Montemor-o-Novo, 13 de julho de 2042
Calor sempre houvera e dias muito quentes, também. Mas, tudo levava a crer que a temperatura vinha aumentado de grau, ano após ano, embora houvesse quem negasse as evidências de alterações climáticas. E ainda mais quem dissesse que isso nada teria a ver com… Educação.
Num Verão dos mais quentes de que havia memória, fui até a um foro de seareiros, a um lugar onde parece que a planície se estende e prolonga, e de onde se leva saudades da beleza de um vale que se estende até Montemor. Aí, reencontrei o amigo Alfredo e conheci o Bernardo e a Raquel. Abalámos para a casa da Cristina e do Carlos, para preparar a “escola” do Benjamim e de todos os filhos dessa ínclita geração.
A Cléo realçou a excelente coordenação desse encontro. O Bernardo a regera com mestria e… sociocracia. Septuagenário, finalmente, eu assistia a práticas sonhadas nos setenta do século passado. E via agregar-se a esse excelso grupo de mães e pais uma… professora. A Cristina foi acolhida fraternalmente, depois de passar anos de escola em escola, numa via-sacra profissional que desembocara na monitorização de desculpabilizações curriculares chamadas AEC.
Parecia terem chegado os dias do fim do cerco. Pais e professores rompiam as amarras que os prendiam a uma escola sem sentido. Não seria capaz de vos descrever o que sentia nesses encontros, a não ser através de metáforas. Por essa altura e mais uma vez, Portugal ardia. Florestas e casas eram devoradas por chamas feitas de incúria. Poderia recorrer a metáforas como a do “corta-fogo”, mas voltarei às cartas que escrevi para vós, netos queridos, descrevendo mães, pais e professores como… pelicanos.
“Nesta carta vos darei notícias do fim do cerco, notícias calmas. Não as de uma esperada agonia, pois o canto de milhares de pássaros atravessou o cerco e se fez ouvir.
Ainda que algumas aves do desperdício esboçassem derradeiros intentos predadores, as gaivotas recuperavam ânimo na contemplação do pôr-do-sol, sempre diferente, belo e gratuito, cada noite anunciando dias mais claros e céus mais azuis. Nada logravam as vozes de aves agoirentas contra a limpidez do canto de solidárias aves. Malévolas investidas de aferrolhar crianças em salas de aula eram repelidas pela tranquilizadora quietude dos pelicanos.
Meditarás, querida Alice, sobre o facto de este teu avô atribuir humanos nomes a ornitológicos seres. É porque não me sobra engenho para reinventar a adulterada linguagem dos homens (um pássaro perfeito, que para sempre se perdeu nos desertos de África, escreveu que a linguagem dos homens passou a ser fonte de mal-entendidos). Nem conseguiria lograr alcançar a compreensão de ocultos saberes, para que pudesse atribuir o exato nome à exata essência.
A heráldica representa o pelicano de pé, asas abertas, abrindo o peito com o bico, dele escorrendo gotas de sangue com que sustentam os filhos. É verdade que algumas espécies chegam mesmo a deixar-se devorar pelas suas crias. Morrem para dar vida. O pelicano punha em risco a sua vida, se preciso fosse, para que os filhos de todos os pássaros não ficassem órfãos de ternura.
Quanta bondade cabia nas asas de um pelicano! Absorvido pelo cuidar dos outros, cegamente, confiava que a bondade habitava todas as almas. . Observava as aves do céu, que não saqueavam, nem ajuntavam alimento em celeiros. Não intuía fraquezas, dissimulação, ou maldade nos gestos de outros pássaros
O pelicano não era um usurpador de ninhos, nem abdicava da sua estranha fé. Uma fé que lhe dizia não existir amor verdadeiro sem desprendimento e confiança.
Por: José Pacheco