olhar de estupefação, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de perderdes o fio à meada. 

Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o vosso incrédulo semblante derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão “in illo tempore”, para vos tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam no seu tempo. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como seria possível explicar-lhes que professores (in illo tempore, claro!) dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam? 

Para vos dar tempo de respirar fundo e recuperar de perplexidades, eu introduzia pausas na minha narrativa. E vos falava de insignes mestres. Como Rosseau, que nos dizia que “tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. Ou como Freire, que acreditava ser possível que as pessoas mudassem a sociedade através da escola. E vos sossegava, dizendo ser possível reinventar a Escola, porque ela não era obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Adam Férrière.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXVI)

Maricá, 4 de setembro de 2042

Por que aprendemos? Por que uma criança aprende a falar, a andar? Como aprende? 

A criança não se perguntava. Mas nós, os professores, carecíamos de fazer perguntas a nós próprios. O projeto da Ponte começava com esta frase: “os professores precisam mais de perguntas do que de respostas”. E arriscamos nos perguntar, questionar certezas.

Quando emergiu a síndrome do ninho vazio e quando vós nascestes, intuí respostas a essas e outras perguntas. Tomei consciência de que aprendera a ser pai… e já era avô.

Acontece um tempo nas nossas vidas em que ficamos órfãos dos nossos filhos, porque os amamos e os queremos com vida própria. Porque, como diria o Kalil Gibran, “uma árvore não cresce à sombra de outra árvore”. 

O nascimento de um neto é como o regresso de um filho pródigo. Voltamos ao tempo de contar estórias. Não apenas as que falam de duendes e fadas, pois outras estórias assomam na memória dos avós. O envelhecimento ilumina a memória de longo prazo, e contamos estórias do tempo em que fomos meninos. Para vós eram tão reais e verosímeis como aquelas que falavam de princesas encantadas e de príncipes. 

Fui convosco até à beira do rio, de mãos dadas, para fruir a confiança absoluta que segura a nossa mão, mas uma criança pertence ao que está acontecendo à sua volta. Ela é o que está acontecendo. Se a acompanhamos na identificação com o aqui e agora, reencontramo-nos com o movimento livre da criança que fomos reaprendendo a tudo ver como se fora a primeira vez. 

Enquanto seguíeis com o olhar o barco que ligava as margens, eu cerrava os meus olhos e via barcaças de carvão coladas à amurada de Massarelos (que fazer, para tornar mais leve o peso da memória?), ouvia o chape-chape das águas comprimidas entre as madeiras, o ranger das pranchas que ligavam o cais às barcaças. 

Quais formiguinhas, jovens de cesto na cabeça corriam sobre as pranchas como atletas em cama elástica, gestos dançarinos suspensos sobre o vazio, tem-te-não-caias, num equilíbrio precário. Ou milagre de S. Nicolau, pois, se a todo o momento, se adivinhava o escorregar na prancha lodosa e a inevitável queda, não me recordo de ter visto alguém cair nas águas do rio. Quem os teria ensinado a “voar”? Como teriam aprendido?

“Avô, o que é aquilo? – perguntastes, olhando a ponte. Enquanto respondia, me via em raids suicidas sobre o arco de Betão incompleto da que viria a chamar-se “Ponte da Arrábida”. Transpúnhamos as águas e estávamos na outra margem. Na Aforada, éramos corsários lançados à abordagem de traineiras amarradas ao cais. Fugíamos, nadando, e depositávamos os tesouros (um pedaço de cordame, um pedaço de rede roubada, um prego enferrujado, não importava qual fosse o produto do saque…) nas ruínas de uma fábrica abandonada na encosta sobranceira ao rio, que era a nossa mina de Aladino. 

Quando o sol acordava, encontrava-me atento ao agonizar do peixe, no fundo de um caíco. E, quando o dia se extinguia em vermelhos gritos, encontrava-me debruçado na varanda em frente ao Douro da minha infância, na contemplação do acostar dos barcos rabelos ao cais de Gaia, absorto em viagens imaginárias.

Em infantis lucubrações também ficava, quando me sentava junto da Miquinhas, que lavava a roupa carregada à cabeça, escadas do Codessal abaixo. 

Certo dia, um empurrão despertou-me das divagações e fez-me mergulhar no rio. Lembro-me de ter vindo à superfície, depois de engolir uma substancial quantidade de líquido misturado com sabão. E de não ter um braço salvador à minha espera. Só risos e incitamentos. 

Foi nesse dia que descobri que sabia nadar, que aprendera a nadar. 

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