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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXX

Curuípe, 6 de março de 2044 

No Portugal de há vinte anos, estávamos na véspera de mais um ato eleitoral. A Democracia, o pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros, que havia dado à luz nobres políticos e vis ditadores, estava prenhe de promessas de mundo novo e se frustrava com nados mortos. Nos mais recônditos escaninhos de um sistema político aliado de um sistema educacional hierárquico, autoritário, intelectual e moralmente corrupto, se reproduziam injustiças, desigualdades. Tais sistemas não poderiam engendrar algo que não fosse corrupto e autoritário, e a Escola de Cidadãos atravessava tempos sombrios. 

Nas duas margens do Atlântico, era tempo de, mais uma vez, analisar os programas dos partidos candidatos às legislativas. No domínio da Educação, os programas não visavam o exercício de uma democracia parlamentar, eram arremedos de democracia para lamentar. A maioria desses programas era um deserto de ideias. Um deles roçava a indigência mental, quando apelava à introdução de mais exames.

Hei-de voltar ao assunto. Por hoje, deixo-vos com excertos de um artigo do mestre Philippe Meirieu: 

“O preço, o valor e aberração dos exames” 

“Com o termo do ano escolar chega a época de exames. Último rito iniciático oficial depois do desaparecimento do serviço militar obrigatório e da comunhão solene. Os jornalistas, os intelectuais, as vedetas do showbiz não deixam, nesta ocasião, de dar prodigamente os seus famosos conselhos quanto à forma de se preparar para o grande dia. 

Gostaríamos muito de vê-los estigmatizar, ao lado da corrida para o proveito, a corrida à nota. Gostaríamos de vê-los mais vezes criticar aqueles que trocam o empinanço estéril por certificados de conformidade, preparando assim os nossos filhos, silenciosamente, mas de forma muito eficaz, para se submeterem ao valor supremo: o arrivismo individualista.

Quem dirá o mal que engendra esta ignorância? Quem gritará suficientemente alto para denunciar a impostura de uma sociedade que priva os alunos com mais dificuldades de disciplinas artísticas, deixando que acedam ao ensino superior sabendo perfeitamente que essa impostura se desembaraçará desses alunos em poucas semanas ou em poucos meses?

Não se mede a amargura e o rancor que desta maneira se desenvolve. Ignora-se o custo social a médio e a longo prazo de um sistema que erige desta forma o desprezo em regra de funcionamento.

Mas, para lá destes fenómenos tristes, temos também de nos interrogar quanto à conceção do exame que progressivamente se foi impondo. 

O exame é reduzido a uma operação comercial, a um empinanço de alguns meses ou semanas onde, com a ajuda de uma literatura para-escolar que invade as prateleiras das nossas livrarias, se organiza um simples “reenvio ao remetente” de conhecimentos rapidamente memorizados e rapidamente esquecidos. Aprende-se assim a “limitar os estragos”, a servir ao examinador aquilo que se supõe que ele está a pedir – sem compreendermos sempre o seu sentido e o seu alcance – e que nos apressamos a esquecer.

Esta “pedagogia bancária”, como dizia o pedagogo brasileiro Paulo Freire, é a própria negação da inteligência. Reduz o sistema escolar a uma máquina absurda. A escola só ensina uma coisa aos alunos: a ter sucesso na escola! E, finalmente, apenas a habilidade para se submeter aos códigos mais ou menos explícitos da instituição é que “faz a diferença”: a diferença entre aqueles que estão prometidos a um bom destino social e aqueles que trabalharão duro saltando de pequeno emprego em pequeno emprego. Como pudemos chegar aqui?”

Como pudemos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXIX

Cumuruxatiba, 5 de março de 2044 

Nos anos oitenta, o GEP – Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação português reconhecia que:

“Faz pouco sentido, nos moldes atuais da gestão das escolas do ensino primário, falar da democraticidade de funcionamento, quando existem tão poucas oportunidades de autonomia e de exercício da capacidade de decisão. 

Limitar a democraticidade aos processos de decisão mais ou menos coletiva do conselho escolar é esvaziar o conceito de participação e responsabilização na educação”.

No mesmo ano em que o projeto Fazer a Ponte começou a tomar forma, Georges Lapassade escrevia no seu livro “Groupes, organisations, instituitions”:
“As decisões fundamentais são tomadas no cimo do sistema hierárquico. Existe uma hierarquia de decisões, do ministro ao professor, dispondo este último de uma certa margem de decisão no quadro do sistema de normas”.

Eu diria que, se dispunha, não a utilizava. A democraticidade não se compatibilizava com a menorização da instituição-escola. A gestão das escolas processava-se ao nível da subsistência. O trabalho dos legisladores era efetuado no desconhecimento da prática, ou por pessoas que dela recebia contribuição indireta.

Se o exercício de autonomia era condição do funcionamento e sobrevivência dos projetos, sujeito a múltiplos constrangimentos que me coarctavam a iniciativa, optei pela associação. E, dado que não havia professores na Ponte dos idos de setenta (só havia dadores de aula) me associei com pais de alunos.

Na Ponte, quem tomava consciência do isolamento e das discriminações poderia não as expressar, mas rejeitava-as ativamente. Ao se adotar esse posicionamento, respeitava-se, como diria o saudoso Bártolo Paiva Campos, “o direito prioritário que aos agentes locais assiste na direção dos seus destinos e a criar condições para transformação da realidade própria num contexto de maior autonomia em relação ao apoio externo. 

Os fenómenos educativos caracterizam-se por uma complexa e imprevisível instabilidade e por um permanente conflito de valores. As “realidades” educativas fomentam dilemas perante os quais os professores acabam, de qualquer modo, por tomar posição. Mais do que profissionais preparados para alcançar objetivos com “eficácia e eficiência”, os professores são intelectuais com capacidade de exercício crítico. Para que não suceda uma opção de alheamento, o professor deverá ser considerado como um profissional autónomo, que toma decisões e se assume como investigador da sua própria prática e da prática dos seus pares. 

O inesperado, o incerto da profissão de professor é, em si-mesmo, reflexo de autonomia e obstáculo a intromissões, quando se observa a preocupação com a denúncia da dominação, a par com uma nova ética da liberdade. 

A tarefa básica é a de mudar vivendo o presente na incerteza do presente. Nos atos mais triviais estão presentes as recusas da antecipação teórica dos problemas práticos. Está presente o jogo da liberdade com o real, que visa transformá-lo.

Nas palavras de Vaalgarda e Norbeck: “Os participantes fazem, em conjunto, um intercâmbio de experiências. O grupo sabe mais que o indivíduo, buscando coletivamente os factos de que necessita. E o individuo singular sente-se valorizado ao colaborar para um objetivo comum, num exercício democrático, estímulo para se agir na sociedade ou no local de trabalho”.

Hesito na multiplicação de referências, de citações, ou de mais e mais pistas para a compreensão, porque tudo o que registei me sugere retornos, coisa pouca, nada de novo. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXVIII

Monte Pascoal, 4 de março de 2044

Naquele tempo, o vosso avô não dispunha de computadores, muito menos de Internet. Apenas de restos da escola prussiana da Ditadura de Salazar. Apenas dispunha do livro único da ditadura, igual para todos, despojos de rezas obrigatórias no início das aulas e o canto obrigatório de hinos fascistas, que eu recusava cantar com os meus alunos. 

A democracia chegaria a Portugal em setenta e quatro, mas não chegou a entrar nas escolas. Meio século mais tarde, quando a Escola da Ponte já havia mostrado um dos caminhos possíveis para a humanização do ato de educar, a administração educacional compunha uma escola de massas enfeitada com computadores e Internet, revestida de burocracia, de autoritarismo e corrupção intelectual e moral.

Recordar-vos-eis, certamente, de vos dizer que, quando “dava aula”, não era eu quem estava na sala de aula. Era um ator desempenhando um papel (o planejamento da aula). Eu não estava presente. E, se não havia presença, autenticidade, relação, não havia criação de vínculos. Vem a propósito um dito de Steinbeck:

“Pergunto-me quantas pessoas terei eu, em toda a minha vida, olhado e nunca visto. É assustador pensar nisso. Quando duas pessoas se encontram, cada uma é transformada pela outra e, assim, eis duas novas pessoas”.

Foi com Rudolph Steiner e Martin Buber que consegui ver, claramente visto, “o outro”. Muito mais do que integrar a Euritmia na prática quotidiana, ou da centração na componente artística do processo de aprendizagem, creio ter apreendido e aprendido o fundamental da contribuição de Buber à fenomenologia existencial – a essência do diálogo, da comunicação, o jogo de relações intersubjetivas e com o mundo. Nunca mais andei sozinho.

Se, na década de setenta, a transição para o trabalho em equipe e o abandono da solidão da sala de aula nos transformou, nos formadores e formandos dos anos vinte, a reelaboração cultural operada produziu efeitos individuais e coletivos “diferentes” dos tradicionais.

Independentemente dessa transição, o que importa reter é que as práticas educativas condicionam o grau em que a autonomia se manifesta nos indivíduos. A sublimação das tensões, ou a manipulação dos processos de mudança, a superproteção, ou o autoritarismo, provocam oscilações entre as gratificações resultantes da dependência a as gratificações resultantes de uma autonomia assumida. 

Essas práticas são o contraponto lógico de uma interpretação restritiva dos valores da independência e identidade pessoal tão caros às civilizações ocidentais contemporâneas. E a recusa da complexidade exterior acarreta mutações de personalidade e relações ambivalentes com os outros. A multiplicidade de personalidades resultante apenas permite ao sujeito conhecer uma aparência de si próprio. 

Transformar pressupõe esclarecer o modo como se opera a politização da cultura. E o sistema de relações que se estabelece entre política, cultura e ideologia permite um re-situar-se permanente face ao social. Creio ser possível que os professores prestem atenção ao tipo de racionalidade que molda as suas próprias pressuposições e com essa racionalidade medeia, como dissera Henry Giroux (na obra “Teoria Crítica e Resistência”), “as regras da cultura dominante e as experiências da sala de aula propiciadas aos alunos.

Urge que o professor confronte pressuposições a respeito dos objetivos da educação, com os tipos de conhecimento e estes com os valores e as relações sociais considerados legítimos, que se interrogue sobre quem vai – e, sobretudo, como vai – ser educado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXVII

Eunápolis, 3 de março de 2044

No “Adeus às Armas”, Ernest Hemingway escreveu:

“As melhores pessoas possuem um sentimento de beleza, coragem para arriscar, disciplina para dizer a verdade, capacidade para sacrificar. Ironicamente, as suas virtudes tornam-nos vulneráveis; muitas vezes são feridos, por vezes destruídos”. 

Pude comprová-lo, ao longo de décadas de projetos destruídos. E, por essa razão, requeri daqueles educadores que, há vinte anos, empreenderam caminhos novos, uma desobediência consciente e amorosa, aliada à assunção de autonomia.

Quando apelava ao FAZER, não desejava o seu afastamento, mas tão só que não se quedassem pela intenção. E que não agissem sozinhos, isolados. mas sempre em equipe, exercendo autonomia em relação a alguém. A autonomia, entendida como exercício concreto, estava embotada de equívocos. Em toda a autonomia existia dependência e, nesse tempo, não havia uma ciência da autonomia, apenas teoricismo inútil. 

A autonomia a que me refiro estava para além de todos os determinismos e era agida em dinâmicas relacionais de difícil inventariação. Poderia, talvez, ser entendida como a capacidade de controlo de decisões, que não se confundia com a autonomia dos professores em sala de aula. O dador de aula não era autónomo, era autossuficiente, individualista. 

A autonomia formal estava profundamente subordinada às dependências dos professores face a um currículo e a condições materiais do seu desenvolvimento, bem como sujeita a forte controlo administrativo. Esse facto poderá ser atribuído às características do sistema, à debilidade do reconhecimento específico da profissão, ou à dispersão das competências no campo educacional, pois, como diria Montero, os professores “participavan en el cómo, pero no en el qué”.

Nesse tempo, os professores raramente eram considerados como interlocutores. 

Relações de constrangimento não favorecem o desenvolvimento moral, dado impedirem o desenvolvimento da autonomia, porque a criança adota e constrói as regras exteriores. A liberdade que esta ação pressupõe é conflitual com a obediência à autoridade, que caracteriza a apreensão das regras sociais e morais, na escola. E a submissão a regras alimenta-se da necessidade que a criança tem de elogio e de fuga a punições. A perversão do processo de autonomização tem por contrapartida a artificialidade na relação da criança com o professor e com os colegas. 

Os educadores envolvidos no processo de formação de 2024, atuavam nas margens de liberdades possíveis, racionalmente e emocionalmente dirigidos para objetivos precisos. A autonomia praticada era entendida como o autogoverno de uma profissão, que tinha ela própria o controlo das suas funções: critérios de seleção, de ingresso na profissão, regras de comportamento profissional, decisões de renovação, e que desempenhava, de algum modo, papel significativo na determinação da política educacional. 

A autonomia alimenta-se da dependência do sujeito relativamente à sociedade e à cultura, e a escola é uma microcultura que exige adaptabilidade para o exercício de autonomia. Não se processa de modo espontâneo, nem por oposição a constrangimentos impostos pela cultura escolar. Alicerça-se num processo simbiótico, porque não é a organização do caos das solidões – quanto mais autónomo é o sujeito, menos isolado se encontra. 

Poderia, então, redefinir a autonomia como o autorreconhecimento pelo sujeito das suas inevitáveis dependências relativamente à multiplicidade e complexidade do mundo envolvente e do seu mundo interior.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXVI

Barra do Garças, 2 de março de 2044

No primeiro sábado do mês de março de vinte e quatro, começou a contagem decrescente para a efetivação de um processo de mudança. Dezenas de educadores – professores, pais, agentes comunitários – tinham assumido um compromisso ético. Finalmente!

Havia quem questionasse o dia escolhido para realizar o encontro de formação virtual. Mas, após uma “negociação” de décadas, escutando milhares de professores, o sábado fora o único dia que disponibilizaram para o encontro.

Havia quem questionasse a “metodologia”, mas cadê o modo “alternativo”? Ninguém o propôs.

Ao longo de mais de cinquenta anos, o vosso avô os escutara, com paciência e compaixão, as mesmas lamentações, os mesmos pretextos para não agir. Porém, já septuagenário e saturado de lamentações e pretextos, estava decidido a exigir um FAZER possível, a partir com aqueles que agissem. Quem quisesse continuar a ouvir ladainhas teoricistas dispunha de congressos-espetáculos. Quem quisesse obter diplomas de inúteis cursos, abundava a oferta. Aqueles que só desejassem participar da reflexão sobre aquilo que outros FAZIAM dispunham de um tempo semanal para, amenamente, conversar.

Algo me irritava, sobremaneira. Como quando alguém dizia: 

“Há colegas que não entendem o que é currículo e outras coisas de que tu falas. E não conseguem acompanhar o ritmo das aulas, não têm tempo para FAZER as tarefas que dizes para FAZER. As pessoas têm família, têm filhos para criar”.

Eu considerava os professores como intelectuais críticos, reflexivos, Mas, quem desse modo se expressava, com complacência, considerava os professores como mentecaptos, incapazes de usar a razão, de pensar e, quase sempre… não tinha “filhos para criar”.

Os encontros de sábado eram oportunidades de reelaboração da cultura pessoal e profissional. E houve quem os aproveitasse, quem agisse, quem FIZESSE. Durante mais de três dezenas de encontros, realizados ao longo desse distante 2024, analisaram os projetos das escolas e lhes deram forma concreta. 

Para além de se organizarem em núcleo de projeto e definirem uma matriz axiológica, criaram uma sala de aula virtual, na qual instalaram um… portfólio. Nos encontros de sábado, essa “coleção de “evidências de aprendizagem” se expandia, à medida que se FAZIA mudança. 

Queridos netos, poderá causar estranheza eu ter escrito uma forma verbal com maiúscula. Mas não foi por acaso. Partíamos do FAZER, para refletir e voltar a FAZER. Por exemplo, acaso o “formando” (de formação se tratava, mas de uma formação “diferente”) não conseguia cumprir o planejamento semanal, o “formador” praticava avaliação formativa. Isto é: ajudava-o a identificar a dificuldade de concretização da tarefa e a resolvê-la – elaborava com o formando um roteiro de estudo. 

Aqueles profissionais do desenvolvimento humano deveriam aprender a selecionar estratégias de ação e ser responsável pelos seus atos e pelos atos do coletivo em que estava inserido. 

Não presumais que essa responsabilidade se confinava ao cumprimento de horários ou a adaptações curriculares, no último reduto da sala de aula. Aquela que os formandos criaram era um lócus de aprendizagem partilhada. Não tinha porta de fechar. 

O sentimento de pertencimento característico da nova formação conferia ao coletivo segurança para assumir microssituações de liberdade em ação, mais transgressão que reconhecimento, na marginalidade de subculturas não delimitadas pelos cânones da formação (dita) tradicional.

Já entendestes por que razão escrevi em maiúsculas o verbo FAZER?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXV

Ipê, 1 de março de 2044

A pessoa que, sem que o soubesse, mais me inspirou no desenvolvimento do projeto Fazer a Ponte foi um ser humano, exemplo de honestidade, que recordo com saudade e que, no primeiro de março de 2024, já nonagenário, celebrava o seu aniversário.

Também no primeiro de março, mas de 2011, falecia o amigo Walter, outro ser humano de eleição que queria “salvar vidas de jovens e me pedira para fazer a Escola do projeto Âncora.

A primeira criança matriculada no Projeto Âncora nascera no dia… 1 de março.

Sincronicidades?

Em finais de fevereiro de 2024, estava a ser gestada a refundação de um “sistema”. E, amanhã, se completarão vinte anos sobre o dia 2 desse mesmo mês. Nesse sábado, seria dado o primeiro passo de uma longa jornada feita de educadores, que decidiram assumir um compromisso ético com a Educação. Não lhes faltava Amor pelas crianças e jovens, nem iriam continuar a negar-lhes o direito à Educação.

De março a junho, no chão da escola e numa sala de aula virtual, desenvolveram um processo de mudança, recriando a… Escola da Ponte de 2004. A partir de setembro de 2024, encetaram caminhos de inovação, que os conduziriam à criação de uma nova construção social de aprendizagem e de educação.

Por que estou recordando velhos fatos? Não sei. O que sei é que, em 2024, ao cabo de mais de cinquenta anos de designer educacional, eu havia concluído que não mais deveria apoiar projetos isolados e que, para que os projetos se saldassem pelo êxito, deveriam, desde a primeira hora, se assumir em autonomia.

No primeiro sábado de março de 2024, aconselhei educadores portugueses a fazer a entrega de uma minuta de contrato de autonomia aos diretores de agrupamentos de escolas. E aos educadores brasileiros que fizessem a entrega de termos de autonomia aos secretários de educação.

A autonomia era condição sine qua non de desenvolvimento de projetos, no seio de um sistema de aprendizagem. Não era um conceito que pudesse ser abordado isoladamente. Muito menos se definia em referência a um oposto, mas na contraditória complementaridade com a dependência, no quadro de uma relação social aberta. E nisso se distinguia do conceito “singularidade”.

O conceito de singularidade situa-se aquém do conceito de autonomia. O reconhecimento da singularidade consiste na aceitação das diferenças interindividuais dentro de cada espécie. O reconhecimento da autonomia é de outra natureza. Implica a rejeição de um determinismo, que transfere a origem da singularidade para o domínio do acaso. Implica conceber a existência de processos de auto-organização, que geram as suas próprias determinações.

Nesta asserção, autonomia será o primeiro elemento de compreensão do significado de “sujeito” como complexo individual. A componente egocêntrica deste complexo é englobada numa subjetividade comunitária mais alargada. 

O sujeito (aluno, ou professor) não se movimenta entre os dois polos. O sujeito é a convergência dos dois polos, em situação. O modo como o sujeito interpela a situação e as características do contexto estabelecem o ponto de convergência. O indivíduo é, portanto, uma mistura sempre provisória de autonomia e heteronomia. 

A “autonomia alimenta-se de dependência” – dizia-nos Morin: 

“Dependemos de uma educação, de uma linguagem, de uma cultura, de uma sociedade, dependemos bem entendido, de um cérebro, ele próprio produto de um programa genético e dependemos também dos nossos genes”. 

Recordo-me de nos idos de vinte ter rascunhado um livrinho sobre autonomia. Se conseguir encontrá-lo no porão das velharias, vo-lo enviarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXIV

Niterói, 29 de fevereiro de 2044

Tal como há vinte anos, 2044 é ano bissexto. As seis horas acumuladas dos últimos quatro anos “nos dão” mais um dia de vida. Aproveito esta manhã para tentar completar algumas divagações “autonómicas” dos anos setenta, por me ter apercebido de que, na Ponte, na prática, quase nada tínhamos inventado.

Nesse tempo, todos os tratados para salvar a Educação já tinham sido escritos. Só faltava salvar a Educação. E a Educação não poderia ser salva em… sala de aula. 

Começamos por centrar o processo de aprendizagem no aluno. Fomos os primeiros, passando duras penas. Depois, tomamos consciência de que o aluno não seria o centro, mas sujeito de aprendizagem. Não havia centro, mas relação e criação de vínculo, humanização do ato de aprender. no contexto de uma comunidade. Então, retomamos o projeto cuidando do professor.

A intervenção do professor não era anulada, mas substituída por um sistema de mediações, que asseguravam a reciprocidade autonómica e eram utilizados dados da dinâmica de grupos, através dos quais o professor poderia esclarecer desejos comuns expressos pelo coletivo. 

Nesse domínio, fazia sentido considerar a influência de Carl Rogers. A utilização da dinâmica de grupos não se destinava ao conhecimento do estatuto psicossociológico do aluno, para melhor o dirigir. Pelo contrário, Rogers apelava à “disponibilidade” do mestre, que propunha, mas não impunha. E aconselhava que o desenvolvimento de relações se processasse num clima que conduzisse a um conhecimento “autónomo, pessoal e autêntico”.

Uma autoconsciência estava perante uma outra autoconsciência, um indivíduo estava perante outro indivíduo – cada qual encerrado em si próprio é um mundo em si; cada um é diferente do outro e exclui-o. Ao mesmo tempo, porém, cada indivíduo é tal em relação a todos os outros indivíduos e, neste sentido, é semelhante a todos os outros: não diferente, mas idêntico.

A autonomia é um conceito com vasto espectro semântico, tradicionalmente abordado como mero objeto conceptual, abstrato, distante. Na escola é definida como a capacidade de influenciar, que se exerce em múltiplas situações, no contexto dos processos de ensino-aprendizagem. 

Não é possível afirmar que a atividade autónoma exercida nesse contexto se manifeste, de igual modo, em outros contextos sociais, mas alguns dados empíricos sugerem a manutenção de procedimentos autónomos em contextos e situações não-escolares. Mas, nas escolas da década de setenta careciam de… autonomia.

Por exemplo, a organização dos horários eram da competência de cada escola, não carecia de autorização. Mas uma delegada escolar assim falou: 

“Os professores não precisariam de autorização, mas pedem-na, mas os professores não utilizam esse direito”. 

As delegações escolares sabiam não ser necessário esse pedido de autorização, mas reforçavam essa necessidade, autorizavam o que não carecia de autorização.

Isto li num opúsculo do G.E.P. / ME:

“Este comportamento fortalece a burocracia, mas acaba por dar segurança ao professor, mesmo que essa segurança signifique dependência e incapacidade de tomar decisões. Tal atitude é bastante generalizada e revela o posicionamento do professor primário face ao poder e à autoridade”.

Na obra “Conceções e Práticas de Formação Contínua de Professores: Realidades e Perspetivas”, António Nóvoa assinalava que esse traço cultural se constituía em óbice à “afirmação social dos professores, dando aso a uma atitude defensiva mais própria de funcionários do que de profissionais autónomos”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXIII

Maricá, 28 de fevereiro de 2044

Netos queridos, espero não ser maçador, voltando a conversar sobre a praga do teoricismo. No tempo em que não havíeis nascido, o Gagné (de quem já vos falei) afirmava que a questão mais importante no processo de ensinagem era a extensão do que poderia ser previamente determinado para o indivíduo que aprendia. Estava seguro de que não se poderia esperar que a pessoa que aprendesse, enquanto estava voltada para o próprio processo de aprendizagem, fosse capaz de julgar a eficácia das diretrizes de ensino traçadas pelo professor. Enfim! Não conseguindo sair dos limites epistemológicos do paradigma da instrução, Gagné afirmava duvidar de que uma sala de aula fosse o lugar em que se pudesse realizar a tarefa de determinar condições de aprendizagem para cada estudante em particular. Dizia ser “impossível”… em “sala de aula.

À revelia de Gagné, a Ponte centrava o processo de aprendizagem o aluno, libertava o professor para exercer um controlo individual e permanente, o que seria inviável em ensino diretivo, no qual o professor interagia com todos os alunos, a todo o instante. 

Essa posição de livre observador era “perversa”. Conferia ao professor o privilégio de uma intervenção permanente e imediata, enquanto gerava no aluno uma autonomia censurada. A autonomia em pedagogia negativa poderia ser uma perversão da autonomia. 

Quando procedia à crítica de Rosseau, Schérer referia que o fulcro do processo continuava a ser, mais do que nunca, o educador, seguro de si, tanto mais omnipresente quanto não poderia colocar-se à margem, estendendo a todos os atos da vida do seu aluno o seu direito de controlo e de olhar. 

Ao nível das regras, a intervenção do educador era permanente. Em nome da sua própria proteção, a criança via-se submetida a um controlo generalizado. Porém, como também dizia Schérer, na infância, não era só o outro, mas o próprio, quem está implicado. E o olhar inquisidor lançado sobre a criança era também, e em primeiro lugar, o impossível olhar lançado sobre si. 

O professor, ainda que se reclamasse de uma posição demissionária, estava sempre presente, a administrar o poder e a regular os afetos. O adulto não queria a “criança outra”, procurava-se nela; não queria tê-la como interlocutora, julgava-a apenas moldável; esperava dela, sobretudo, a sua autoafirmação. 

Se fosse caso de se fazer, de novo, ele recomeçar-se-ia, certamente, na infância. Mas, não sendo possível, escolhia perpetuar-se nela. Ocorria um “desvio da infância” que forçava o desejo infantil a dirigir-se para simulacros que lhe eram propostos. 

A teoria psicanalítica aplicada ao campo educativo não poderia ser criadora de um novo saber. Ela era alterada pela prática, enquanto alterava a própria prática, pois suscitava o aparecimento de questões inéditas, propiciava um verdadeiro poder de interpretação. 

Numa busca de interpretações (ou reinterpretações), Mendel considerava a escola como uma “função paternal especializada” e exprimia o desejo de ver realizados consensos que questionassem a desigualdade de estatutos responsável pela manutenção do fenómeno autoridade. Para Mendel, essa autoridade revelava-se perniciosa, porque escapava, em grande parte, à consciência crítica. 

A coação institucional nunca surgia tão poderosa como num êxito quase perfeito, que consistia em fazer aparecer como legítimo o uso da força sobre a criança, que conseguisse transformar essa violência em legitimidade. 

A autoridade não seria, então, mais do que o resultado dessa transformação, tornado conceito abstrato.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXII

Rio Bonito, 27 de fevereiro de 2044

O discurso da política educacional dos idos de vinte estava eivado de valores da modernidade, dos valores dominantes dos três períodos da trajetória da modernidade: a liberdade, a igualdade e a autonomia. Mas, tal como transparecia no discurso, o conceito de modernidade sacralizava valores e direitos, mas era inviabilizado a sua operacionalização – na prática.

A essência do homem é, essencialmente, o conjunto de relações sociais. A opção pela reelaboração pessoal e profissional assumida pela equipa do projeto Fazer a Ponte constituiu-se em instância de mediação entre singulares. O professor que participava do contacto direto e permanente com outros ficava outro e, transformando-se, disso adquiria consciência. 

O requisito de respeito pela autonomia do formando e pela autonomia do círculo de estudos estava intimamente ligado ao princípio da responsabilização a que essa modalidade de formação apelava. Dada a sua organização, o círculo foi sempre um verdadeiro núcleo de democracia participativa, onde a responsabilidade era responsabilidade de todos. 

Três valores fundamentais norteavam a reelaboração cultural nos círculos: o mutualismo (cooperação, solidariedade e interajuda, obstáculos à autonomia isolacionista e competitiva), autonomia crítica e transformadora (criatividade, senso crítico e responsabilidade, que conferiam ao indivíduo a possibilidade de existir com os outros como pessoa livre e consciente) e democraticidade (pluralismo, participação social e assunção de cidadania, que definiam o homem como interveniente e confirmavam a transformação da substância e das estruturas da comunicação).

O projeto-círculo implicava autoria de um grupo, que, desde o início, detinha a pilotagem das informações, das regras de funcionamento, do domínio de situações particulares com que se pudesse deparar. A procura de sentido pela ação tornava pertinente o esforço desenvolvido em comum. E a procura de sentido para a ação outorgava ao projeto uma autonomia de novo tipo.

Escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores. Ganharia sentido, pois, considerar as escolas como espaços coletivos de criação de novas identidades, a existência de sujeitos coletivos capazes de aprofundar propostas democratizantes. Boaventura dizia não fazer sentido continuar à espera de que o projeto de modernidade se cumprisse naquilo que, até ao final de século, não se cumprira. A emergência de grupos informais confirmava uma situação cultural de “celebração afirmativa” característica da pós-modernidade. 

A questão que se colocava, tal como a equacionou Boaventura, era a de saber “se [em Educação] poderíamos pensar o pós-modernismo numa sociedade semiperiférica [referindo-se a Portugal]. Mas, sobretudo, se poderíamos pensar e agir pós-modernamente. Os constrangimentos eram inúmeros, a começar dentro de nós (as pessoas) e a acabar nas contradições do sistema. 

Talvez  fizesse sentido reorganizar grupos de professores, que questionassem a primazia do autoritarismo do Estado, que tendiam a legitimá-lo como agente de modernização. Essa crença assentava no facto de que, nos espaços intersticiais das reformas educacionais, serem detetadas fragilidades na prática legislativa e nas práticas sociais, onde o Estado não ultrapassava o domínio da intencionalidade. 

A sociedade portuguesa teria de cumprir algumas promessas da modernidade, mas à revelia da teoria da modernização. Na Ponte, com intuição e amorosidade, ajudamos a cumprir essas e outras promessas. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXI

Armação de Búzios 26 de fevereiro de 2044

Volto a Biasutti, um autor da minha predileção dos idos de setenta. Ele afirmava que o processo de aprendizagem se desenvolvia numa atmosfera que exasperava as dinâmicas emotivo-afetivas e fomentava um conformismo de superfície, mascarando o mais aceso individualismo. Seria necessário repará-la, a tempo, para a futura inserção disciplinada do indivíduo no trabalho e na sociedade. 

A espontaneidade cedia aos raciocínios abstratos. A imaginação e a fantasia apagavam-se sob o peso de exercícios impostos. Quando o professor receava perda de controlo, criava desconfiança relativamente a comportamentos infantis, que, no seu critério, não seriam aceites socialmente. 

A realidade da criança era substituída pela realidade do adulto, que nela se projetava. Até mesmo quando a escola se reivindicava de uma organização de trabalho centrada no aluno, essa situação se verificava, ou mesmo se agravava. Mas, outras correntes eram desenvolvidas, paralelamente às divagações teoricistas. 

A presunção da interferência do educador era aquilo que distinguia Neill das experiências libertárias de Hamburgo. Essa interferência apoiava-se na compreensão analítica da existência de recalcamentos e de culpabilizações na criança. O educador-analista interferia com a sua própria personalidade numa funçäo “paternante”. 

No pressuposto de que haveria aquisiçäo de saber sem medo, a “Liberdade sem Medo” já näo era a liberdade ingénua da Educaçäo Nova. O desejo da criança era resultante de múltiplas influências e Neill procurava desmitificá-las, numa fase embrionária da introduçäo da psicanálise na educaçäo.

A partir das propostas de Rogers, Pagès, Peretti e Hameline (a obra deste autor que mais me marcou era de 1971), ensaiei a passagem da näo-directividade à autogestäo pedagógica, outorgando-me um papel de facilitador da elucidaçäo de motivos e de decisöes conducentes a uma efetiva aprendizagem.

Também Vasquez e Oury estavam conscientes dos perigos de uma psicanálise mal compreendida. Recusavam a análise dos atores educativos, uma formaçäo terapêutica dos professores, e a psicanálise da própria escola. Utilizavam noçöes psicanalíticas, para procurar esclarecer e explicar o que se passava nos grupos. A psicoterapia institucional punha em evidência as “trocas” entre crianças e adultos, que facilitavam a compreensäo e a modificaçäo dos comportamentos. 

Hameline e, mais tarde, Snyders denunciaram armadilhas da näo-directividade e lhe  acrescentaram uma crítica do papel do professor, numa perspectiva psicanalítica. Quarenta anos mais tarde, o Rui voltaria ao assunto, para nada dizer. Como era apanágio do teoricismo nada acrescentar de conhecimento ao conhecimento existente, seria provável que, na década de trinta (após mais quarenta anos) outro teoricista voltasse ao assunto. E se confirmou a previsão. Enfim!

O teoricismo se apropriara do debate sobre Educação. Sazonalmente, o teoricismo reciclava velhos conceitos. Há cerca de vinte anos, comecei a escutar a palavra “aprendizado”, um termo usado para designar a aprendizagem de conteúdos supostamente aprendidos a partir da palração de uma dador de aula, algo que somente existia na cabecinha de teoricistas palestrantes. 

A indústria dos congressos prosperava. A mercantilização da escola pública, alastrava, exponencialmente. O teoricismo e a mercantilização se associaram, inventando novos termos para práticas fósseis. 

Era tal a dimensão da pouca vergonha, que eu cheguei a ter vergonha de ser professor. 

 

Por: José Pacheco

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