Vassouras, 31 de janeiro de 2042
Entre os anos setenta e oitenta, uma rotina se repetia. Viagem de quase oito horas de comboio, para chegar a Lisboa. Da estação de Santa Apolónia seguia para o ministério. Longas esperas por suas excelências, breves reuniões gastas em diálogos de surdos.
Lembro-me bem dos olhares de desdém e da manifesta ignorância dos altos funcionários ministeriais. Ainda hoje, sinto – e já lá vão mais de cinquenta anos – o desprezo com que nos tratavam. E o seu autoritário “Sou seu superior hierárquico, não esqueça!” A força da razão era derrotada pela razão da força.
Algo mudou, por volta de 1986. No seu artigo 45º, a Lei de Bases estabelecia que na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. Nos idos de vinte, o 45º já era o 48º. As revisões que a lei sofrera não afetara essa “pétrea cláusula”. Porém…
Como devereis estar recordados, falei-vos do encerramento de escolas com menos de vinte alunos, sem que qualquer fundamento de “natureza pedagógica e científica” sustentasse tal decisão. Se critérios houvesse, o que explicaria a manutenção em funcionamento dos “centros educativos”, cuja ratio era inferior a dez? Apesar da publicação dos famigerados decretos 54 e 55, ilegalidades foram cometidas, muitos projetos foram descaracterizados e destruídos, mercê do ostracismo a que a lei foi votada.
Já muito se tinha escrito sobre a primeira escola que efetivara a transição de práticas do paradigma da Instrução para práticas do paradigma da aprendizagem. Mas, quase meio século decorrido sobre a rutura operada, seria necessário repensar as práticas instituídas e relançar os projetos que, entretanto, se inspiraram na Ponte, para que a todos fosse garantido o direito de aprender.
Voltei a Portugal para isso mesmo: para aprender. Aprender como se integraria o que de útil poderíamos retomar do paradigma da instrução e da aprendizagem, juntando-lhes contribuições do paradigma da comunicação. Pudemos contar com o apoio de meia centena de educadores organizados numa equipe, que viria a ser origem de um “movimento”. Eram pessoas com formação experiencial suficiente para dialogar com aqueles que, na universidade, teorizavam o que no chão da escola se fazia.
Milhares de estudos tinham sido desenvolvidos em torno da Ponte e do Projeto Âncora. Para terdes uma ideia do impacto desses projetos, aqui vos deixo o título de uma tese de doutoramento realizado na Universidade de Paris Nanterre:
“La pédagogie du sud: Analyse de l’émergence d’une nouvelle éducation au Brésil à travers le parcours de José Pacheco”.
Para sublinhar que inovações nasciam no sul, nela se afirmava:
« José Pacheco cite Helena Singer et sa définition d’innovation, qui met l’accent sur l’importance d’aligner éducation et utilité sociale: Innovation est tout ce qui est créé par les personnes et les communautés, basé sur des recherches, des connaissances, avec une méthodologie claire de la réalité dans laquelle ils vivent, afin de faire face aux défis, qui sont vécus dans leur contexte».
Em Portugal, também surgiam projetos com potencial inovador. Na estabilidade política resultante de um ato eleitoral, esperava-se do novo governo condições de mudança educacional. Educadores portugueses decidiram juntar os seus esforços aos do sul. Foi intenso o intercâmbio de saberes e do saber-fazer operado a partir de meados de 2022.
Eu ia fazendo a minha parte, tentando que duas oceânicas margens se aproximassem.
Por: José Pacheco