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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXIII)

Algoz, 22 de junho de 2042

Netos queridos,

Quando a eternidade se aproxima, enquanto o discernimento não se esvai por completo e a calma se harmoniza com a urgência, não encontro modo mais fácil de conversar convosco do que através destas cartinhas, que talvez venham a ser lidas por outros netos e por educadores sensíveis. 

Como vos disse em outra missiva, nos idos de vinte, os educadores ainda não tinham despertado para o rico patrimônio legado pelos mestres de antanho. E eu dirigia apelos ao educador que existia em cada um de nós, que fizéssemos das obras dos mortos bom proveito, para delas extrairmos elementos úteis para os projetos dos vivos.

Naquele tempo, eu adotara uma escrita em tom coloquial, acessível, a que juntava a sugestão de abordagens ditas científicas, que as universidades poderiam (e deveriam) produzir. Nas entrelinhas, talvez o leitor encontrasse contribuições para repensar a escola e a concebesse como lugar e tempo que, efetivamente, educassem. Á míngua de melhor designação, poderia dar a essa nova construção social o nome de comunidade de aprendizagem.

Pôs Saramago estas palavras no seu “Ensaio Sobre a Cegueira”:

“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”.

Estavam cegos os educadores. Cegos de uma estranha cegueira. E nem refiro á dos olhos que não liam o patrimônio científico legado por eminentes pedagogos. Os educadores não viam sequer os novos e claros caminhos que a lei apontava. 

Por exemplo, a Lei de Bases. No seu artigo quadragésimo oitavo, estava escrito:

O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes”.

Lestes bem. Os professores deveriam viver na comunidade onde residiam. A Ponte bem o tentou. Dispondo da possibilidade de escolher os seus professores, lhes conferia estabilidade e a possibilidade de aprofundar o conhecimento do seu “círculo de vizinhança” (embora não lhe dessem essa designação, no início do século), da sua aldeia, do seu povoado. E de encontrar modos de relacionamento com “círculos de proximidade” (só viriam a dar-lhe esse nome, nos idos de vinte), para se organizarem em comunidades.

O articulado da lei permitia ir além dessa possibilidade, quando “propunha” que, em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino a administração e gestão se orientassem por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo.

Todos! Lestes bem. Para tal, criamos assembleias, comissões de ajuda, acordos de convivência, inúmeros dispositivos de relação horizontal. E cuidamos de elaborar um contrato de autonomia, do qual retiramos resquícios de liderança tóxica.

O artigo da Lei de Bases a que tenho referido dizia ainda que, na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. Ora, aquilo que acontecia era em tudo oposto ao cumprimento deste e de outros artigos da mesma lei. Muitos administradores comportavam-se como “ditadorzinhos de meia-tigela” e havia diretores que se comportavam como “reizinhos donos do pedaço”. Remédio santo: extinguimos órgãos unipessoais e o dever de obediência hierárquica.

Porém, o ministério traiu acordos. Disso vos falarei.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXII)

Lavre, 20 de junho de 2042

Nas minhas andanças pelos brasis da educação, numa simples garimpagem de sebo de rua, deparei com um espólio científico extraordinário. Na Psicologia, a escolanovista Helena Antipoff. Na Sociologia, o corajoso Florestan Fernandes. Na Psiquiatria, a genial Nise da Silveira. Na Antropologia, o incontornável Darcy Ribeiro. Na Pedagogia, o profético Lauro de Oliveira Lima, Herculano Pires e outros ostracizados mestres, cujas memórias foram assassinadas e cujas obras os professores não leram, ou mesmo os nomes ignoravam. 

Seria provável que alguns fossem identificados. Porém, os seus contributos ainda não haviam fertilizado as práticas… Freire incluído. As suas propostas tinham diferentes origens e filiações: no Positivismo, na Escola Nova, na Educação Libertária, na Antroposofia, na Teoria Crítica. 

Definiam-se como: montessorianos, steinerianos, espíritas, anarquistas, neomarxistas, ou não enquadrados em qualquer dessas tribos. Tinham em comum a crítica da velha escola e o apontar da necessidade de a substituir por comunidades de aprendizagem, expressão que surge pela primeira vez na obra de Lauro, mas que, no pout pourri de tendências e práticas, se manifestou no Brasil desde o início do vigésimo século.

Para procurar entender por que falharam as nobres tentativas de mudança tentadas por Freire e tantos outros grandes mestres, deparei-me com a existência de um denominador comum. Nas obras desses mestres, cada qual a seu modo, referindo, ou não, a palavra comunidade, apontaram para a necessidade de… aprender em comunidade.

Me reconheci como etnocêntrico europeu e disso me penitenciei, quando adentrei a produção científica brasileira. As referências bibliográficas eram, quase todas, importadas. Mais ainda: apercebi-me de um absoluto desconhecimento da produção teórica do Lauro e de outros brasileiros por parte dos autores dos estudos. 

A minha amiga Maria Amélia da Casa Redonda de Carapicuíba presenteou-me com um esboço elaborado por Lauro de Oliveira Lima, no início da década de 1960. Isso mesmo: nos anos sessenta! A visão percussora do Mestre Lauro impressionava. Embora marcado pela época, o esboço antecipou, em trinta anos, os primeiros estudos conhecidos sobre comunidades de aprendizagem de origem anglo-saxônica e catalã. Só o Brasil não sabia. A comunidade científica brasileira padecia da síndrome do vira-lata. 

Aconteceu que, no meu périplo lusitano dos idos de vinte, deparei com uma escola, cujo nome inscrito no muro da portaria me encheu de alegria.  Aproximei-me do portão, para realizar uma rápida pesquisa. Perguntei a cerca de uns trinta alunos quem fora Agostinho da Silva. Nem um me soube dizer. Desisti quando, apontando para o muro da escola, um jovem me perguntou:

“Quem é esse Agostinho?”

Nos idos de noventa, participei na criação de um centro de formação de professores. Propus que lhe fosse dado o nome de Sebastião da Gama e, em coro, escutei:

“É nosso colega?”. 

Eu fiquei sem fala. Era confrangedora a tomada de consciência de que os meus colegas de profissão não conhecessem sequer o nome de um dos maiores educadores portugueses do século XX, que falecera, há muito tempo. Também desconheciam terem existido vultos como Irene Lisboa, Bento de Jesus Caraça, Adolfo Lima, Faria de Vasconcelos, António Sérgio…

Quis registar em livro a memória desses e de outros eminentes educadores. Que me perdoassem os excelentes pedagogos vivos, como o amigo Nóvoa, se optei por nomear aqueles que já não eram deste mundo, nas obras que publiquei… fora de Portugal.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXI)

Marco de Canaveses, 19 de junho de 2042

Estávamos em julho de 2021. Um núcleo de projeto reuniu com a direção do seu agrupamento de escolas. Perante uma oposição tenaz a tudo que pudesse afetar o status quo, os educadores questionaram a costumeira fuga ao diálogo, perguntando: 

“Qual é a lei que nos obriga a manter o Paradigma da Instrução?” 

Aquilo que se propunham mudar já fora mudado em outras escolas, era claro haver precedente jurídico.  E claríssimo era, também, o parágrafo terceiro do artigo 48º da Lei de Bases. Acaso a Direção se opusesse à mudança, deveria fundamentar a recusa em critérios de natureza científica. 

Reparai neste excerto de uma mensagem a que tive acesso, enviada pelo Núcleo de Projeto aos órgãos de Direção e Gestão do Agrupamento de Escolas: 

“A existência de um currículo único é ineficaz e segregadora, colocando barreiras ao aprendiz. Os alunos não aprendem todos do mesmo modo, não se expressam da mesma forma e não estão motivados para aprendizagem da mesma maneira”.

O Desenho Universal para a Aprendizagem “preconiza o desenho de um currículo de forma a incluir objetivos, métodos, materiais e avaliações que apoiem os alunos, através da redução de barreiras e, simultaneamente, providenciando um apoio efetivo à aprendizagem” 

A aprendizagem acontece em espaços da comunidade envolvente (edifício-escola, bibliotecas, teatros, praças, jardins etc.). Elaborar-se-ão projetos e roteiros de pesquisa, com um propósito inicial igual para todos os grupos (sugestão: reconhecimento do bairro, identificação de espaços e pessoas com potencial educativo, parcerias locais para oficinas e laboratórios). 

Não há um único método de ensino que possa satisfazer as necessidades de todos os alunos. Em vez disso, múltiplos e flexíveis “caminhos” são necessários. Trata-se de uma abordagem que procura que todos os alunos tenham as mesmas oportunidades para aprender, concedendo utilização de
ambientes educativos que ajudam os alunos a desenvolver conhecimentos,
competências e entusiasmo na aprendizagem (Rose & Meyer, 2002, citado por Universal Design for Learning (UDL): contributos para uma escola de todos, in Indagatio Didática, vol.5(4), dezembro 2013, p. 126).

Pormenor delicioso esse de mostrar ao senhor diretor… a “bibliografia”. Este reagiu, transferindo a responsabilidade da decisão para o Conselho Pedagógico. Laconicamente, esse conselho [que de pedagógico nada tinha] registara em ata e para que constasse: 

“Turma piloto com a filosofia da escola da ponte. Este ano letivo não irá ser implementado”. 

Os educadores, que constituíam o Núcleo de Projeto sabiam como fundamentar a sua proposta. Como se veria a constatar, nem o Diretor, nem os membros do Conselho Pedagógico sabiam fundamentar a sua recusa. Conscientes dos seus direitos, os educadores preponentes esclareceram:

“Não se trata de um projeto, mas sim do cumprimento do Projeto Educativo [que não estava a ser cumprido]. Reiteramos o pedido de envio da fundamentação legal e científica da recusa da implementação da turma-piloto”.

Resposta não houve, porque aquele era um diálogo de surdos. O “sistema” permanecia tão hierárquico e autoritário como quando nele eu ingressara, cinquenta anos antes deste episódio. 

Sem porque, nem por que não, o assunto estava arrumado pela tradicional atitude do “eu quero, posso e mando”:

“Como Diretor do Agrupamento venho por este meio informar que o projeto não vai acontecer no próximo ano letivo. 

Sem mais assunto, (segue-se a assinatura)”.

Era assim, naquele tempo. Mas, em breve, iria deixar de ser.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMX)

Mello, 18 de junho de 2042

O mês de junho de há vinte anos foi pródigo em encontros de que resultaram projetos perenes. Eu sempre fora bem recebido, bem tratado onde quer a minha andarilhagem me levasse, mas a hospitalidade de Celorico excedeu expetativas.

Na véspera, a Ana mostrava-se preocupada com o meu cansaço e a Alice da Residencial excedia-se em amabilidade. A mãe da Ana, temendo que eu não me alimentasse convenientemente, presenteou-me com farinheira, chouriça na frigideira, queijo, pão e vinho em quantidade tal que dava para alimentar uma irmandade.

“Deixei na mesa em frente ao quarto, para não incomodar. Se não lhe apetecer comer, hoje, leva para amanhã”.

Saí de Celorico com vontade de lá voltar. Não somente pela generosidade das suas gentes, como pela convicção de que o lugar-berço de Vergílio Ferreira iria assistir ao nascimento de uma comunidade. 

“Sabe que veio mudar paradigmas, que já nos deixou um grande legado e que ficará sempre nos corações daqueles por quem passou, tenho a certeza. Se quiser recolher-se num cantinho esquecido de Portugal, no meio das videiras e oliveiras, onde passa uma ribeira e onde reinará o amor, a quinta pedagógica Nova Terra o acolherá.

Será um lugar onde crianças e suas famílias aprenderão o caminho do sentir, da sua ligação ao seu ser divino humano, para que sejam a sua melhor versão na Terra e cumpram as suas missões em amor. 

O novo humano está aí, professor. A história vai mudar. Estamos novamente todos juntos. Que se cumpra a missão, desta vez. 

Na manhã seguinte, nova mensagem recebi de Celorico, em resposta à minha congratulação por tão gentil acolhimento e ao assegurar que, também, seria bem recebido pela Zirinha:

“Bom dia, professor! Quando damos de coração, recebemos muito em troca e fico feliz por encontrar sempre alguém que o acolha. Já vai a caminho de Viseu?”

Indo eu com o Bruno já a caminho de Viseu, não imaginava quão difícil seria viajar naquele dia. 

O placar de informação da rodoviária estava avariado, não informava o lugar onde estacionaria o autocarro que me levaria para o norte, o funcionário das “informações” fora tomar café e o Wi-Fi não funcionava. Por milagre, consegui chegar ao meu destino. 

No dia seguinte, fui participar na comemoração dos cinquenta anos da passagem pela Escola do Magistério Primário. Parecia ter sido no dia anterior, mas fora há meio século que o vosso avô passara de educador-amador a professor primário. 

O périplo português de junho de 2022, revelou a existência de uma nova geração de educadores decididos a cumprir a mudança, há cinquenta anos prometida. 

Eu fazia apelo à réstea de energia vital, que me permitisse acompanhar novos modos de relação, novos processos de transformação, nos quais e a experiência biográfica pessoal se expandisse, à semelhança de décadas atrás. Fui ao fundo do baú e encontrei depoimentos tecidos nos círculos do tempo em que me fizeram professor primário:

“Hoje comecei por ser integrado num grupo de colegas que foi denominado “círculo de estudos”, formado por mais seis colegas. Teremos por tarefas discutir, propor, apresentar atividades desenvolvidas nas escolas. Como trabalho de «treino» o grupo debruçou-se sobre um texto «Práticas de Outras Avaliações» e eu tive que resumir uma grande parte desse texto. A seguir, ouvi as análises dos outros grupos e fiz uma pergunta sobre as várias hipóteses apresentadas para a elaboração de um Projeto Educativo. Tomei notas.”

A minha geração não conseguira ir além de utopias sonhadas. Havia naufragado em distopias. Fora uma geração perdida. 

Mas, valera a pena ter começado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMIX)

Macieira da Lixa, 17 de junho de 2042

Há muitos anos, o Manuel António Pina escreveu um poema com o título: “Ainda não é o Fim, nem o Princípio do Mundo. Calma! É Apenas um Pouco Tarde”. Ei-lo:

“A poesia vai acabar, os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis.

Por exemplo, observadores de pássaros (enquanto os pássaros não acabarem).

Esta certeza tive-a hoje ao entrar numa repartição pública.

Um senhor míope atendia devagar ao balcão; eu perguntei: 

«Que fez algum poeta por este senhor?»

E a pergunta afligiu-me tanto por dentro e por fora da cabeça que tive que voltar a ler toda a poesia desde o princípio do mundo.

Uma pergunta numa cabeça. Como uma coroa de espinhos: estão todos a ver onde o autor quer chegar?”

Nos idos de vinte, eu acreditava que ainda fosse a tempo. Algo estava para acontecer. Já estava a acontecer. Não era o fim do mundo, era apenas o princípio – o início de novas práticas sociais.

Em 2011, numa entrevista, pronunciando-se sobre situação de crise que o país vivia, afirmou o seguinte: ” Diz-se que os povos felizes não têm história. Não é fácil (nem bonito) dizê-lo, mas às vezes, a infelicidade de um povo é a felicidade dessa espécie de historiadores do presente que os cronistas (sobretudo aqueles que, como eu, praticam sobretudo a crónica como género jornalístico e não literário) são”.

Me confesso “herdeiro” desse mestre da escrita, me reconheço um amador muito limitado na expressividade. Mas, apesar dos meus noventa e um anos, insisto em invocar o passado em breves cartinhas, para que reste memória do que foi aquele tempo de mudar e de nos mudarmos. 

Nesse tempo, na Rússia, professores ensinavam meninos russos a odiar meninos ucranianos. Nos Estados Unidos, mocinhas animadoras de torcida vibravam com a luta dos machos do futebol americano. A herança lancasteriana sobrevivia a contradições. As escolas continuavam a fabricar robôs. Os seus alunos já eram robôs. E não sabiam.

Neste ano da graça de 2042, talvez seja para vós difícil de acreditar que, naquele tempo, ainda houvesse conflitos armados, tribunais, prisões, pena de morte. Que, na Europa das velhas democracias, a guerra comprometesse o futuro, e que as escolas fossem surdos campos de batalha. Para acordar memórias, vos deixo com um recorte de jornal colhido no fundo do meu baú das velharias.

“D. fugiu da guerra na Ucrânia à procura de paz. Um mês depois, fugiu de Portugal por abusos na casa onde foi acolhida. 

D. vivia há poucos meses no centro do país numa casa alugada por um português que conheceu na internet. A chegada da mãe e do filho de D. que fugiram à guerra na Ucrânia não foi do agrado do português. 

Costumavam sentar-se os três no adro da igreja. D., 44 anos, chegara àquela aldeia do centro de Portugal uns dias antes de a guerra na Ucrânia começar; quando se deu a invasão russa, a mãe de 64 anos e o filho de 16 juntaram-se lhe naquele lugar. Foram todos acolhidos por um homem português que D. tinha conhecido na internet. 

É nesse mesmo largo que Américo, apoiado pela bengala e acompanhado pelo cão “Patinhas”, conta como mãe e filha gostavam de dar passeios todos os dias e de como o jovem, sempre que tinha dificuldade em expressar-se, tirava “um livrinho do bolso com as palavras em português e ucraniano.” Lá se entendiam. “Foram embora há coisa de duas semanas ou um mês”, conta o senhor de 81 anos, que vivia na vivenda ao lado daquela onde D. e a família moraram.

Não “foram” apenas “embora”: a família saiu em fuga. D. fez apenas um pedido: sair do país e esquecer tudo”.

Esta talvez fosse mais uma prova de que a guerra não acontecia, lá longe, na Ucrânia. Ela estava entre nós. Em nós.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMVII)

Vale Travesso, 15 de junho de 2042

No início dos anos vinte, a Internet era pródiga em anúncios de “comunidades de aprendizagem”, iniciativas que de comunidade só tinham o nome. E de aprendizagem… cadê? Paralelamente, começou a tomar forma uma nova construção social de aprendizagem e de educação, sendo frequente escutar a pergunta:

“Afinal, o que é uma comunidade de aprendizagem?”

“Não sei. Ainda não vi uma sequer” – respondia. Como explicar o outro lado da Lua? O que poderia era, tão só, tentar descrever um constructo teórico. E dar início a transformações essenciais, em que às propostas do paradigma da aprendizagem se adicionasse o que de útil pudesse manter-se do modelo instrucionista, juntando-lhe práticas radicadas no paradigma da comunicação.

Em teoria, comunidades eram pessoas. Pessoas que partilhavam valores e uma peculiar visão de mundo. Pessoas que habitavam um território físico, psicológico, social, político, virtual, espiritual… Pessoas com necessidades, desejos, sonhos, problemas comuns, que definiam princípios de ação e os desenvolviam em projetos. Pessoas que detinham saberes populares, que possuíam o domínio de tecnologias sociais adaptadas ao contexto de vida. Gente que decidia produzir conhecimento e partilhá-lo, melhorando a vida das gentes dos coletivos em que se integravam. Pessoas que optavam por bem-viver.

No tempo em que começavam a despontar protótipos de comunidade, o vosso avô partilhava textinhos de subliminar propagação de teoria, sem recurso ao jargão científico. Aqui vos deixo um exemplo dessa arteira prática, nas palavras de Alberto Acosta.

“Um sistema com desigualdades gritantes sobrevive há séculos, com o apoio de milhões e a subordinação de bilhões. Agora, nos conduz ao suicídio coletivo. As promessas do progresso, feitas há mais de quinhentos anos, e as do desenvolvimento, que ganharam o mundo a partir da década de 1950, não se cumpriram. E não se cumprirão.” 

O equatoriano Acosta resgatava o conceito de sumak kawsay, de origem kíchwa, que nos propunha uma ruptura civilizatória decalque da utopia do Bem Viver. Em tempos distópicos, urgia construir sociedades verdadeiramente solidárias e sustentáveis.

Naquele tempo, se o Freud tudo explicava, a Wikipédia para tudo tinha resposta. Foi lá que colhi a expicação. O “sumak kawsay” era uma proposta que se fundamentava em cinco princípios: 1) sem conhecimento ou sabedoria não há vida (Tucu Yachay); 2) todos surgimos da mãe terra (Pacha Mama); 3) a vida é plena (hambi kawsay); 4) a vida é coletiva (sumak kamaña); e todos temos ideais ou sonhos (Hatun Muskuy). 

O Bem Viver, enquanto filosofia de vida, era um projeto libertador e tolerante, sem preconceitos nem dogmas, baseado em pilares como: relacionalidade, que se refere à interpretação de haver uma interconexão de todos elementos que juntos compõem um só, o “todo”; reciprocidade, entendida como uma relação recíproca e coparticipava entre os mundos superiores, inferiores e o mundo atual, e entre humanos e natureza; correspondência, que vê os elementos da realidade se corresponderem de uma maneira harmoniosa, a maneira de proporcionalidade; de complementaridade, que se baseia na ideia de que os opostos podem ser complementares, já que nada é incontornável.”

De que modo esses princípios se concretizavam no campo educacional, na escola? – inistiam em perguntar. 

No ano letivo em que surgiram os primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem, encontramos resposta para esse e outros questionamentos. Disso vos falarei em próximas cartinhas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMVI)

Montelo, 14 de junho de 2042

Foram frutuosos dias aqueles que passei na terra dos milagres. Na Cova da Iria de há cem anos, três crianças disseram ter ouvido profecias apocalípticas, numa aparição da Virgem Maria e, pelo junho de há vinte anos, já tinham sido desvendados os chamados “segredos de Fátima”. No século passado, educadores viajavam para Portugal, para ir a Fátima e à Ponte. Mas, quando os visitantes diziam ser aquela escola um verdadeiro milagre, ignoravam o “segredo”, que lhe assegurara sucesso e continuidade. 

Decorridas algumas décadas, aqueles que, com o mesmo propósito, rumavam a lusas terras, percebiam que, enquanto a cidade de Fátima prosperava, o “milagre” da Ponte estiolava. A escola havia sido alvo de agressões sem conta. Por ter sido a primeira das escolas a centrar o processo de aprendizagem no aluno, sofreu o desgaste dos maldizentes, que falavam daquilo que a Ponte não tinha – aula, turma, diretor… – mas não diziam o que ela tinha, não conseguiam desvendar o “segredo”.

“Segredo” não havia. Apenas tinha acontecido uma “mudança genética” no sistema de ensino, que a todos tinha propiciado o direito à educação. E, na Internet, assim se comentava as maldizentes críticas dessa inovação:

“Como se diz prosaicamente, mandar “bocas” é cultivado por algumas pessoas sem pudor. O que sempre me preocupa mais é o facto de serem pessoas com escolaridade avançada que deviam saber corresponder às exigências do saber.

É verdade. A ideologia cega-os. Temos de os ajudar. Porque é importante gerar compomissos…

Se colocarmos a questão no plano dos chamados “opinion makers” (certo jornalismo e a generalidade dos “comentadores”), eu diria que o panorama é mesmo desgraçado e desanimador! Não sei (e não quero afirmar nada para não “morrer o peixe pela boca”!), não sei se o grande desafio à Escola, hoje, não será lutar contra um enorme muro de opacidade(s) feito de “realidades alternativas” incessantemente fabricadas e militantemente difundidas. Não sei…

Se a Escola se concentrar na aprendizagem dos alunos e promover o pensamento crítico, dará um contributo importante para que as pessoas estejam melhor preparadas para analisar o que ouvem e o que veem. Por isso, Aprender a Pensar me parece tão importante. 

E às vezes “aprende-se” tarde a descobrir os despudorados mentirosos sem nenhuma ética e fica-se “boquiaberta”. Infelizmente, o número dos que os vão seguindo não é pequeno e causa muito desgaste a quem estuda

Pensava, por estes dias, sobre o facto de ser impossível juntar, numa mesma cabeça, o estudo consistente sobre as matérias da Educação (que é devido a todos os professores, mesmo aqueles que não optam por uma carreira de investigação) e a recusa em olhar para o caminho percorrido com esperança. Mas, a caravana passa e vai deixando aberto um trilho para que o sigam aqueles que acreditam. 

As pessoas podem e devem ter as suas opiniões, resultantes das suas experiências, mas ignorar o conhecimento produzido leva invariavelmente a leituras enviesadas das realidades.”

Por essa altura e por ter andado a deambular entre Portugal e Brasil, eu misturava duas versões da língua mãe, num brasilês reinventado. E li esta anotação, na margem do que estava escrito em papéis achados no baú das velharias: 

“Deliciosa “troca de figurinha”. Nada mais do que isso!” 

Fundada na lei e fundamentada nas ciências da educação, a Ponte resistia. Mas, nesses conturbados tempos, o que ainda prevalecia nos internéticos debates era o senso comum pedagógico, o achismo, a má língua. Segredo não havia, apenas árduo labor e profunda reflexão.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMV)

Ourém, 13 de junho de 2042

No fundo mais fundo do baú das velharias deparei com um desabafo do Enguita:

“É verdade que o ensino público se encontra hoje sob fogo cruzado. Mas, o seu principal inimigo não está lá fora, mas dentro”.

E o amigo Fernando corroborava a afirmação do sociólogo:

“O ambiente de reforma permanente das duas últimas décadas não tem sido favorável à reflexão, à experimentação e à descoberta de alternativas à forma escolar tradicional, pois a azáfama de mudança e o “alvoroço projectocrático” em que as escolas e os professores têm estado mergulhados têm gerado uma mentalidade expectante e uma lógica de sobrevivência que se traduz numa maior preocupação com a encenação, o aparato e o faz-de-conta do que com os processos educativos concretos. 

Tal clima não tem deixado tempo para a reflexão sobre questões que possam fazer a própria agenda educativa das escolas e dos atores locais. Estes andam cada vez mais atarefados, desinteressando-se, ou vendo-se impossibilitados, muitas vezes, de exercerem uma atitude reflexiva e crítica sobre os constrangimentos e as oportunidades da sua ação profissional. 

Os temas do momento das reformas educativas tendem, assim, a ser encarados numa lógica aditiva – mais trabalho, mais disciplinas, mais reuniões, mais papéis – e de exterioridade relativamente aos processos de mudança – a mudança é o que eles (o Ministério e as estruturas da administração) determinam – e não como uma possibilidade de transformação do próprio trabalho quotidiano. 

Não deixando tempo aos professores, aos alunos, aos pais e a outros atores locais para a reflexão sobre o que realmente é necessário mudar nas escolas, o ambiente de reforma permanente tem sido, assim, mais favorável à emergência de um pensamento fatalista e resignado do que à ação autónoma e reflexiva.” 

À margem dessa encoberta crise, as redes sociais reproduziam alguns bate-papos, que valia a pena seguir. Foi o caso de uma animada troca de mensagens entre o amigo Domingos e alguns comentadores, que assim se iniciou:

“No país dito dos “brandos costumes” há quem seja capaz de mentir despudoradamente para, supostamente, “sustentar” os seus pontos de vista. E há também quem seja capaz de fazer afirmações acerca das realidades sociais sem apresentar qualquer fonte credível que sustente tais afirmações.

Enfim, como alguém disse um dia, parece que quanto menos se estuda e quanto menos se investiga, mais “verdades” se parecem afirmar. Por isso, aprender a pensar, desenvolver o espírito crítico e as competências mais complexas de pensamento nunca foi tão premente e deve ser um desígnio fundamental dos sistemas educativos e de todos aqueles que neles trabalham.

Se assim não for, os cidadãos mais incautos podem correr o risco de “ir atrás” das “ideias” de certos seres que, apesar de nunca terem estudado seriamente os assuntos acerca dos quais se pronunciam e/ou publicado o que quer que seja que tenha sido escrutinado por entidades idóneas, se desdobram em retratar a realidade social tal como lhes interessa. 

Sem apresentarem quaisquer fundamentos e/ou quaisquer evidências empíricas credíveis. Uns “sem-vergonha”, dirão uns. Uns “mentirosos”, dirão outros. Eu diria que, para tais criaturas, a ética nunca existiu, não existe e nunca existirá.”

Se a formação intelectual era paupérrima, a formação moral andava pelas ruas da amargura. O Domingos lamentava haver quem retratasse a realidade social como lhes interessava retratar. Mas, talvez não percebesse de que muitos dos que desse modo agiam eram seus colegas… das ciências da educação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMIV)

Cova da Iria, 12 de junho de 2042

Serenamente, como convém quando não se vive a pressa de “verdes anos”, nem as “certezas da idade madura”, cá vou rabiscando memórias dos idos de vinte. Os velhos detêm uma prodigiosa memória de longo prazo, enquanto se irritam com o esquecimento do que iriam fazer quando disseram “vou ali e venho já”. Então, antes que a de longo prazo possa esvair-se, cumpro este matinal ritual, crente de que dele possais tirar algum proveito.

Faz, agora, vinte anos, que rumei à terra dos milagres. Passei por Fátima e Cova da Iria, até chegar a Montelo, à casa da hospitaleira Ana e a Vale de Cavalos, onde uma família brasileira se refugiara de paulistanas violências e onde crianças de tenra idade aprendiam a arte equestre. 

Depois, fui até à Escola da Floresta, manifestar solidariedade e aprender com a Cátia como contrariar a pandemia infantil da “privação de natureza”, e modos de evitar catástrofes como os incêndios florestais. Decorria o mês de junho e se anunciava uma vaga de calor como nunca a Península Ibérica havia sentido. 

A Terra já ardia na vizinha Espanha. Na Pampilhosa e no interior de Portugal, retornava o receio da devastação pelo fogo, o trauma de centenas de vidas perdidas, mercê da incúria de governantes e da falência da educação que ainda se fazia. E, como se não fossem suficientes as catástrofes naturais, já se falava na proximidade de novas pragas.

“Todos nós, enquanto pais, queremos que as nossas crianças cresçam felizes e em liberdade. E este projeto dá-nos isso, porque permite que as crianças sigam os interesses delas” – comentava a Daniela, mãe e funcionária da escola da Floresta. E a Cátia dava conta do ressurgir daquela comunidade:

“Os vizinhos têm contribuído muito, têm ajudado, já doaram brinquedos, trazem fruta, acho que é uma grande alegria terem a escola reativada na aldeia”.

A Escola na Floresta procurava desenvolver competências para a vida, mediante uma aproximação equilibrada à natureza e ao mundo natural. E a Cátia já pensava em alargar o projeto ao 1º ciclo, mediante a aprovação deste modelo. A associação ouriense integrava o Movimento Aprendizagem ao Ar Livre, que elaborara um manifesto para entregar ao ministério, de modo a que houvesse reconhecimento oficial desse modelo educativo, através da revisão da legislação. 

Esse movimento já tinha dimensão nacional, englobava escolas similares de todo o país e contava com o apoio de especialistas em desenvolvimento infantil. Juntar-se-ia a outras iniciativas, que viriam a implantar-se no ano seguinte. 

A Ana empenhava-se no “casamentar” vontades, que dariam forma ao projeto e assim dizia:

“Espero que este modelo se expanda rapidamente, porque o ensino está podre. A escola não cresce com as crianças, não se adapta. Mantém–se exatamente como há cem anos. Não entendo! Vejo a minha filha, que frequentou a pré particular com este modelo de ensino e foi muito feliz, entrar para o 1° ciclo público e não ser a mesma criança”.

No seu primeiro ano letivo, a Associação Escola na Floresta se estabeleceu na antiga escola primária do Vale Travesso, cedida pelo município de Ourém, e realizava a sua atividade nos campos em redor. O pátio da antiga primária se encheu de tendas e brinquedos. A aldeia da freguesia de Nossa Senhora da Piedade voltava a ouvir os risos da infância. 

Nas aldeias do interior beirão, por onde eu tinha passado, meses antes, já não havia crianças. Alguns anos atrás, o ministério havia mandado encerrar escolas com menos de vinte alunos. E essa medida de política educacional contribuiu para destruir comunidades inteiras. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMIII)

Fátima, 11 de junho de 2042

Perguntastes por que voltei a falar tão insistentemente da Ponte. Porque encontrei no fundo do baú das velharias despojos de lutas inglórias e uns papéis de leitura reconfortante. Também, porque nunca será demais falar dessa escola, mesmo neste ano da graça de 2042, já tão distante de situações críticas, que marcaram a vida do projeto e das gentes que o gestaram. 

Nos papéis de leitura reconfortante quem fala é gente que, não participando do projeto, sobre ele se pronunciaram, pois o conheceram e estudaram. É o caso da Teresa, que isto escreveu, no início deste século (peço que perdoeis a transcrição das referências ao vosso avô, mas optei por não as apagar do texto):

“Quando as mais avançadas ideias pedagógicas apontam para a pesquisa como motor do conhecimento e do aprender a aprender, para a premência de gestão dos currículos de acordo com pedagogias diferenciadas que, partindo dos saberes dos alunos, os levem mais longe no conhecimento, para a organização de grupos heterogéneos (idade, origem social, sexo, cultura ou etnia, substrato económico) como forma de garantir que aprendizagens e trocas de saberes se façam num contexto de cidadania; quando os pares ou companheiros mais experimentados são também professores, não esquecendo o suporte de educadores atentos e exigentes; quando o envolvimento de famílias e comunidades no projeto educativo cria parcerias de excelência e de interpelação mútua…uso afirmar que alguns já o fazem.  

A Escola da Ponte tem vindo a pôr em prática, há largos anos, de forma visionária e profética, aquilo que a investigação, as ciências da educação, mas também a nossa intuição e senso comum, dizem que deve ser a escola: a Escola da Ponte é uma escola pública que faz sentido e é criadora de sentido nas vidas de pequenos e jovens cidadãos (inseridos numa comunidade que educa e se educa) que continuarão, depois de nós, o projeto de uma sociedade mais solidária, mais inteligente, mais ética… mais feliz. 

O dia mantinha-se cinzento e nevoento, mas não a expressão das nossas faces ao abandonar a Escola da Ponte para continuarmos a visita a outras escolas. Mal pude conversar com o meu amigo José Pacheco, anfitrião ocupado e, com razão, orgulhoso. Não esqueço, porém, que se manteve num silêncio atento durante a Assembleia. 

Tocou-me a sua presença discreta, recusando qualquer protagonismo, mas claramente saboreando a qualidade das interpelações que meninos e pais faziam ao Senhor Presidente. 

Continuando uma relação de profundo respeito e admiração, que se tem alimentado com a troca de livros — foi José Pacheco que me iniciou ao pensamento criativo e provocador de Rubem Alves — enviei-lhe o livro As Cidades Invisíveis que ele afirmara não conhecer. Mas conhecia, pensei, porque o projeto da Ponte era como «a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas»

Longe estava eu de imaginar, nesta pseudodemocracia da regulação por decreto, da burocracia asfixiante, e da tomada de decisão segundo critérios meramente economicistas, que tal projeto pudesse ser posto em causa. 

Com as crianças, pais, professores e comunidade da Escola da Ponte (à qual sei que pertenço desde esse dia de janeiro de 1998) exigimos que o Projeto não se interrompa para o podermos levar a mais crianças, mais famílias, professores, comunidades. 

Como um dia que, mesmo cinzento e nevoento, não quer desistir, o projeto da Escola da Ponte levou tempo a construir e os atores deste projeto não podem interromper-se

Assim, é urgente não sufocarmos em desesperança e escolhermos lutar e acreditar.”

 

Por: José Pacheco

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