Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIX)

Vassouras, 31 de janeiro de 2042

Entre os anos setenta e oitenta, uma rotina se repetia. Viagem de quase oito horas de comboio, para chegar a Lisboa. Da estação de Santa Apolónia seguia para o ministério. Longas esperas por suas excelências, breves reuniões gastas em diálogos de surdos. 

Lembro-me bem dos olhares de desdém e da manifesta ignorância dos altos funcionários ministeriais. Ainda hoje, sinto – e já lá vão mais de cinquenta anos – o desprezo com que nos tratavam. E o seu autoritário “Sou seu superior hierárquico, não esqueça!” A força da razão era derrotada pela razão da força.

Algo mudou, por volta de 1986. No seu artigo 45º, a Lei de Bases estabelecia que na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. Nos idos de vinte, o 45º já era o 48º. As revisões que a lei sofrera não afetara essa “pétrea cláusula”. Porém…

Como devereis estar recordados, falei-vos do encerramento de escolas com menos de vinte alunos, sem que qualquer fundamento de “natureza pedagógica e científica” sustentasse tal decisão. Se critérios houvesse, o que explicaria a manutenção em funcionamento dos “centros educativos”, cuja ratio era inferior a dez? Apesar da publicação dos famigerados decretos 54 e 55, ilegalidades foram cometidas, muitos projetos foram descaracterizados e destruídos, mercê do ostracismo a que a lei foi votada. 

Já muito se tinha escrito sobre a primeira escola que efetivara a transição de práticas do paradigma da Instrução para práticas do paradigma da aprendizagem. Mas, quase meio século decorrido sobre a rutura operada, seria necessário repensar as práticas instituídas e relançar os projetos que, entretanto, se inspiraram na Ponte, para que a todos fosse garantido o direito de aprender. 

Voltei a Portugal para isso mesmo: para aprender. Aprender como se integraria o que de útil poderíamos retomar do paradigma da instrução e da aprendizagem, juntando-lhes contribuições do paradigma da comunicação. Pudemos contar com o apoio de meia centena de educadores organizados numa equipe, que viria a ser origem de um “movimento”. Eram pessoas com formação experiencial suficiente para dialogar com aqueles que, na universidade, teorizavam o que no chão da escola se fazia. 

Milhares de estudos tinham sido desenvolvidos em torno da Ponte e do Projeto Âncora. Para terdes uma ideia do impacto desses projetos, aqui vos deixo o título de uma tese de doutoramento realizado na Universidade de Paris Nanterre: 

La pédagogie du sud: Analyse de l’émergence d’une nouvelle éducation au Brésil à travers le parcours de José Pacheco”

Para sublinhar que inovações nasciam no sul, nela se afirmava: 

« José Pacheco cite Helena Singer et sa définition d’innovation, qui met l’accent sur l’importance d’aligner éducation et utilité sociale: Innovation est tout ce qui est créé par les personnes et les communautés, basé sur des recherches, des connaissances, avec une méthodologie claire de la réalité dans laquelle ils vivent, afin de faire face aux défis, qui sont vécus dans leur contexte».

Em Portugal, também surgiam projetos com potencial inovador. Na estabilidade política resultante de um ato eleitoral, esperava-se do novo governo condições de mudança educacional. Educadores portugueses decidiram juntar os seus esforços aos do sul. Foi intenso o intercâmbio de saberes e do saber-fazer operado a partir de meados de 2022. 

Eu ia fazendo a minha parte, tentando que duas oceânicas margens se aproximassem.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVIII)

Cordeirinho, 30 de janeiro de 2042

Decorria o já distante janeiro de vinte e dois. No último domingo desse mês, os portugueses foram a votos, para escolher novo governo. As propostas dos partidos, no campo da educação, eram paupérrimas. Eram a negação de princípios constitucionais. Iam na contramão de uma corajosa iniciativa da secretaria de Maricá. Ofendiam a memória de insignes educadores e políticos como Darcy. Veja-se, por exemplo o que a “Iniciativa Liberal” propunha, no âmbito da “inclusão de alunos com necessidades especiais”:

“Os alunos com necessidades especiais devem ser enquadrados na escola de uma forma que atenda à gravidade das suas necessidades. Se essas necessidades foram compatíveis com um ritmo normal de aprendizagem – por exemplo, se forem de natureza motora – então os alunos devem ser incluídos em turmas normais.

Se, por outro lado, as necessidades especiais não forem compatíveis com um ritmo normal de aprendizagem – por exemplo, se forem de natureza cognitiva ou comportamental – então esses alunos devem ser inscritos em turmas especiais lideradas por professores e outros profissionais devidamente habilitados para lidar com essas limitações”.

“Enquadrados na escola (…) gravidade das necessidades (…) ritmo normal de aprendizagem (…) turmas normais (…) “turmas especiais”. Também no domínio da “inclusão”, os programas eleitorais dos partidos eram autênticos pesadelos. Os seus autores, certamente, não teriam lido a “Declaração de Salamanca”. Os políticos e “especialistas”, que os redigiram pareciam saídos das catacumbas pedagógicas da proto-história da educação.

“A crise da educação não é uma crise, é um projeto”, diria o Mestre Darcy. As suas obras sobre a identidade da América influenciaram estudiosos latino-americanos críticos da visão eurocêntrica presente nos estudos sobre os povos originários do Brasil e do sul. Darcy afirmava que, nos trópicos, havia uma outra forma de se viver e de sentir a vida. A Educação do sul não era o atraso, mas o futuro do mundo. E o futuro recomeçava em… Maricá.

Voltando a lugares onde tudo recomeçou, nesse janeiro, a prefeitura de Maricá lançava o projeto “Comunidade de Aprendizagem”. O lançamento do projeto inseria-se na celebração do centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Até ao 26 de outubro do já distante 2022, iniciativas várias impediriam a sua segunda morte: a morte da memória.

Numa sociedade atolada em fundamentalismos e negacionismos, um oásis feito de bom senso e esperança nascia. A iniciativa Secretaria Municipal de Educação visava “melhorar a aprendizagem, com mais diálogo e envolvimento de estudantes, pais e escola, na escolha dos processos educativos. Seis escolas foram selecionadas para um projeto-piloto, escolhidas de acordo com a sua localidade, faixa etária dos alunos e porque as gestoras tinham experiência com tempo integral”, explicou a secretária Adriana. 

O lançamento do projeto ocorreu na Casa Darcy Ribeiro, em Cordeirinho. As secretarias de educação das cidades de Vassouras e Mendes se fizeram representar. A secretária Magda Sayão e a secretária Maria Paula partilhavam as convicções da secretária Adriana: 

“A gestão tem que ser democrática e participativa de fato, e toda a comunidade precisa contribuir. Vamos quebrar vários paradigmas da comunicação, personalizando o aprendizado. Nossos alunos vão aprender efetivamente sobre aquilo que eles têm interesse e, por isso, a formação dos professores é essencial nesse processo”. 

E, mais do que partilhar convicções, também tinham decidido agir.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVII)

Flamengo, 29 de janeiro de 2042

Isto de ser velho não é tarefa fácil. Não há livro de instruções de aprender a envelhecer. E, num tempo em que não se pode perder tempo, gasta-se tempo a procurar o que se esquece. Hoje, esqueci o lugar onde guardei o remédio da ciática (espero que não seja Alzheimer…). Enquanto o procurava, achei um livrinho com o título “Quando for grande, quero ir à Primavera”. Escrevi-o em finais do século passado. Como o tempo passa!

Deitei os olhos ao prefácio escrito pelo Ademar. Ele encontrou no “naufrágio” a metáfora perfeita para descrever a crítica situação do sistema educacional desse tempo. Creio ser útil recuperar memórias:

“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. 

Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que, ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes), que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas. 

A última peça tocada pela banda (contou outro sobrevivente) foi o hino “Nearer My God to Thee”. Meia hora depois, os cinco músicos estavam mortos no fundo do oceano, talvez abraçados (uma pitada de lirismo fica sempre bem nestas evocações) aos seus maravilhosos instrumentos. Não era suposto que, na apertada agenda de salvação do Titanic, houvesse lugar para os artistas (que, de resto, viajavam em segunda classe)…

Como não vi o filme de James Cameron, não posso imaginar como a mais recente narrativa do naufrágio do Titanic tem vindo a passar, através do cinema, ao imaginário popular, quase noventa anos passados sobre a tragédia. Presumo que com doses elevadas de excitação romanesca (ia a escrever hollywoodesca). Mas os factos principais são conhecidos. A iminência da tragédia não desviou os músicos do cumprimento das suas obrigações profissionais. Eles tinham de tocar até à morte como sempre tinham tocado, desejavelmente, até que o navio – o mais seguro, inexpugnável e luxuoso dos transatlânticos jamais construídos – batesse no fundo do oceano. A música deveria anestesiar o pânico e o sofrimento dos que iam morrer… 

O naufrágio do Titanic, sabe-se hoje, estava desde o berço inscrito no seu patético destino de magnificência.  A sua tão apregoada insubmersibilidade não passava de um estúpido e perigoso slogan propagandístico. O aço com que foi construído, apurou-se muito mais tarde, era de baixíssima qualidade e vários erros grosseiros de concepção, que prenunciavam a catástrofe, tinham sido cometidos pelos projectistas. 

A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direcção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espectáculo; também ela exige as maiores provas de abnegação e subserviência aos seus profissionais; também ela, em situação de catástrofe, só está preparada para deixar salvar os passageiros que viajam em primeira classe; também ela segue, confiante e autista, a mais suicida das rotas”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVI)

Divinéia, 28 de janeiro de 2042

O meu amigo Alex dizia-se impressionado com a quantidade de tempo, dinheiro e energia desperdiçados no modelo de sala de aula tradicional. E citava a Marcelle:

“A sala de aula é um lugar cheio de pessoas ausentes”. 

Seres humanos apelidados de professor e aluno não estavam, realmente, ali. Estavam em outros lugares, “desejando, secretamente, viver, amar, rir, relaxar, “contribuir, criar, pertencer”.

Eis o que o Alex dizia:

“Salas de aula com jogos e projetos capitaneados pelo professor podem até “ativar” alguns dos alunos. Ainda assim, não são capazes de ativar a todos. Para obter a verdadeira presença, é preciso que adultos e crianças possam trazer o que está presente dentro de si: seus interesses, suas curiosidades, suas paixões, seus propósitos. É a partir desses presentes divinos que cada um de nós poderá criar suas jornadas mais potentes. Talvez eles não brotem instantaneamente depois de anos e anos de salas cheias de pessoas ausentes. É preciso algum tempo e, sobretudo, confiança para a anestesia ir embora”.

O Alex mostrava-se indignado com as tentativas de “mudar para que tudo permanecesse igual”. Na sua opinião, o uso da tecnologia, com ares de “inovação na educação”, na sua essência, não passava do recurso às ferramentas de reprodução das velhas e ineficientes práticas padronizadoras, com saberes fragmentados e decoreba como resultado final, adestrando mentes para passar em testes. 

Tentava-se maquiar a mudança necessária, transpondo do analógico para o digital, sem mudar o modelo educacional. O Alx resumia numa frase a situação vivida nos idos de vinte:

Não adianta ter a escola dos Jetsons com o modelo mental/pedagógico dos Flintstones”.

Na Internet, a Tânia conversava com o André sobre estórias inacreditáveis:

“Como o vídeo da criança a ser alimentada na creche à base de violência, ou uma tabela de “problemas de comportamento” e respetivas “medidas disciplinares”. Infelizmente, muitos outros eventos desse tipo acontecem nas nossas escolas.

Se toda a gente soubesse e tomasse consciência das micro violências cometidas, perceberia melhor o desrespeito que a escola tem pela criança, a pouca eficácia dos métodos de ensino, a necessidade urgente de fazer diferente.

Há que falar sobre estas coisas”.

No janeiro do Brasil de há vinte anos, a covid ainda açoitava um povo de corpo e alma fragilizado. Quando já se contavam por milhões as vítimas da pandemia, uma “nota técnica” do Ministério da Saúde brasileiro indicava o uso de hidroxicloroquina para o tratamento covid, rejeitando a vacina. Saltavam à vista os nefastos efeitos das “longas ausências em sala de aula”. Muitas crianças “ausentes” morriam. 

Na Europa do janeiro de 2022, um ginasta campeão olímpico e autor de posts antivacina morria vítima da Covid. Nos Estados Unidos, um líder negacionista falecia, vítima de Covid. A par com os desmandos negacionistas, crescia o espectro de uma guerra. Os norte-americanos rejeitavam propostas da Rússia, dizendo que a guerra na Ucrânia dependia do presidente russo. Moscovo prometia retaliar o Ocidente. Gente crescida brincava às guerrinhas, como se a terceira guerra mundial não pudesse ser a última das guerras. Nesse janeiro pré-eleitoral, eram feitas candidaturas e desfeitas alianças. E, num ano em que o povo passava fome, o fundo eleitoral atingia o recorde de quase cinco bilhões de reais. 

No contrafluxo da loucura generalizada, procurávamos modos de mitigar os efeitos perversos de um sistema educacional perverso. E eu encontrava na Divinéia um lugar de ficar, de viver. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXV)

Maricá, 27 de janeiro de 2042

Enquanto, em Portugal, despontavam comunidades, na margem sul do oceano, uma nova educação acontecia no exercício de uma cidadania de novo tipo, “decolonizante”, como, então, se dizia. Afinal, o Brasil era a terra do Milton, do Florestan, do Freire, da Nilde, de Nise, do Lauro, do Anísio, do… Darcy.

Movimentos suspensos nos anos sessenta ressurgiram. Secretarias de educação se reuniam, para suliar rumos de chegar a uma educação do século XXI. Constituídos “grupos de trabalho” encarregados de coordenar os processos de transição, se cuidava de oportunizar uma formação adequada aos educadores envolvidos na primeira fase de um plano de inovação. A par das transformações operadas, a base legal era revista e a sustentabilidade dos projetos repensada.

Foi-me conferido o privilégio de acompanhar esse movimento concebido por extraordinários seres humanos devotados ao bem-estar comum. O Alex e a Tina faziam parte do rol. Consciente da velhice do “novo normal” e de que era hora de ignorar professáurios e apoiar as iniciativas de professores éticos, a minha amiga Tina assim os saudava:

“Parabéns a todos os professores que não aceitam um “sempre foi assim” como negativa para a transformação da educação, que entendem que memorização não é sinônimo de aprendizagem, que têm a clareza de que a padronização gera exclusão e não igualdade de oportunidades, que não aceitam a robotização imposta por apostilas, que não enformam crianças, que exercem uma escuta empática e uma educação afetuosa, solidária e colaborativa, que não praticam uma educação bancária, em linha de montagem e nem tratam as crianças como tábulas rasas ou folhas em branco, que proporcionam que seus alunos sejam protagonistas e autônomos no processo de aprendizagem, que não se iludem com a “educação do futuro” e lutam pela melhoria da educação do presente. Parabéns a todos os professores que acreditam que é possível uma nova construção social pela educação humanizada, integral em comunidades de aprendizagem. Parabéns a todos os professores dedicados, que sofrem discriminação dos professores acomodados”.

Neste ato de corajosa escrita, nesta declaração de Amor, a Tina sintetizava o sentir dos seus pares.

Na Pluriversidade portuguesa, a voz crítica da Bárbara, investigadora em desenvolvimento comunitário e participação cidadã, juntava-se ao coro de agentes educativos que, nos idos de vinte, encetaram profundas mudanças no modo de conceber e de fazer educação:

“Hoje temos em Portugal uma parca educação para a cidadania ativa (…) um povo dos brandos costumes, desconhecedor de alternativas”. 

Eram justas as palavras da Bárbara. E a Teresa, atenta à criatividade dos movimentos sociais de então, participante de projetos promotores de “cidadania ativa”, questionava: · 

O que nos impede de pensar a Escola Pública em conexão profunda com o território, com as suas gentes, os seus saberes?

O que nos impede de sair do espaço físico do edifício da escola e de aprender na e com a comunidade?

O que nos impede de acreditar na proximidade, no envolvimento, no diálogo, como fatores de aprendizagem e produção de conhecimento?

O que nos impede de criar Círculos Locais de Conhecimento, tal como se procura criar circuitos diretos na Economia Circular?

O que nos impede de juntar gente miúda e graúda numa Educação Comunitária, em que todos aprendem com todos, e todos cuidam de todos?

Afinal, o que impedia a mudança? O desgoverno? As lideranças tóxicas? 

Não. O que impedia era o nosso imobilismo. Éramos nós! 

Então… nós nos despedimos.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIV)

Marvila, 26 de janeiro de 2042

Lá pelo início da década de vinte, se estou bem recordado, em Lisboa, nascia uma universidade popular e comunitária. A “Pluriversidade Comunitária” era uma “utopia coletiva” tornada realidade por iniciativa de moradores de bairros de vida difícil – “desfavorecidos”, como se dizia – e por académicos. Partilhavam saberes, partindo do princípio de que, embora mantivesse o monopólio de creditação, a academia deixara de deter o monopólio do saber.

Na comunidade, não havia alunos, havia aprendentes. Nem aulas, mas sessões de conhecimento partilhado. Não havia salas ou lugar fixo para aprender. 

“Pode acontecer em qualquer lado, até na rua. E os professores serão membros da comunidade, vizinhos”. 

Não era apenas uma nova escola, mas um novo tipo de escola, oposta à ideia da “(uni)formização” do saber. Nascia do e para o conhecimento cívico e voluntário, descentralizando o saber que, normalmente, ficava cativo da academia. Pretendia-se fazer da educação mais um meio de resolução de problemas, provando que a experiência de vida poderia valer tanto ou mais do que um diploma.

A ideia já levava anos na cabeça do professor Rogério: 

“Sempre me senti insatisfeito por ser um mero académico. Via os meus colegas presos aos computadores, sem sair do gabinete. Eu nunca fui assim. Temos que estar ao serviço da comunidade. É só assim que sei trabalhar.”

O Joaquim cigano desafogava a sua voz:

“Chegamos a um ponto em que deixámos de nos importar em reivindicar qualquer coisa, porque a nossa voz nunca é ouvida”. 

Apontou uma lista de mudanças necessárias no seio das comunidades, para mudar a sua sina, mas havia uma mudança prioritária: 

“Deve começar nas escolas, nas crianças, na educação. Antigamente, ouvia-se dizer em escolas de algumas aldeias, quando a criança não queria comer a sopa: ‘Olha que vem aí o cigano e leva-te’. Fico triste. Não somos como nos pintam, eu não sou. Gostava que se começasse pela educação”.

Pelo menos uma vez por mês, abria-se espaço à discussão de um tema escolhido pela comunidade como importante para ela própria: saúde mental, arte, impacto das alterações climáticas nos bairros… e o saber saltava para um podcast, em parceria com uma rádio local.

Havia uma Assembleia Comunitária e um “conselho científico” constituído por onze mulheres e onze homens. Metade deles eram mestres e doutores. 

“Nomeadamente, académicos, para não cortar esta ligação à academia, mas não de gabinete” – dizia o Rogério. 

A outra metade era feita de pessoas de grupos comunitários, algumas só com a “quarta classe”, mas reconhecidas pelos seus pares pela sua formação experiencial e imenso saber.

Reparo que o recorte de jornal de onde retirei estes extratos tem a data de 24 de janeiro de 2022. Portugal e a Europa iniciavam um caminho aberto, muitos anos antes, no Peru, na Argentina e no Chile, países-berços das universidades populares. Na Argentina de 1918, o movimento dos estudantes da Universidade Nacional de Córdova reivindicava, por exemplo, o direito universal ao ensino superior, sem concurso, sem vestibular ou enem. 

A criação do que foi a Pluriversidade fora uma ideia peregrina alimentada pelo professor Rogério. Até já tinha proposto que nela houvesse “professores sem formação “superior”, ou nenhuma”. 

A resposta da universidade fora sempre negativa:

“Não ia ao encontro dos cânones da universidade”.

O Rogério temia que a academia viesse, gradualmente, a perder o valor que poderia oferecer às pessoas, que dela necessitavam:

“A universidade arrisca-se, neste momento, a tornar-se uma coisa inútil”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIII)

Barra de Zacarias, 25 de janeiro de 2042

No decurso da campanha eleitoral do distante janeiro de 2022, tentei chegar à fala com políticos candidatos à eleição. Diálogo difícil, pois, sempre que eu lhes falava de aprendizagem e de avaliação, eles falavam de aulas e de exames; se lhes falava de educação e de crianças, eles falavam de ensinagem e de dinheiro. Porém, nesse janeiro, em contraponto com o festival de horrores eleitoralista, havia quem quisesse “combater a mercantilização e reverter a precariedade”, defendesse “o fim dos exames”, o “combate à burocracia”, a “autonomia institucional, assegurando a autorresponsabilidade das escolas”, “rever a organização dos mega-agrupamentos, recuperar a gestão democrática, reestabelecer um modelo colegial de direção escolar” e “uma reforma do sistema de ensino centrado nos conteúdos e na ilusão de que uma prova escrita é um instrumento infalível de avaliação de um aluno, ou de uma escola”. 

Propunha-se ainda “construir comunidades educativas preparadas para os desafios do século XXI, escolas que transitassem para um modelo de educação assente num conhecimento dinâmico” (sic).

No contraponto das “novidades”, desgovernantes empurravam crianças não vacinadas para dentro de prédios chamados escolas. Elites negacionistas evocavam “evidências científicas” para forçar o retorno presencial, ignorando recomendações de médicos, higienistas e cientistas. O Paulo, professor de Patologia e membro da Academia Nacional de Medicina, assim desabafava:

“Há tempos, eu prometi não escrever sobre temas políticos. Peço perdão por fazê-lo. A todas e todos que se sentirem incomodados me desculpo e peço que abandonem este espaço. Não quero causar a ninguém qualquer embaraço. Há tempos em que não se pode esconder na poesia, nem buscar consolo na memória do menino que um dia fui e que deixei perdido numa distante esquina do tempo. Escrevo por compulsão, quase um lamento por saber que hoje o Ministério da Saúde do Brasil não aprovou os protocolos de tratamento clínico da COVID-19. Sinto que devo uma satisfação às pessoas que ofereceram seus corpos para que eu estudasse a doença. Devo estar também ao lado das famílias com quem compartilhei a dor de perderem um ente amado. Falo particularmente em nome das crianças, cuja morte me fez recobrar, numa noite fria, a esperança de um encontro com Deus. Permitam-me falar também em meu nome, hoje como paciente e infectado. O dia de hoje é para esquecê-lo, de apagar da mente o pesadelo destes dias impregnados pela ignorância profunda, oriunda de gentes que pouco sabem, que não se compadecem dos aflitos, que desconhecem o amor, que se apegam a mitos. É uma ignorância convicta, presunçosa, pastosa e nefasta. Frente a este cenário, o silêncio dos órgãos de regulação médicos é ensurdecedor. Desde a minha janela, o dia hoje foi quente e ensolarado. No interior da minha alma foi noite escura. Que vergonha senti hoje por ser médico”.

Mas uma parcela da população já ousava pensar diferente e, mais do que pensar, decidira agir. Políticos éticos seguiam-lhes os passos. Já havia secretários de educação, gestores, professores, famílias e comunidades conscientes da gravidade da situação e dispostos a invertê-la.

Nesse quinze de janeiro, deixei uma Sorocaba a contas com o clímax do surto pandêmico e sujeita ao racionamento de abastecimento de água. Regressei a Maricá, para ajudar a Adriana, a Cláudia, a Natália e tantas outras excelentes educadoras a promover a educação necessária para enfrentar a pandemia dos idos de vinte e as que viessem depois.  

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXII)

Sorocaba, 24 de janeiro de 2042

No último domingo de janeiro de há vinte anos, Portugal foi a votos. O povo português iria escolher um novo governo. Lógico seria que o povo se esclarecesse, analisasse as propostas dos partidos, interpelasse os candidatos e escutasse os debates transmitidos pela televisão. Mas, não encontrei um só eleitor que tivesse lido as plataformas eleitorais dos partidos. Havê-los-ia, certamente, mas não os encontrei. 

Quanto aos debates, não sei se poderia conferir-lhes esse nome. Com raras exceções, as discussões eram rasas e, em alguns momentos, exercícios demagógicos. 

A Educação não foi assunto frequente nesses debates. Naquele que pôs frente a frente os dois principais partidos, não houve uma única palavra sobre educação, o motor da evolução pessoal, social e económica, “base de uma sociedade democrática”, como alguém a definiu.

Viciado em Educação, restou-me ler o que constava dos programas partidários sobre esse tópico. Um político que, por ironia do destino, era meu xará (acaso não saibais, xará era quem tinha nome idêntico; no sul do Brasil e em Trás-os-Montes, era sinônimo de “tocaio”, de homônimo) assim se pronunciou:

“A educação nos Açores não está morta, mas está ferida”.

A Secretaria Regional da Educação estava ouvindo os partidos políticos, com o objetivo de estabelecer uma “Estratégia da Educação para a Década”, quando escutou da boca do político essa infausta notícia. 

Que a educação estava morta já nós sabíamos. Aliás, o cadáver fedia, já há muito tempo, mas eu nunca ouvira um político comentando o desditoso “ferimento”. José Pacheco afirmou que o seu partido era um grande defensor da necessidade de existir uma estratégia a longo prazo para a educação:

“Por diversas vezes tenho dito que a educação é um dos pilares da sociedade, e e não está bem. Não está morta, mas está ferida e temos que curar as feridas e reerguer a educação, para podermos ter pessoas bem formadas a todos os níveis e em todas as áreas”.

Pacheco foi mesmo mais longe, defendendo que um plano de ressuscitação deveria ser desenhado para 50 anos. Justificou:

“O ensino tem que ir ao encontro das pessoas, tem que os motivar e cativar. A escola tem que ser vista como uma boa comunidade onde todos estão incluídos. Defendemos a abertura e integração dos agentes culturais e sociais nas escolas, prestando um serviço de qualidade a toda a comunidade educativa como sejam os alunos, os professores, funcionários e até aos pais e encarregados de educação (…) está aqui em causa a formação e educação da nossa sociedade”.

Fiquei encantado com o pronunciamento do político. E desencantado com aquilo que li nos programas dos partidos.

Para “tornar menos desiguais as condições de acesso e de sucesso na escola”, propunha-se a “consolidação dos apoios tutoriais”, a “reabilitação das residências escolares, “instituindo a gratuitidade da sua utilização durante a escolaridade obrigatória”. Apostava-se na “escolha dos melhores” para lecionar nas escolas públicas e “planeamento da rede escolar com periodicidade trienal”, a “atribuição às escolas da responsabilidade sobre o número de alunos por turma e a sua distribuição”. Desejava-se “libertar o ensino de cargas ideológicas, criar o “cheque-ensino e dar a todos os alunos e famílias, liberdade de escolha da escola do ensino básico e secundário”, tornar a disciplina de Cidadania opcional, um “combate à indisciplina”, e a “defesa intransigente dos exames”. 

Nada de novo. Mas, para além desse pot-pourri de ideias feitas, novas ideias surgiram. Disso vos falarei, amanhã. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXI)

Niterói, 23 de janeiro de 2042

Reparei, agora, que já vos enviei mais de setecentas cartinhas. Espero que não vos obrigueis a uma “overdose” de leitura e, também, não vos aborrecer, por estar sempre a falar-vos de alunos “diferentes”. Todos o somos e, mais uma vez, abusarei da vossa paciência, para deles vos falar. Desta vez, a propósito do modo como, na Ponte, comtemplávamos a “diferença”. O farei sob a forma do diálogo, que cultivávamos, nos idos de oitenta. Ei-lo:

“Ao falar sobre motivação do professor, um dos trabalhos que procuramos realizar é o de se criar diferentes espaços de escuta, onde o professor possa colocar suas aflições e preocupações, sem passar por pré-julgamentos. Visto que a Ponte lida com alunos que apresentam dificuldades emocionais, que tipo de suporte recebe o profissional que lida com tudo isso? Bastam os conselhos e diferentes encontros de equipe, ou é preciso algo a mais? Fale um pouco mais sobre o papel da psicóloga. Como ela participa de todo o processo? Os professores são grandes cuidadores. Cuidam do SER, há também uma política em todo o processo, com o intuito de cuidar do cuidador?

O que se observa é que os alunos da Ponte aprenderam que eles são os responsáveis pelo aprendizado. Como se deu esse processo? Como acontece o “planejamento” na escola da Ponte? Todos os profissionais se reúnem em um mesmo tempo e espaço? Em que período? Quando os professores se reúnem, com quem ficam os alunos?

“A psicóloga que acompanhei mais de perto estava no seu segundo ano na escola. Vi que ela estava tentando organizar o seu trabalho. Falou que, no primeiro ano, praticamente ficou nos espaços, tentando compreender a dinâmica da escola e perceber a forma de trabalhar dos professores e alunos. Agora, ela já estava tentando sistematizar uma prática mais preventiva. Mas ainda estava no início. Tinha vontade de organizar grupo de pais e funcionários e já estava trabalhando com alguns alunos um grupo de formação pessoal e social. 

Sua principal inquietação era esta: como poderia ser dado um acompanhamento mais individualizado para algumas crianças com dificuldades específicas e como poderia realizar a avaliação psicológica na escola? Mas é claro que, em muitos casos, era chamada como “bombeira”, para apagar alguns fogos. Também se preocupava em cuidar um pouco dos educadores, mas não percebi o trabalho nesse sentido.”

O trabalho cooperativo de professores (há sempre mais que dois em cada espaço, em cada momento), a autoformação e a formação em círculo de estudo são suportes que permitem a todos e a cada um dos orientadores educativos dar resposta a todos e a cada caso.

Nos últimos anos, integramos duas psicólogas na equipa de projeto. Mas elas tendem a agir de modo clínico, quase supletivamente, dentro dos modelos de intervenção em que foram formadas. Espero que venham a ter tempo e disponibilidade para entender como se deve trabalhar na Ponte. Elas são pessoas capazes de entender e de mudar. Creio ser necessário integrar novas valências na equipa de projeto (educadores sociais, animadores socioeducativos, sociólogos, antropólogos, especialistas em diversas áreas das chamadas “necessidades educativas especiais”), que sejam capazes de trabalhar em espaços comuns, cooperativamente. Conselhos e encontros não bastam. É preciso predisposição pessoal para aceitar, estudar, mudar”.

Depois de duas décadas de uma pioneira “integração de alunos com necessidades educativas especiais”, errando e revendo processos, a Ponte tentava praticar a mítica “inclusão” proposta em Salamanca, na década de noventa.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXX)

Póvoa de Varzim, 22 de janeiro de 2042

O amigo Nóvoa havia dito que, pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. Mas, os porque nãos, que agiam nos bastidores de instituições tão caducas como intelectual e moralmente corruptas, alegavam que as mudanças propostas “não eram oportunas”, que “não era o momento adequado”, que os projetos inovadores “eram mero romantismo”. 

Essas cínicas criaturas foram objeto de uma canção dos “Deolinda”, um grupo musical dos idos de vinte. Numa das suas canções, assim parodiavam as atitudes dos porquenãos do livro da Alice:

“Agora não, que é hora do almoço / Agora não, que é hora do jantar / Agora não, que eu acho que não posso / Agora não, dizem que vai chover / Agora não, que falta um impresso Agora não, que o meu pai não quer”.

Mas essa canção terminava no modo afirmativo:

“Agora sim, há fé neste querer / Agora sim, só vejo gente boa / Agora sim, damos a volta a isto / Agora sim, eu sinto a união / Vamos em frente, e é esta a direção”.

Muitos anos antes, contei aos meus netos estórias, que muitos olhos recusaram ler. Olhos viciados perderam dons, mas os olhos de criança ficavam suspensos das reticências que eu semeava para que aprendesse a lidar com a perfídia dos porquenãos. 

Um artigo de jornal despertou um recanto da memória e me alertou para mais uma perversidade, que os porquenãos engendravam. Eram tantos, que, por norma, resistia à tentação de comentar. Mas, dessa vez, não resisti a partilhar com o meu neto uma reflexão. Logo deparei com uma dificuldade: os seres humanos de tenra idade não possuíam a capacidade de digerir absurdos. Outra solução não me restou, se não a de transformar a reflexão em estória. Contei ao Marcos que, in illo tempore…

… “Era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. A cada olhar de estupefacção do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada. Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão in illo tempore, para o tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?”

Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase extraída do “Emílio” (de Rosseau): “Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. Depois, para o sossegar, disse-lhe que o Rosseau não tinha toda a razão. Que seria possível reinventar a Escola, porque nem era obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Ferrière. 

In illo tempore, para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, um avô brincava com os absurdos. E sublinhava insistente a ancestralidade dos factos que ia narrando ao seu neto, sempre que pressentia a sua virginal perturbação. 

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 4
Scroll to top