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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXV)

Jacareí, 9 de julho de 2041

Entre julho e agosto de 2021, muitos educadores se organizaram, para a criação de turmas-piloto e entregaram aos órgãos de direção, gestão e administração educacional um conjunto de documentos, propondo a sua análise e posterior negociação.

Em muitos casos, meses se passaram, sem que qualquer resposta fosse dada. Foram ignorados sucessivos convites ao diálogo, até que um secretário ordenou que se realizasse uma reunião. 

Um funcionário administrativo apresentou pseudoargumentos a afiançou:

“É impossível criar algo assim, a meio de um ano letivo. E não há escolas onde possa funcionar, porque já não há vaga”.

Foi explicado que na nova construção social de aprendizagem não havia ano letivo, semestre, trimestre, bimestre, nem um determinado número de dias letivos, porque se aprendia nas vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano civil. Foi-lhe dito que numa comunidade de aprendizagem não existia ano letivo, ou falta de vaga. Nem seria necessário um prédio para a albergar: 

“Se houver um prédio, tanto melhor, que poderemos abrigar-nos da intempérie. Mas não é indispensável que haja um edifício a que chamam “escola”.

Lacônico, o funcionário perguntou: 

“E onde vão dar aula?” – replicou o funcionário.

Pacientemente se elucidou o zeloso funcionário de que não precisávamos de salas de aula, nem dividíamos os alunos em turmas, ou os repartíamos por anos de escolaridade. Que não havia toques e campainha, nem todos entravam no prédio da escola, ou dela saíam ao mesmo tempo. 

Tentando disfarçar tiques autoritários, o funcionário disse não entender o que estava a ouvir e lamentou-se das canseiras, que lhe consumiam as horas e lhe desgastavam os nervos. 

Foi-lhe dito que as novas práticas reduziriam a carga burocrática, origem dos seus queixumes. E ele reagiu com agressividade:

“Não é possível. Não autorizo!” 

Não havia obrigação de apresentar provas da legalidade da reivindicação. E quem teria de provar não ser possível a mudança seria quem usava as leis para tenta impedir que uma inovação acontecesse. 

“Sempre foi assim! Vêm, agora, com modas. Deixe estar como está, que está muito bem”.

O funcionário estava enganado. Nem sempre fora assim e não se tratava de uma “moda”. 

Um professor interveio e a conversa foi reatada:

“O modelo de ensino imposto às escolas nega a muitos alunos o direito à educação.

“O que querem dizer com isso?”

“Exatamente o que dissemos, que o trabalho em comunidade de aprendizagem garante esse direito. Na lei, nada obsta a que isso se concretize. O que impede que se faça uma adaptação dos normativos a uma nova forma de aprender?

Pela enésima vez se perguntou: 

O que impede?”

Sem saber o que responder, sem argumentar, em tom de ameaça, os “porquenãos” presentes na reunião determinaram: 

“É assim, porque terá de ser assim e continuará assim! Não mudaremos uma linha, nem uma vírgula dos regulamentos. E não se esqueçam de que somos seus superiores hierárquicos!” 

Um dos superiores hierárquicos deu por encerrada a reunião. E os funcionários voltaram ao seu inútil afã.

Recusando dialogar, acreditavam ter extinguido o projeto. Embora alguns professores tivessem recuado, talvez com medo de perder o emprego, educadores éticos mantiveram-se leais ao projeto, que recomeçou, mais forte do que antes, suportado na lei, fundamentado numa ciência prudente e numa digna desobediência. 

Nas cartas, que escrevi para a Alice, vos disse que “a doce paciência das almas sensíveis ajudou os pássaros doentes a não terem medo da luz diurna, a não fechar os olhos à claridade.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXIV)

São Bernardo do Campo, 8 de julho de 2041

Neste mesmo dia, mas de há vinte anos, se comemorava o centenário de uma figura ímpar, um dos mais importantes pensadores contemporâneos. Da sua origem se sabe ser filho de pais judeus sefardita emigrantes na França. Órfão de mãe, na idade de dez anos, o luto lhe moldou um caráter entre a inquietude mental e uma inquestionável esperança. Edgar Morin viveu entre a dúvida sistemática e a abertura ao indizível. Assim se assumia: 

“Senti-me sempre chamado a construir um pensamento que me permitisse reconhecer e acolher as contradições, lá, onde o pensamento dito normal não vê senão alternativas, e a descobrir as minhas verdades em pensadores que se nutrem de contradições.” 

Na década de noventa, rumei a Paris, para escutar o “autodidata” Morin. Incansável criador, eram diversificadas as suas referências: Tolstoi, Jesus, Lao Tsé, Pascal… Não surpreende, pois, que uma marcada transdisciplinaridade o conduzisse ao cerne de uma prodigiosa produção científica e à noção de “complexidade”. Morin evoca a unidade complexa. Se a necessidade de organização tende a transformar a diversidade em unidade, não anula a diversidade. Se o paradigma funcionalista sublinha a dependência do indivíduo relativamente ao grupo, numa perspectiva de conflito é preciso realçar a interdependência entre indivíduo e grupo, as interações no interior do grupo, bem como as transformações que impelem a novas formas de pensamento e de ação. É preciso associar ao conceito de pensamento divergente o de complexidade, levar em linha de conta as complementaridades, os antagonismos, as tensões.  

Num mundo em que imperavam princípios de disjunção, de redução – aquilo que Morin designava de “paradigma da simplificação” – um pensamento simplificador impedia a conjunção do uno e do múltiplo, anulava a diversidade. O futuro nos obrigava a aprender a pensar dialogicamente: 

“O humano faz parte da vida e a vida faz parte do humano; o humano integra o mundo físico e este, por sua vez, o integra; o humano é indissociável da história do cosmos e esta não se conta sem o humano.” 

Nos idos de vinte, o centenário Edgar manifestava perplexidade: 

A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade, se não se reforma a escola?”

A geração 5.0 se confrontava com escolas 1.0. Aceleradas mudanças sociais e a inovação tecnológica exigiam que se reconhecesse a necessidade de operar rupturas paradigmáticas no campo da educação, uma ruptura decorrente de uma decisão ética. E o Mestre Morin nos dizia que o ato ético era um ato de religação “com o outro, com os seus, com a comunidade, e uma inserção na religação cósmica”.

No dia oito de julho de dois mil e vinte e um, Edgar Morin completava cem anos de viagem à volta do sol. Um mês antes, lançava mais um livro: “Leçons d’um siècle de vie”. Seriam muitas as lições. Saborosa foi a leitura de uma das últimas obras desse mestre, que nos falava da necessidade de uma metamorfose, de uma reforma moral, lograda através de profundas mudanças no modo de educar e numa economia ecológica e solidária.

Nesse mesmo dia do julho de há vinte anos, fui com a minha amiga Edilene até Ubatuba, ajudar educadores solidários a retomar projetos há dez anos suspensos. A Lilian havia desistido do Araribá e até de ser professora. A Rose se mudara para Campinas. A Teca se aposentara e a Madre Glória ficara órfã de generosidade. A Neia abalara para outras paragens, a sul do trópico. Mas, novos e atuantes educadores surgiam, celebrando Morin.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXIII)

Alto Paraíso de Goiás, 7 de julho de 2041

Era uma vez… duas escolas, lado a lado com um córrego poluído. Durante décadas, essas escolas deram aula de educação ambiental a alunos moradores de barracos palafitas, precariamente edificados sobre o córrego poluído. Por décadas, o córrego nessa condição permaneceu. Até que uma das escolas alterou o seu modus operandi e os efeitos não se fizeram esperar. Jovens desmotivados motivaram-se, empreenderam freirianas leituras do mundo, o rendimento acadêmico melhorou, a comunidade estreitou laços com a escola, a recuperação do córrego começou. 

O fenômeno gerou curiosidade. O secretário de educação quis saber a origem do inusitado projeto. Apercebeu-se de que, a par dos benefícios, era menor o custo. Membros da comunidade, que acompanhavam o projeto dessa escola, faziam-no gratuitamente, enquanto a secretaria de educação já havia despendido milhões de reais em cursos e consultorias ditas de “qualidade total”, sem que, total ou mesmo parcialmente, a dita qualidade se manifestasse.

No primeiro encontro com a secretaria, um dos educadores formulou uma crítica construtiva e fundamentada ao modo como a formação de professores vinha sendo realizada, por induzir os professores à reprodução de um obsoleto modelo de escola. As técnicas da secretaria responsáveis pelo setor da formação, que na reunião entraram mudas e dela saíram caladas, foram fazer “queixinha” ao seu chefe. O chefe, por sua vez, queixou-se ao secretário. E o senhor secretário mandou suspender o projeto.

Ao longo de mais de quatro décadas, cansei-me de assistir à destruição de projetos, por via de caprichos de governantes, da incompetência de funcionários, da sanha persecutória de burocratas. A falta de conexões com as necessidades e realidades de comunidades não prejudicava apenas o desenvolvimento cognitivo dos jovens – afetava negativamente o exercício da cidadania e sedimentava a submissão a um modelo excludente de escola e de sociedade. 

Houve quem tentasse dar sentido à escola sem sentido. No tempo dos mestres Anísio, Nise, Lauro, Nilde, Freire, o Brasil parecia encaminhado para a melhoria da qualidade da sua educação. Perdeu-se por descaminhos. O conservadorismo pedagógico aliou-se a um poder destituído de saber, para destruir projetos. As medidas de política pública continuavam assentes na crença de ser possível melhorar aprendizagens sem que se processasse a reconfiguração das práticas escolares, sem que surgissem novas construções sociais de aprendizagem. 

O Rubem conduziu-me à descoberta de Anísio, que defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Levou-me ao encontro da Nise, do Florestan, da Nilde, do Lauro e de um íntimo Freire, sobre cuja integração na ortodoxa universidade o Rubem escreveu um…“não-parecer”. 

Durante o período negro dos governos militares, o Rubem e outros brilhantes pensadores exilaram-se, muitos projetos pereceram. A morte do mestre Rubem significaria um novo exílio? Confessava a minha perplexidade, por assistir à morte da memória do Anísio e por ver Freire sequestrado nos arquivos de teses das universidades, quando a sua obra deveria inspirar o labor dos educadores e das escolas brasileiras. Estranhava não encontrar os livros do Mestre Lauro nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Que Brasil era esse, que ignorava a obra dos seus maiores educadores? Que país era esse, que os mantinha no exílio?  

Hei de contar-vos estórias do tempo em que foram dadas respostas a perguntas de resposta adiada.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXII)

Guararema, 6 de julho de 2041

Recordar-vos-eis, certamente, das cartinhas que escrevi para a Alice. Em algumas, falei-vos de um estranho pássaro conhecido por “porquenão”. Os porquenãos assim se chamavam por considerarem que “não era assim, por que não!” Eram aparências de pássaros, tais como os vampiros.

Houve uma gaivota mutante de nome Zeca, que foi perseguido por vampiros do seu tempo. Foi proibido de ensinar o voar de modo diferente. Porque, lá do fundo de escuros e inacessíveis antros, os vampiros vigiavam mestres e escolas.

Durante muitos anos, exauriram quem lhes franqueasse as portas. Nos primeiros anos deste século, os vampiros ordenavam aos porquenãos que ensinassem a voar a todos como se de um só se tratasse, como se cada pássaro não fosse um ser único e irrepetível. Batendo as asas pela noite calada, apoiavam os papagaios detratores da arte das gaivotas, em pérfidas investidas contra tudo o que pressentissem divergente. Com pés de veludo, chegaram mesmo a publicar éditos de interditar voos vários.

Naquele tempo, as gaivotas a tudo resistiram com suprema paciência, pois tinham por aliados os pais das aves aprendizes. E quero que saibais, queridos netos, que o mesmo Deus que punha a mesa para os pássaros velava pela conservação dos vampiros. O Deus das gaivotas era o mesmo dos vampiros, e sabia que, se os vampiros desaparecessem, alguma coisa se perderia e o mundo ficaria mais pobre. Mas, na sua omnisciência, também sabia que os vampiros passariam e que o sonho ficaria à espera de despertar numa outra gaivota, mais adiante.

Aconteceu que, nos idos de vinte, tão logo o João comunicou à direção do seu “agrupamento” que iria trabalhar numa turma-piloto, o senhor diretor reagiu. Acrescentei a pontuação em falta e uma palavrinha que o senhor diretor se esquecera de escrever. E a resposta do senhor diretor ficou assim:

“Não compreendo os termos deste email, que ignora as decisões dos órgãos do agrupamento e parte do pressuposto de que foi autorizado a constituir uma turma (…), tal não corresponde à verdade. Como Diretor do Agrupamento, venho, por este meio, informar que o projeto não vai acontecer no próximo ano letivo.Sem mais assunto (…)”.

Assim mesmo, peremptório, sem acrescentar fundamentação à resposta. Quais seriam as “decisões” a que se referia? Quais os “órgãos” consultados e por quê? Quais seriam os “termos”, que o senhor diretor não “compreendia”? E, se não “compreendia”, por que não “autorizava”?

Os professores signatários da comunicação – pois não se tratava de um pedido de autorização – apenas informavam o órgão de direção da sua disponibilidade para cumprir, a seu modo, o projeto educativo do agrupamento. E tiveram a bondade de, respeitosamente, esclarecer o senhor diretor:

“Em resposta ao seu e-mail, informamos que a constituição de uma turma-piloto não se trata de um projeto, mas sim do cumprimento do projeto educativo. Ou seja, a constituição de uma turma-piloto não carece de “decisões dos órgãos do agrupamento”, nem da sua autorização. Consideramos que a leitura do documento o elucidará. Desta forma, será necessário da sua parte uma fundamentação legal e científica, por escrito, que justifique a recusa da turma-piloto”.

Embora houvesse “diretores de agrupamento” sensíveis e habilitados para o exercício desse cargo, as atitudes de muitos diretores de então eram características de uma administração educacional autoritária, tipicamente prussiana. Onde escasseava a pedagogia sobrava a verborreia burocrática.

Mas, tudo se resolveu a contento de todos. Vos contarei como foi.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXI)

Ponte Nova, 5 de julho de 2041

No final do périplo português, regressei ao Brasil. Fez ontem vinte anos. A minha amiga Edilene pacientemente aguardou o atrasado voo e me conduziu à casa do generoso Arturo. Por lá fiquei, dois dias de hospitalidade, contemplando a feérica São Paulo.

Junto a esta cartinha uma foto da citadina paisagem, que fiz, há vinte anos – vede como está diferente! – no lugar onde preparei a ida à Escola Aberta, antevendo as aprendizagens que por lá viria a fazer.

Não vos descreverei em pormenor a lusa viagem. Dir-vos-ei apenas que me esperançou. E que me mostrou que deveria dar lugar a educadores, que iriam consumar a intenção de há meio século: conceber uma educação para os filhos dos filhos dos nossos filhos.

Por força da Covid, fora “confinado” (era esse o termo usado durante a pandemia) na casa do meu filho. Concluída a quarentena, percorri ruas e praças. A caminhada levou-me até um jardim de Tavira. Sentei-me em frente ao coreto, para descansar o corpo e ressuscitar recordações. Estivera sentado naquele mesmo banquinho, antes de entrar num quartel, onde cumpriria serviço militar de preparação para uma guerra estúpida e inútil, como todas as guerras.

Estivera ali sentado há… cinquenta anos. Dei por mim a pensar em tudo o que vivera em meio século. Mais de metade desse longo tempo fora dedicado a uma escola, a uma comunidade, a um projeto. Já que falamos de tempo, recordo que, ontem, se completaram exatamente oitenta e seis anos e três meses sobre a data de elevação à categoria de vila da terra portuguesa que me adotou e onde esse projeto foi fundado.

Essa data era celebrada com festa e deu nome a uma das principais ruas da vila. Em 1983, compus um roteiro, publicado pela Junta de Freguesia. Nele se explicava a origem da toponímia local. Alguns apontamentos de história completavam o livrinho. Uma estória, que poderia ser contada de modo vário:

Era uma vez… um aglomerado de aldeias conhecidas por “lugares”: Fontaínhas, Bom Nome, Paradela, Santo Honorato, Ponte Nova.

Era uma vez… uma escola, que havia fincado os pés numa comunidade. Criara profundas raízes numa terra dispersa.

Era uma vez… um projeto de reelaboração cultural, unindo aldeias dispersas. E três décadas bastaram para agregar bairrismos, fundar uma ágora na antiga freguesia rural de São Miguel das Aves, situada no bico terráqueo onde os rios Ave e Vizela se abraçam. O nome “Aves” nada tem a ver com pássaros, mas com água, conforme sugere e sema “av”, possivelmente celta. E enlaçadas pelo abraço mesopotâmico de Entre Ambos-os-Rios (Ave e Vizela), as pequenas paróquias de Santo André de Sobrado e de São Lourenço de Romão se lhe juntaram.

Em 1845, a instalação da Fábrica do Rio Vizela – que chegou a ser a maior unidade fabril da Península Ibérica e pioneira indústria de fiação e tecelagem – atraiu operários, dando origem a uma população fabril concentrada e ao aparecimento de fábricas. A opção pela monoindústria engendrou a crise da indústria têxtil, o fim da “fileira” têxtil, quando, no Oriente, era menor o custo da produção.

Em 1976, quando cheguei à Ponte, encontrei um povoado em crise, afetado pelo desemprego, pela poluição, pela corrupção. Muitos avenses haviam emigrado. A um cenário desolador se juntou a impressão que me ficou, ao deparar com um edifício construído no século XIX, arruinado, a que davam o nome de “escola”.

Valeu-nos – ao jovem professor, que eu era, e aos jovens a que me dediquei –

o terreno em torno da “escola”. Nos dias em que a chuva e o vento não o fustigavam, transformávamos o pequeno lago e o bosque numa “sala de aula reinventada”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXX)

Óbidos, 4 de julho de 2041

Até ao dealbar da década de trinta, manteve-se o estranho fenómeno de distribuir indivíduos em função de características pessoais, de organizar turmas por escalão etário e outros pedagógicos disparates segregadores.

Por essa altura, num outdoor, li a seguinte frase publicitária:

“Neste colégio, os últimos serão sempre os outros”.

Seria preciso bater mais fundo? Nem sequer se corava de vergonha perante enormidades desse jaez?

Há quase um século, Élise Freinet colocava a seguinte questão:

“Como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo? Como regular todo o trabalho escolar?”

Élise tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrada em aulas dadas para um (inexistente) “aluno médio”, em tempos iguais para todos. Preocupava-se com a imposição de ritmo único a alunos que denotavam diferentes ritmos. Interrogava-se. Mas, nem seria necessário reportarmo-nos à França da primeira metade do século XX. Já em 1898, Augusto Coelho afirmava:

“Em Portugal, a escola é ainda, em geral, formalista, urge transformá-la num centro de vida e movimento”.

Nos idos de vinte, esse naco de prosa ainda poderia ser considerado “ficção científica”.

Há muitos anos, o ministério “descobriu” que a maioria das escolas imputavam o insucesso dos alunos à sua origem sociocultural e à falta de formação dos professores. No estudo a que me reporto, confirmou-se o óbvio. Isto é, que predomina nas nossas escolas o método expositivo, a disposição dos alunos em filas, voltados para o quadro, e que não era visível “a existência de estratégias específicas para potenciar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos”. Dito em linguagem dura e pura, quem não acompanhava o ritmo do professor que se desenrascasse e fosse pôr os filhos em “escolas especiais”.

Os adeptos do pensamento único desdenhavam do que o vosso avô escrevia, recorrendo a uma metafísica da legitimação assente no inquestionável princípio que dizia que a culpa era do sistema, ou das “teorias das ciências da educação”. Das ditas “teorias”, que os habituais detratores não sabiam dizer quais fossem, ou onde tinham tradução prática.

Num ponto eles tinham razão: muitas escolas não davam resposta à diferença, porque (coitados!) “os professores não podiam ocupar-se do resto da turma, se o deficiente estivesse a estorvar” (sic). Não passava pelas cabeças dessas pessoas que houvesse outros modos de organizar o trabalho escolar? Não se trataria de encaixar um “deficiente” (eu não utilizo esta denominação, mas era assim que os tratavam) numa turma, para reduzir o número de alunos dessa turma, ou para produzir caricaturas de inclusão.

Para que a inclusão passasse a ser mais do que enfeite de teses, seria preciso interrogar práticas educativas dominantes e hegemónicas. Há mais de um século, havia professores que se interrogavam e tentavam melhorar as escolas. Mas havia, também, dadores de aulas, que recusavam interrogações e impediam mudanças.

Quando seriam postos em prática princípios de escola inclusiva enunciados na Conferência de Salamanca? Quando se deixaria de centrar o problema no aluno, para o centrar numa gestão diversificada do currículo? Quando cessaria a intervenção do especialista, num canto da sala de aula, e se integraria o especialista numa equipa de projeto? Quando se concretizaria a efetiva diversificação das aprendizagens, que tivesse por referência uma política de direitos humanos, garantindo oportunidades educacionais e de realização pessoal a todos? Cadê, enfim, a inclusão?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXIX)

Arrábida, 3 de julho de 2041

Queridos netos,

Manifestastes interesse em saber como se aprendia nas comunidades de aprendizagem. Satisfaço a vossa curiosidade.

Há, mais ou menos, uns vinte anos, no início do projeto das turmas-piloto, o vosso avô recomendava que se fizesse o que estava plasmado na lei (em abono da verdade, se afirme que as escolas não praticavam). Por exemplo, uma avaliação formativa, contínua e sistemática. Nas escolas, aplicava-se prova e “dava-se nota”, confundindo avaliação com classificação. Em contrapartida, nos protótipos de comunidade de aprendizagem, eram concebidos registros de evidências de aprendizagem cognitiva e atitudinal, e organizados portfólios de avaliação.

Durante os primeiros meses de cada projeto, os educadores dedicavam tempo e cuidado a uma avaliação diagnóstica, com registro numa plataforma digital. Após o período experimental, quando o registro de avaliação formativa de cada educando estivesse atualizado, a iniciativa do momento de verificação das aprendizagens era do educando, quando sentia “que já sabia” e decidia partilhar o conhecimento produzido com os seus companheiros.

Os círculos de aprendizagem eram acompanhados pela criação de círculos de estudo por área de conhecimento, nomeadamente, na área da alfabetização linguística e lógico-matemática. A criação de círculos de estudos era antecedida de oficinas, nas quais eram produzidos roteiros de estudo e iniciada a partilha de conhecimento, em equipe.

Com uma definição dos espaços de aprendizagem já realizada, era possível partir para a elaboração de um diagnóstico atualizado da realidade educacional, através de pesquisa nos domínios social, econômico, cultural. Procedia-se à identificação do potencial educativo da comunidade. Delineados os perfis, buscava-se a compreensão da função social da escola na comunidade. Ao longo do processo formativo, se realizava o mapeamento de espaços e de pessoas com potencial educativo, dentro e fora do edifício-escola.

Poder-se-ia elaborar um inventário de saberes populares (por exemplo, de medicina popular, de meteorologia popular), realizar um levantamento de tecnologias sociais locais, elaborar o estatuto de voluntário, um mapa de disponibilidades, um banco de horas…

A pesquisa acontecia nas bibliotecas, nos espaços de aprendizagem do edifício-escola e da comunidade, como na praça, na floresta, ou na Internet. E qualquer espaço do edifício-escola, como a plataforma digital deveriam estar ao serviço de toda a comunidade.

Em qualquer dos contextos, os tutores fomentavam o recurso a processos complexos de pensamento, como: selecionar, analisar e criticar informação, comparar diferentes informações, uso de senso crítico na identificação de fontes de informação, avaliar, sintetizar, comunicar.

Os projetos isolados eram frágeis, insustentáveis. Urgia criar redes de núcleos de projeto, promover a colaboração entre pessoas e instituições, através da criação de uma rede digital, onde diferentes saberes e projetos fossem partilhados. Considerada a escola como nodo de uma rede de aprendizagem, seria conveniente constituir parcerias, propiciar a constituição de redes de comunidades.

Era promovida eco sustentabilidade, reforçado o estímulo ao espírito inventivo e a criação de soluções novas. O conhecimento produzido era sistematizado, para posterior difusão, criando núcleos documentais. E a responsabilidade social era um princípio ético, que nos dizia que tudo o que fosse inovado o deveria ser para benefício coletivo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXVIII)

Alhandra, 2 de julho de 2041

Esta cartinha assemelha-se a uma overdose de citações. Outros o disseram e eu fui parasitando. Afinal, não seremos todos um pouco de cada encontro em que não estivemos distraídos? 

Disse o mestre Musil que ”uma utopia é uma possibilidade que pode efetivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização. Tal como o Rubem utópico, também “quero uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Anseio por uma escola em que o ponto de referência não seja o programa a ser cumprido, mas o inteiro corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios. 

Persigo a utopia que me diz ser possível que aquilo a que chamamos “Escola” possa sair de um longo, muito longo Inverno. Chamai-me utópico, que não serei o único e tomarei o epíteto como elogio. Tão romântico como o Rubem, o sonhador Laerte, “romântico conspirador“, também resistia, não desistia, insistindo na prática de uma alquimia libertadora de afetos. 

No belo exercício de sensibilidade que dá pelo nome de “Tudo sobre a minha mãe”, um dos personagens assegura sermos “tão mais autênticos quanto mais nos parecermos com o que sonhamos”. O quotidiano de um “romântico da educação” (RC) poderia ser comparado a jogos de computador. Nesses absorventes jogos, o “herói” ultrapassava obstáculos e acumulava pontos, que se transformam em “vidas” (era mesmo assim na linguagem virtual), prolongando o jogo até ao limite que a destreza dos polegares permitia. 

Quando o jogo parecia irremediavelmente perdido, o RC atingia a pontuação que lhe conferia uma nova “vida”. Porém, alguns RC entravam no jogo em desvantagem, dado sofrerem sozinhos o desgaste imposto pelo exercício da profissão em contextos adversos. Estes eram os “românticos da educação solitários”. 

A dureza das “aulas”, o stress provocado pela “indisciplina”, o “mal-estar docente” que se instalava e introduzia penalizações no jogo, debilitava o RC solitário e conduzia-o ao limiar de um fatal desenlace. O monitor avisava: energia disponível a 40%… energia a 20%… 5%… “game over”. 

No decorrer do jogo, o RC. solitário poderia conquistar duas ou três precárias “vidas”, mas soçobrava face a obstáculos que uma drástica quebra de energia já não lhe permitia ultrapassar. Raramente conseguia ascender aos níveis virtuais mais elevados. Quedava-se por níveis discretos e protetores, não arriscava. Nem qualquer outro jogador solitário prudente o faria, tal o poder dos “génios do mal” que beneficiavam da iniciativa do jogo e dispunham de inesgotáveis manhas e armadilhas. O RC que começava o jogo sozinho, desistia de jogar.

Os “românticos da educação solidários” participavam no mesmo jogo dso RC solitários. Mas, se não conseguissem alterar as regras, contrariavam as lógicas e pervertiam desfechos. Quando o “monstro-burocracia” estava prestes a abocanhar um RC solidário, surgia um outro RC solidário, que enfrentava e distraía o monstro. O RC recuperava “energia” e regressa à liça, num segundo fôlego, que surpreendia e desgastava o opositor. 

A cada investida de monstros e génios do mal, os teimosos RE solidários reagiam em bloco, quebrando-lhes o ímpeto, repelindo com êxito todos os ataques. Por mais maciços e violentos que fossem os assaltos, o jogo terminava, inexoravelmente, como numa telenovela: os bons ganhavam aos maus. Os RC solidários atingiam o derradeiro nível, inacessível aos “bichinhos glutões”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXVII)

Palmela, 1 de julho de 2041

Esta cartinha resulta da reunião de notas de campo com algumas entrevistas que (por acaso?) eu e a minha amiga Sofia encontrámos perdidas e que ninguém ainda reclamou da propriedade.

Não sabemos se vieram parar em boas mãos, mas as depomos nas vossas e na primeira pessoa:

“Da minha mãe, já nem as feições eu recordo. Cedo lhe perdi o rasto. E, só agora percebi o que todos vinham tentando dizer-me: que eu nem sequer deveria ter nascido. Pensei que, na escola, ainda poderia vir a ser gente, que teria direitos, poderia ser criança. Enganei-me, porque foi como em casa, sem afeto, sem cuidados. Mas a escola também não tem culpa. O que poderia fazer a professora, se eu não tinha cabeça para aquilo? 

Pensando bem, a escola até foi a mãe que eu não tive. Não me acariciava, mas também não me batia. Não me olhava, mas também nada me pedia. Não me negava o teto, ainda que nem um banco me desse onde pudesse sentar-me, ou poisar as minhas coisas. Mas que coisas? Tinha-me esquecido de que a professora, talvez para me poupar à vergonha de pouco ou nada aprender, nunca me deu um livro, ou um caderno”.

Agora, na segunda pessoa:

“Falaram-nos de ti. Só queremos que nos leves à tua escola. 

P’ra quê? Já não ando lá. Só lá ia p’ra comer e dormir, ao fundo da sala. Só lá andava a incomodar. Quando a senhora dos deficientes lá ia, ainda valia a pena! 

A professora da primeira, um dia até falou comigo e disse-me que tinha muitos para ensinar as letras e que não podia perder tempo com atrasados como eu. Depois, mandou-me embora, para eu não pegar piolhos aos meus colegas.

Mas, levas-nos lá, ou não levas?

‘Tá bem. Eu levo! Mas tens aí dois reais, para eu comprar um bolo? ‘Inda não comi nada, hoje.” 

Finalmente, na terceira pessoa. 

Contornámos o recreio daquela escola, onde algumas crianças se empurravam e gritavam. Fomos ao encontro de um grupo de professoras, para saber como viram o Paulo os olhos daqueles que o conheceram. 

“Paulo? Paulo quê? Temos muitos”

Explicado de quem se tratava – um antigo aluno, “saído daquela escola, há dois ou três anos” – uma a uma, disseram: 

“Não, nunca ouvi falar!”

“Tendes a certeza de que esse Paulo não andou por aqui?” – insistimos. 

Tiveram a amabilidade de chamar a senhora diretora: 

“Espere lá! Estou recordada de um Paulo… Só um momento!”

Vimo-la vasculhar os armários e retirar de um deles um “livro de matrícula”. 

“Já não é bem do meu tempo. Só me lembro vagamente de um aluno franzino, calado, sem história. O que tenho aqui no livro é apenas a sua primeira matrícula. Passados seis anos, só cá tem escrita uma passagem da segunda para a primeira série. Mais nada.”

Pedimos que nos deixasse consultar os livros de registo de frequência, as listas de constituição das turmas. Com alguma relutância, acedeu. Se era para um estudo… 

Dos oito anos que o Paulo havia frequentado a escola, o seu nome somente constava de duas turmas, ambas do “primeiro ano” e separadas por um hiato de sete anos. Nunca tivera lugar certo onde se sentar, caderno que não perdesse em poucos dias. O Paulo foi o exemplo típico de “aluno fantasma”. Para todos os efeitos, ele nunca existiu, como confirmou uma docente:

“Não admira que não aprendesse. Era um caso perdido. Passava o tempo todo a dormir ao fundo da sala. Tal e qual os irmãos dele!” 

Decorridos alguns anos, voltámos à mesma escola. A senhora diretora era outra. Das professoras, que encontrámos na anterior visita, apenas uma restava. Confidenciou-nos que até tinha tentado a dispensa de componente letiva por desgaste nervoso. À saída, perguntámos pelo Paulo. Respondeu: 

“Apanhou dez anos de prisão. É isso que quer saber?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXVI)

Seixal, 30 de junho de 2041

Esta cartinha funciona como válvula de escape da perturbação que se instalou no meu espírito num debate sobre mais um projeto de “gestão flexível do currículo”. Foi no final da segunda década do nosso século que o ministério lançou um projeto designado “Autonomia e flexibilização curricular”. 

Eu já havia passado por quatro projetos de “flexibilização” e nada tinha sido flexibilizado. Expus algumas preocupações, nomeadamente, sobre a necessidade de aprofundar o conceito de ” flexibilização curricular”. Reconheço não o ter feito da melhor forma. Aqui estou, qual penitente, a redimir-me do pecado. Ou, porventura, a multiplicá-lo, ainda que fraternalmente. 

A sua única intenção seria a de procurar evitar que a generosidade dos colegas que participam do projeto se convertesse, mais uma vez, em desilusão e em mais uma oportunidade perdida para a escola. E, se me permitem a imodéstia, teria o mérito de expor por escrito algumas críticas que fui ouvindo aqui e ali e que, por serem demasiado rasteiras, não chegavam até àqueles que delas mais beneficiariam. Que se há-de fazer, se eu tenho este péssimo hábito de escrever o que outros iam dizendo em surdina de sacristia? 

Causou-me grande espanto e apreensão ver uma proposta de “flexibilização” reduzida a um singelo jogo de somas e subtrações de tempos letivos. Apercebi-me de que a ênfase na “organização” se referia a passar de trimestre para semestre e outras minudências. Não seria a “flexibilização” muito mais do que simples alterações na gestão de tempos, dos espaços, ou no elenco de conteúdos e matrizes curriculares?

O voluntarismo dos agrupamentos de escolas deveria ser realçado. Mas o entusiasmo, por si só, não era suficiente. Um projeto desse tipo pressupunha auto iniciativa, não se poderia restringir à adesão a propostas ministeriais. Essas propostas, por mais meritórias que fossem, deveriam ser reinterpretadas, permanentemente refletidas, não deveriam constituir-se em réplicas, cópias sem identidade. Foi o hábito de mera interpretação técnica de diretrizes, em detrimento da iniciativa das escolas, a mesma que condenou ao esquecimento muitas e úteis iniciativas. Foi a adesão linear a matrizes importadas que transformou a redacção dos regulamentos internos das escolas numa clonagem sem nexo. 

No decurso de um debate, alguém perguntou por que se tinha reduzido tempos numa determinada disciplina e aumentado em outra. Ninguém se dignou responder. E haveria resposta? 

Se a compartimentação disciplinar contrariava a emergência de verdadeiros projetos educativos, também a neurótica preocupação de dar o programa fazia prevalecer a lógica do ensino em detrimento da lógica da aprendizagem e produzia uma “caricatura” de flexibilização curricular, quando a restringia a um mero jogo de somas a subtrações de tempos letivos, do maior ou menor peso desta ou daquela disciplina. 

Não se aproveitou a oportunidade criada para resolver o paradoxo que consistia em lamentar o escasso tempo disponível para “dar o programa” enquanto se desperdiçava uma grande fatia desse tempo em testes e no adestramento dos alunos em provas-modelo. 

No essencial, tudo ficou como antes estava, quando era toda a cultura de escola que urgia mudar. Seria preciso saber se estaríamos a lançar andaimes onde assentasse um novo figurino de práticas de desenvolvimento curricular, ou se estaríamos apenas a pôr remendos em velhos vícios e rotinas. E o que mais me desgostava era o fato de ser alguém formado em ciências da educação quem coordenava mais uma farsa ministerial.

Por: José Pacheco

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