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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCV)

Pessegueiro, 28 de fevereiro de 2042

Ser velho também tem as suas vantagens. Dispomos de todo o tempo do mundo, para arrumar e desarrumar memórias. Hoje, acordei cheio de vontade de arrumar umas pilhas de cadernos – decerto, ainda vos lembrais desses velhos apetrechos pré-digitais – e deparei com um excelente texto do amigo Mauro. Tem data de fevereiro de 2022 e descreve impressões da visita à escola da extraordinária diretora Fabi. 

O título da crônica era sugestivo: Educação Inovadora em Mogi Guaçu: A Aventurosa Saga da Aprendizagem Significativa e as Falas de seus Heroicos Personagens.

“Andando pelo pátio de uma escola estadual de ensino médio, tenho a surpresa de observar que as portas dos banheiros feminino e masculino são identificados pelas marcas da Mulher Maravilha e do Super Homem. As imagens expressam anseios de adolescentes e jovens de tornarem-se mulheres e homens plenos, potentes e decisivos nas situações que enfrentarão.

(…) A primeira etapa é conversar com os estudantes que participam da tutoria, e para isso faz-se uma roda de conversa. A diretora nos apresenta e explica que a adesão dos professores e estudantes à proposta de tutoria é opcional, e antes de deixar a sala coloca à vontade quem quiser participar para contar o que pensa a respeito.

São quinze desses tutorandos que se dispõem a participar da roda, conduzida em parceria com Helô Bueno, professora e voluntária na Luiz Martini e em outras escolas da região. Fazemos nossas apresentações. Somos ativistas da educação pública e da educação inovadora, e gostaríamos de saber as opiniões deles sobre a tutoria.

Mal começo a anotar o que dizem, observo a horizontalidade na comunicação. Os estudantes podem simplesmente se ausentar, mas se dispõem a compartilhar generosamente suas impressões. Expressam-se com clareza e combinam entre eles de quem é a vez. Interrupções, quando há, são causadas pela oportunidade e o entusiasmo e não pela vontade de aparecer ou prevalecer; e findam pela devolução da palavra ao interrompido.

Em sintonia com essas atitudes, grande parte dos relatos dos estudantes passa a mencionar a qualidade das relações estabelecidas com os tutores, a atenção dada à situação de cada um. Passo a anotar as falas dos estudantes:

Na tutoria a gente se expressa melhor do que na sala de aula.

O tutor acompanha cada um conforme sua evolução, enquanto na sala de aula o professor tem que dar atenção a todos ao mesmo tempo.

O ensino “normal” atrapalha muito o interesse, já na tutoria se cria um vínculo pessoal com o tutor. 

As diferenças nas relações com o conhecimento aparecem de forma contundente.

A gente não gostava da escola rígida anterior e depois da tutoria passamos a ter interesse em estudar.

Inicialmente estava conectada a uma determinada perspectiva profissional, e meus projetos avançaram bastante; mas agora me sinto mais feliz e evoluindo ainda mais no aprendizado em outra área.

Estou muito feliz com o que aprendi sobre derme e epiderme! Tem aplicações na estética, e envolve química, biologia, física das cores…

Encontrei uma questão que envolvia matemática e fui pedir ajuda a um outro professor que não é tutor… Ele ficou surpreso com o que estou aprendendo…

A tutoria permite perceber nossa evolução! Uma simples prova feita num dia não pode servir para avaliar um semestre inteiro de estudo, pois no dia da prova o aluno pode não estar bem… 

Na próxima cartinha, voltarei a usar palavras do amigo Mauro, dando conta da emoção sentida na sua visita à melhor escola de Mogi Guaçu. E compreendereis por que o Mauro falava de “heroicos personagens”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCIV)

Dornelas do Zêzere, 27 de fevereiro de 2042

No final da primeira das pandemias deste século, aquando de uma tentativa da “recuperação” de perdas e danos apoiada por generoso financiamento comunitário, os municípios portugueses foram convidados para candidaturas em diversos âmbitos de atuação: social, saúde, desporto, ambiente, promoção de sucesso escolar, etc. 

As ações candidatas no domínio da educação, aquelas de que tive conhecimento, denotavam a sua origem. Os técnicos especialistas na captação de recursos fizeram um bom serviço. Porém, a visão de mundo dos “especialistas” e o conceito de educação que os processos refletiam eram mais do que retrógrados. Falavam de inovação, de transformação, de mudança nas escolas, mas os projetos nada tinham de transformação ou inovação. 

Os seus autores não dispunham de um mínimo entendimento do alcance das suas propostas. Havia quem propusesse a implementação de tutorias, a criação de assembleias de escola, a introdução de “metodologias ativas” e de plataformas digitais de aprendizagem. 

Nesse tempo, diretores esperavam que os jovens sem qualificação profissional atingissem os 15 anos em constantes reprovações e saíssem para cursos profissionais em escolas privadas, para “aliviar” o “sistema”. Havia quem recomendasse cursos vocacionais para jovens em risco de abandono escolar e a formação de diretores em novos modelos de gestão e de organização escolar.

Os projetos lançados pelo ministério duravam enquanto havia dinheiro para os manter. Eram “supervisionados” por doutorandos inexperientes e doutores ignorantes de novas práticas. Eu lamentava que alguns amigos colaborassem com tais iniciativas e que os projetos terminassem sem avaliação dos seus efeitos. Dois anos antes, por exemplo, o projeto de “autonomia e flexibilização curricular” revelara-se um fiasco, e muitas escolas já se mostravam relutantes à participação em novos projetos. 

Nas duas margens do Atlântico, com e-commerce e stories, mágicas soluções enxameavam a Internet:

“Venha conhecer a nossa plataforma de conteúdos para apoio pedagógico a professores. Encontra artigos, e-books, livros digitais. Acesse! Utilize todos os recursos. São materiais produzidos para auxiliar o professor a enfrentar as dificuldades do cotidiano escolar, com sucesso. Para mais informações, entre em contato com os nossos assessores pedagógicos”.

“Se tem dificuldade de disciplina em sala de aula. Se tem dificuldade
em preparar os seus planos de aulas. Se não sabe por onde começar. Se está sem ideias do que fazer com os seus alunos. Se não tem tanta habilidade criativa
para jogos infantis. Se não sabe quais as atividades a aplicar…”

Como sempre acontecia quando “cheirava a dinheiro fresco”, aliciantes produtos eram oferecidos às escolas por abutres “inovadores”. Municípios e diretores os compravam avulso, na expectativa de que esses paliativos fossem diferentes dos anteriormente comprados. Era imenso o mercado educacional do desperdício. A compra e venda de inutilidades, desde projetos “pronto-a-vestir” a plataformas instrucionistas era lucro de empresas e dilapidação do erário público. 

Ninguém perguntava aos professores se estavam satisfeitos. Nem se perguntava aos alunos se estavam felizes, se comeram na noite anterior, se tinham aprendido alguma coisa. Não se verificava a efetiva concretização de planos de atividades aprovados num ridículo conselho geral, instância corporativa, que, supostamente, avaliava o desempenho de um diretor, que, supostamente, monitorava um projeto.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCIII)

Vila das Aves, 26 de fevereiro de 2042

“Ultimamente, tenho pensado sobre quão distante está a escola que eu tanto sonho e pela qual tanto luto, resisto. E, como eu, muitos outros. Não que eu não seja grata e feliz pelo privilégio de aprender com meu grupo de estudantes, mas dói profundamente e até cai uma lágrima, de repente, ao ver o quanto tudo poderia ser mais respeitoso à inteligência, sensibilidade e criatividade das crianças.

Tenho acompanhado muita “publicidade pedagógica”, frases muito bonitas, falsas democracias, práticas inadequadas e maquiadas pela ilusão de uma salvação pela tecnologia. Ao pensar sobre tudo isso, percebo que as diferentes esferas da gestão escolar e educacional, são de fato administradores de escola esquecidos de que a escola deve ser vivenciada conforme as Ciências da Educação. Não se trata de fazer fechar contas no financeiro da prefeitura, ou pintar paredes e arrumar a desordem de maus gestores do passado. Vai muito além disso.

O que queremos na escola, se até mesmo mudar a posição das carteiras ou sujar o chão de terra se torna um problema? 

Não venho trazer crítica pela crítica, mas sim compartilhar um sentimento que muito pesa em mim, por viver décadas ouvindo discursos de democracia, mas quando pensamos e queremos democracia, os egos de gestores, “patrões” poderosos e dominadores, sempre nos ferem, boicotam as práticas. E falo de escola pública! São 20 anos vendo isso acontecer comigo e com colegas não é uma simples queixa, é vivência. 

A última vez que questionei algumas questões sobre o trabalho, depois de enviar inúmeras sugestões à escola para pensar soluções e sem ter nenhuma resposta, a secretaria de educação enviou uma servidora, que ocupa o cargo de diretora regional de várias escolas, para me colocar no meu lugar e esclarecer qual é a minha função, sem nem ao menos conhecer meu trabalho. 

Naquele dia, eu estava com uma pilha de atividades das crianças no meu colo para levar para casa e acompanhar os registros, inclusive estava com meu planejamento e, depois de ouvir o que ela estava dizendo em um tom de voz autoritário, eu ofereci para ela ver, conhecer minha prática, que eu falasse sobre o trabalho. Ela simplesmente se recusou. 

Não fez sequer um esforço para saber sobre o que eu estava falando, apenas tinha chegado na escola com informações dadas pelas gestoras, as quais nem me tinham informado sobre a reunião com a secretaria de educação

A moça saiu sem nem se despedir de mim. Daquele dia em diante, tive que acatar as “orientações pedagógicas” da moça e mudar toda minha prática, até o final do ano. Muitos pais de alunos fizeram perguntas sobre o que tinha acontecido, por que o jeito de fazer tinha mudado. Nem responder eu podia”.

Hoje, se completam vinte anos sobre a data em que reencaminhei para amigos a mensagem recebida da professora B.  Perguntei a esses amigos, se iriam deixar essa professora exposta a violências. Pedi-lhes que, no ano do centenário de Darcy Ribeiro, cessassem o bizantino blá, blá, blá sobre a vida e obra desse Mestre e que subissem ao chão da escola, praticando Darcy. 

A situação da professora B. era semelhante à de outros educadores sujeitos à sanha autoritária da administração educacional. Valia-lhes a decisão de secretarias de educação e de grupamentos de escolas dotados de gestores éticos. 

Nas duas margens do Atlântico, uma incontível caminhada nos conduziria à humanização do ato de aprender e ensinar. Celebrar Darcy não consistiria em palestrar em congressos, ou teorizar Darcy em teses e “papers”. Seria cumprir o seu projeto, no chão das escolas e universidades.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCII)

Portela do Fojo, 25 de fevereiro de 2042

Como, ontem, vos disse, a última semana de fevereiro de há vinte anos ficou marcada pelo início de um amplo movimento de renovação pedagógica. Após dezenas de anos de incúria e sucateamento da escola pública, urgia defendê-la, libertá-la de obsoletos atavismos. A escola pública deveria ser um serviço público, gratuito – uma gratuidade decorrente da cobrança de impostos – e ter caráter universal. Para se manter fiel à sua origem, deveria ser geradora de igualdade de oportunidades e legar valores como a liberdade, igualdade e fraternidade.

O estado impunha padrões de educação idênticos para a dita “escola pública” e para a particular. Embora dispusesse de maior margem de autonomia, as escolas privadas respeitavam regras comuns à “escola pública”. Não era gratuita, visava fins lucrativos e era considerada veículo transmissor de valores religiosos, militares, elitistas, entre outros. Efetivamente, a quase totalidade das escolas ditas privadas correspondiam a esse perfil. Mas havia excepções.

Por que insisto em colocar aspas na expressão “escola pública”? Porque a maioria das escolas ditas “públicas” desse tempo não eram escolas públicas, na verdadeira acepção da palavra, pois negavam o direito à educação a milhões de seres humanos. Perante ambiguidades e contradições, operamos uma redefinição do conceito de Escola Pública – Seria aquela que a todos assegurasse o direito a uma boa educação, que educasse segundo uma nova e humanizadora visão de mundo, independentemente de ter origem estatal ou privada.

Nesse sentido, a maioria das escolas ditas “públicas” não eram públicas. E, nesse tempo, havia escolas ditas particulares que eram… públicas. Entre ela, a Escola Aberta, gratuita, filantropicamente sustentada pelo maravilhoso ser humano Arturo Lazarte. E a Open Learning, iniciativa de um pai preocupado com a educação dos seus filhos. Eram escolas de excelência acadêmica e inclusão social, que viriam a conferir projeção internacional a projetos verdadeiramente inovadores. 

Nesse fevereiro, descobri outras escolas particulares realmente públicas, de que vos falarei em outra cartinha. E acompanhei secretarias de educação compostas de educadores éticos, que abriram caminhos para uma indispensável revisão normativa. 

A regulamentação da lei engendrada por um sistema educacional hierárquico, autoritário, intelectual e moralmente corrupto, estava fundado no paradigma da instrução, não servia propósitos de mudança. Se pretendíamos operar inovação pedagógica, seria necessário, indispensável operar inovação normativa. 

As portarias e resoluções criaram grupos de trabalho, aos quais foram atribuídas competências como: “viabilizar a infraestrutura adequada à implantação de comunidades de aprendizagem; elaborar proposta de diretrizes de política pública e validar indicadores de melhoria da qualidade da educação; propor e acompanhar ações de formação; elaborar e adequar normativos para concepção e prática de novas construções sociais de aprendizagem e de educação”. 

A saga iria culminar no 26 de outubro de há vinte anos. Nessa data, Darcy Ribeiro completaria cem anos de idade. No Darcy político convergiam contribuições de Freire, Nilde, Anísio, Nise, Lauro, Cecília, Milton, Amanda, Florestan, Agostinho… 

Condignamente, celebramos esses mestres, mas fomos além de celebrar um centenário. A mudança não aconteceria por via de teses feitas de teoricismo estéril, nem nos palcos dos congressos, mas praticando Darcy no chão das escolas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCI)

Chã de Álvares, 24 de fevereiro de 2042

Lá, pelos idos de vinte, a Lei de Bases dizia-nos que a educação era dever da família, da sociedade e do Estado, através da escola. Inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, a lei reafirmava que a educação tinha por finalidade o pleno desenvolvimento do educando. 

Decorridas muitas décadas sobre a data da sua publicação, ainda lidávamos com os efeitos do analfabetismo funcional, com a exclusão escolar e social e com outras manifestações de subdesenvolvimento educacional. O rendimento escolar mantinha-se num nível muito baixo e era um dado preocupante, dado que a maiores investimentos, à introdução de inúmeros projetos de “intencional melhoria do sistema” e à intensificação das ações de formação de professores, não correspondia um significativo aumento dos índices de aprendizagem. 

Se os resultados não correspondiam à proposta da lei vigente, isso se ficava a dever… ao “sistema”. Não bastava mudar as leis, por melhores que fossem as alterações. Somente conseguiríamos melhorar a educação dos nossos jovens, quando mudássemos as práticas. 

A reprodução do modelo dessa escola, universalmente conhecida, era tão aceite pela sociedade que, raramente, despertava possibilidade de pensá-la diferente. Estruturado há mais de duzentos anos, o modelo se reproduzia de forma tão natural, que parecia perpetuar-se. A sua estrutura e funcionamento remontavam ao tempo da Primeira Revolução Industrial e atendia às características fabris – bancadas individuais, sinais sonoros marcando os tempos de trabalho, fragmentação do objeto a ser fabricado – e a necessidades sociais do século XIX. 

A fragmentação materializara-se no currículo. Organizado em disciplinas, o conhecimento foi recortado, tornando quase impossível a compreensão das relações entre as partes. O conhecimento dividido era “ensinado” ao longo do ano letivo, por etapas: ano, bimestre, trimestre, semestre, sem que se percebesse quaisquer indícios de fundamentação científica para tal prática. 

Se a família terceirizava a educação dos seus filhos e a escola não ensinava, uma sociedade doente considerava normal que assim fosse. A normose instalara-se, porque todo hábito, uma vez adquirido, se afundava no subconsciente, transmitido pela educação familiar, social e escolar. A crença nas virtudes da velha escola mantinha os professores na ilusão de uma possível melhoria de um modelo educacional em acelerada decomposição. 

As medidas de política educacional sofriam o efeito da descontinuidade, da definição de metas de curto prazo e projetos abandonados, a cada mudança de partido no poder, sem que uma avaliação dos efeitos fosse concretizada. Há cerca de vinte anos, o que havia produzido o modelo de educação predominante? Escassa aprendizagem, indisciplina, muitos milhões desperdiçados na crise da escola da modernidade. 

A melhoria da educação era reivindicação de educadores conscientes, evidenciando a urgência da reconfiguração das práticas escolares. O envelhecimento da profissão de professor, o contraste entre grandes investimentos e baixos resultados, uma gestão hierárquica e não-democrática eram alguns dos indicadores que validavam a má qualidade da educação. 

Era esse o saldo de uma desastrosa condução do “sistema”. O que fazer diante desse cenário? Como fazer das escolas lócus de desenvolvimento sustentável?

Na última semana do fevereiro de há vinte anos, centenas de educadores se uniram num denodado e definitivo processo de mudança. Contar-vos-ei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCC)

Machio, 23 de fevereiro de 2042

Estávamos no início dos anos setenta e o episódio passou-se no “Estádio 28 de Maio”, em Braga. A curiosidade levou-me a um dos magnos encontros de professores promovidos pelo Estado Novo. Contrariando o ambiente de ardente apologia da situação e das louvaminhas ao governo da Nação, cometi o atrevimento de formular uma pergunta dissonante, daquelas que ninguém no seu perfeito juízo ousava sequer pensar. 

A pergunta tinha a ver com algo que, já então, me causava estranheza: o facto de o vencimento dos professores aumentar em função do tempo de serviço. Eu considerava estranho que não fosse proporcional ao número de horas de trabalho, ou que não tivesse relação intrínseca com a qualidade do desempenho. 

Nesse dinossáurico tempo de denunciantes, era perigoso pensar, e bem pior dizer o que se pensava. Mas disse-o. 

Jamais se vira tal desaforo! Ficou-me bem cara a proeza, porque a polícia política não era mansa no tratamento dos dissonantes. 

Um colega mais velho, salazarista convicto, afastou-me do microfone, puxou de galões e foi ovacionado: 

“Olhe que eu já levo vinte e tal anos de serviço e você é novo nisto. Ouviu? Quando chegar à minha idade, há-de dizer-me se ainda pensa da mesma maneira!” 

Creio já ter chegado à “sábia idade da experiência”, pois já conto muito mais que os “vinte e tal anos de serviço”. Gostaria de reencontrar aquele colega para lhe dizer que continuo a pensar do mesmo modo. O que a experiência me ensinou foi que não deveria aproveitar a experiência da formação inicial, nem a experiência das rotinas instaladas, que em muitas escolas encontrei. No lugar do apelo à experiência eu colocaria o valor da solidariedade, que ajuda a aprender com os outros. Nos idos de vinte, cinquenta anos volvidos sobre esse episódio, eu continuava a irritar os guardiães do templo corporativo, questionando o divisionismo, que consentíamos e que enfraquecia a nossa profissão. 

Convidava os professores à reflexão sobre sacrossantos critérios adotados em concursos e estabelecimento de salários: “anos de experiência”, “graduação”, “doutoramento” e outros que tais. Não estava provado que um doutoramento ou a experiência acumulada “no decurso de tempo de serviço” conferisse maior qualidade ao exercício da profissão. Que não se confundisse “experiência” com “formação experiencial”, porque eram conceitos bem diversos. Quem dava aula só tinha um ano de “experiência”, porque repetia a “experiência”, ano após ano. Essa “experiência” acumulada em anos de mesmice de nada servia. 

E o que tinha sido a chamada “avaliação de desempenho”? Algo que jamais passou de rotina administrativa, que em nada concorreu para a valorização profissional. Nada se avaliou, ninguém avaliou coisa nenhuma, ninguém foi avaliado. 

A nota final de curso o que representava? Nos trinta anos de Ponte, nem sempre (ou quase nunca, melhor dizendo) os professores com melhor nota foram os melhores professores na prática. 

Que valor tinha uma lista graduada? O critério “tempo de serviço” significava “quanto mais tempo me servires, mais te promovo e te recompenso”? Estaria tão enraizada a tacanha mentalidade de funcionário público e a obediência cega ao Estado-patrão? 

O “legalismo” formatou-nos numa profissão espartilhada em sectores e categorias hierarquizadas, em diferentes componentes letivas, em vencimentos desiguais para trabalho igual. Por essas e por outras, nos contratos e termos de autonomia constava a necessidade de estabilidade das equipes de projeto, independentemente da quantidade de “anos de experiência”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLIX)

Figueira de Castelo Rodrigo, 22 de fevereiro de 2042

Nos idos de vinte, um inquérito conduzido pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revelou um país de fortes desigualdades sociais e educacionais, no que tocava ao acesso à cultura. Apurou que, no ano 2021, quase dois terços dos portugueses não leram um só livro. As desigualdades territoriais e socioeconómicas moldavam as práticas e os hábitos culturais dos portugueses. 

Foram aplicados inquéritos a cidadãos residentes no país, com quinze ou mais anos de idade. O estudo abordou áreas como: consumos culturais por meio da Internet, televisão e rádio; hábitos de leitura em papel e em formato digital; frequência de bibliotecas, museus, galerias de arte e monumentos; ida a espetáculos, a concertos e ao cinema. E, como viria a dizer o José, era revelador de “lacunas, há muito verificadas”.

Nos 12 meses anteriores ao início da pandemia, 80% dos portugueses não tinham frequentado uma biblioteca sequer. Só 31% e 28%, respetivamente, visitaram algum monumento histórico ou um museu, e apenas 6%, galerias de arte e sítios arqueológicos. Entre os espetáculos ao vivo, os mais frequentados foram os festivais e as festas locais (38%), os concertos ao vivo (24%) e o teatro (13%). Os 7% que iam ao circo eram mais do que aqueles que assistiam a eventos eruditos como concertos clássicos (6%), dança ou ballet (5%) e ópera (2%). 

Os portugueses passavam mais horas na Internet, a trabalhar ou estudar, do que em atividades de lazer. Mas, a percentagem dos que se ligavam à rede por lazer era de 82%, muito superior aos que a ela acediam para estudo ou trabalho. A internet constituía, também, uma porta de entrada para diversos interesses culturais:

“Pelo menos uma vez por semana, 35% dos inquiridos ouviram música a partir da Internet, 33% leram sites de notícias, 27% procuraram informações precisas, 16% fizeram buscas na Wikipédia e outras enciclopédias online e 15% procuraram informação sobre livros, música, cinema e espetáculos”. 

A percentagem daqueles que, diariamente, preferiam ver filmes, séries e telenovelas na televisão era de 90%, o dobro dos ouvintes diários de rádio. Mas, os números críticos (chocantes!) desse estudo eram aqueles que se referiam aos hábitos de leitura. 

A percentagem de inquiridos que não tinham lido um único livro impresso era de 61%. A maioria dos inquiridos “não beneficiou do estímulo à leitura gerado em contexto familiar”. A origem socioeconómico era determinante: 

“Os mais assíduos leitores de livros eram os que tinham ensino superior, ou cujos pais o atingiram”. 

Era muito elevada a percentagem daqueles que, na infância e adolescência, nunca tinham ido a uma livraria (71%), a uma biblioteca (77%) ou a uma feira do livro (75%), sendo alto, também, o número dos que nunca tinham recebido um livro (47%) ou a quem ninguém lera uma história, em criança (54%). 

Era relevado que:

“Se [o inquérito] revela que quanto mais jovem se é e quanto mais elevadas as qualificações académicas dos pais maior é a probabilidade de ter usufruído, na infância e na adolescência, de experiências de contacto com o mundo do livro e da leitura espoletadas pelos progenitores ou por outros familiares, importa frisar que a maioria dos inquiridos ‘raramente’ ou ‘nunca’ desfrutou, até aos 15 anos de idade, da leitura de histórias e da oferta de livros por parte da família ou, inclusivamente, de um conjunto de práticas exodomiciliares como idas a feiras do livro, livrarias ou bibliotecas”.

O que teria isto a ver com a educação que se fazia nos idos de vinte?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLVIII)

Moimenta da Beira, 22 de fevereiro de 2042

Perto do final da primeira pandemia deste século, investigadoras previram que a pandemia seguinte seria proveniente da Amazônia. A deflorestação tornava, cada vez mais, possível que ela surgisse da maior floresta tropical do mundo.

A Mariana, professora de ecologia, afirmava que a deflorestação em zonas tropicais era, talvez, das maiores fontes de emergência de novas doenças, se não mesmo a maior. No janeiro de 2022, a deflorestação na Amazónia brasileira bateu um novo triste recorde: 430 quilómetros quadrados de vegetação nativa destruídos, um aumento de 419% em relação ao mesmo mês de 2021. E a Márcia avisava:

“O potencial está lá, temos um ‘reservatório’ de diferentes vírus em animais selvagens, que estão lá a viver, sem incomodar ninguém”.

Epidemiologistas, economistas, ecologistas e biólogos ligados à conservação da natureza, nos Estados Unidos, na China, no Brasil, na África do Sul e no Quénia, trabalharam durante quase um ano nesse estudo.

“À medida que começamos a invadir o ambiente dos animais selvagens, aumenta a possibilidade de vírus ainda desconhecidos infetarem seres humanos. 

A pandemia seguinte poderia ter proporções maiores do que a covid-19 e a Humanidade parecia não ter entendido a mensagem de um vírus. A educação familiar, social e escolar ia na contramão da prevenção. E a Márcia lamentava negacionismos, fundamentalismos conservantismos e outras pragas:

“Os modelos de desenvolvimento para a Amazónia são totalmente errados, focam-se na exploração, ignorando por completo a população, as necessidades e o conhecimento locais”.

O Reino Unido exportava para o Brasil, México, Índia e Indonésia um herbicida altamente tóxico fabricado na cidade de Huddersfield… proibido para uso na União Europeia. O Brasil era o lixão mundial do agrotóxico.

A autora denúncia foi obrigada a deixar o Brasil, após a publicação do seu estudo. 

O Maurício criador da Turma da Mônica, era conciso, quando dizia:

“Seu filho não pode chegar à Internet sem passar pelo livro. Se não for capaz de escrever aquilo que pensa e de entender o que lê, vai para a Internet para virar um idiota”.

Hábitos de leitura e a produção de conhecimento eram fundamentais para a conscientização. Mas, cadê a criação de tais hábitos? 

Percorri corredores de ministérios, visitei divisões de educação de câmaras municipais, entrei em secretarias de educação, vivi no chão das escolas. Raramente, vi alguém dentro das bibliotecas. Apenas funcionários, conversando, batendo teclas num computador, trocando mensagens em redes sociais.

Por duas ou três vezes, assisti à pesquisa feita por alunos, assistidos por solícitos bibliotecários, por não saberem localizar os livros necessários. Também escutei a conversa de um ruidoso grupo de técnicos de uma secretaria de educação, que invadiram a biblioteca, por não haver… sala disponível para reunir. 

Uma criança segredou-me ao ouvido que os professores “mandavam de castigo para a biblioteca”. E acrescentou:

“Mas, a senhora da biblioteca é boazinha, deixa a gente ficar no computador, na internet e a fazer jogos no telemóvel”. 

Um ministro fez chegar a todas as escolas e departamentos da administração educacional uma biblioteca dos professores, constituída por mais de uma centena de obras de indispensável leitura. Muitos professores ignoravam a existência dessa excelente coleção de livros. Os cartões de registro de “empréstimo” colados na contracapa dos livros estavam em branco. Ninguém lera tais livros.

A quem conviria ocultar essa triste realidade?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLVII)

Pampilhosa da Serra, 20 de fevereiro de 2042

Como vos disse, netos queridos, a discussão em torno dos exames, provas, testes e afins era uma espécie de passatempo muito do agrado dos responsáveis pela gestão de um malfadado sistema educacional, que vigorou até aos anos trinta. 

Um normativo de 1976 fora certidão de óbito dos exames da “quarta classe”. Malgrado as frequentes viagens a uma Finlândia da moda, que os havia, quase totalmente, erradicado, os exames retornaram das catacumbas da pedagogia e se mantiveram vivos nas representações sociais e ativos nas práticas escolares. E, em 1977, ministeriais orientações viriam a abrir caminho para a proliferação de ambiguidades: 

“Talvez que, em Portugal, quando na escolaridade obrigatória para todos não houver diferenças tão significativas, o problema se coloque de modo diverso; talvez o termo exame venha a ser substituído pelo de prova, teste, ou outra designação adequada”. 

Pelo subido coturno desse normativo se depreendia que, para o ministério da educação, tudo não passaria de uma mera questão de terminologia. O resultado de décadas de fatais hesitações estava à vista de quem quisesse ver: para um “ensino em massa”, planejamento de aulas para o “aluno médio” e reprovação para os “menos aptos”. Restava saber a quem seria dada aula, acaso o “aluno médio” faltasse à escola. Ou como se reprovaria aqueles que a abandonavam.

Ciclicamente, se legislava absurdos, bovinamente aceites por professores legal e teoricamente desarmados, por via de uma formação de péssima qualidade. 

“Que lhes valeu todo o curso que fizeram durante longos anos? Em vão leram livros copiosos, beberam a caudalosa erudição dos catedráticos imponentes, fizeram provas escritas de inúmeras laudas, com letra miúda. Palavras, palavras, palavras que o vento levou”. 

Quem assim nos falava era a Cecília Meireles. Em 1930! 

Nos idos de vinte, os professores acumulavam certificados de “capacitações”. Se a competência desses professores fosse medida pelo número de cursos frequentados, a sua qualificação seria extraordinária. Se a qualidade das escolas pudesse ser medida pelo peso de diplomas e certificados, já teria acontecido uma revolução em cada escola. 

A acreditar numa pesquisa do Naércio Filho, de 2007, os professores que tinham feito muitos cursos não tinham melhorado a aprendizagem dos seus alunos. As conclusões desse estudo explicavam a inércia dos professores:

“Quando se trata do ensino público e dos cursos de capacitação oferecidos aos professores dessas redes, a constatação é que eles não estão fazendo diferença no desempenho dos alunos, apesar de serem divulgados como uma das iniciativas para melhorar o ensino. O professor vai, fica ouvindo sobre várias linhas pedagógicas e, no fim, não aprende nada que consiga usar.” 

Em Portugal, após o incremento da formação continuada de professores e do investimento de milhões de euros, os resultados foram decepcionantes – quase nada se alterou na atitude dos professores e pouco terá mudado nas suas práticas. O modelo de formação, que ainda predominava, era a negação do que se pretendia transmitir. 

Se os formadores ensinavam métodos ativos a professores inativos, o que ficaria? O professor aprendia a “teoria “transmitida”, ou a prática “praticada”? 

Os formadores pareciam adoptar a máxima “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, ignorando que acontecia formação sempre que um professor estabelecia um diálogo entre o eu que agia e o eu que se interrogava, num processo social em que transformava o conhecimento que tinha da realidade.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola DCCLXLVI

Petrópolis, 19 de fevereiro de 2042

Em meados do mês de fevereiro de há vinte anos, atravessei, de novo, o Atlântico. Fui de São Paulo a Pampilhosa da Serra, acompanhado de preocupações. A forte tempestade que atingiu Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, já causara mais de cem mortos. Muitas delas, crianças. E havia muitas pessoas dadas como desaparecidas.

O número de mortos ultrapassava o registrado em 2011, quando 73 pessoas morreram na cidade, devido às chuvas. Nesse ano, toda a região serrana foi atingida por tempestades e 918 pessoas morreram.

Estávamos perante mais uma tragédia anunciada, causada pelo desmatamento ilegal, por assoreamentos, pela incúria. As águas pluviais represadas em frágeis encostas viravam torrentes, abrindo caminhos novos, provocando o caos. Os meios de comunicação social mostravam casas destruídas por deslizamentos de terras, carros levados pela corrente, empresas inundadas pela água que corria pelas ruas do centro histórico da cidade.

Agentes da Guarda Civil acompanhavam os resgates dos corpos, que estavam presos a ferragens, ou submersos. Temia-se que o número de mortos pudesse aumentar ainda mais à medida que bombeiros e voluntários escavavam os restos de casas levadas por torrentes de lama, muitas delas em favelas empobrecidas das encostas. Foi decretado o estado de calamidade pública e as equipas dos hospitais foram reforçadas para o atendimento às vítimas.

Estávamos a atravessar uma das eras de razão cínica. A ignorância conduzira idiotas ao poder. A pulsão da morte prosperava. No Brasil, como no Portugal de 2017, sucediam-se cíclicas tragédias. Favelas e aldeias serranas foram destruídas. Centenas de seres humanos pereceram em derrocadas e foram imoladas em incêndios florestais.

Pessoas resgatadas com vida, ou que haviam perdido todos os seus haveres, eram alojadas em abrigos, a maioria em escolas. Instituições de caridade pediam doações de colchões, cobertores, alimentos, água, roupas e máscaras para as vítimas. Surgiam iniciativas como a da Cecília, para acudir a urgentes necessidades de com um povo abandonado à sua sorte. No 17 de fevereiro de há vinte anos, a Cecília “atualizava” o seu “modus operandi”:

“Boa noite, amigos! Hoje destinei 700 reais para compras de fraldas, mamadeiras, lenços umedecidos, chupetas, leite. E mais 700 reais para a compra de Itens de higiene, sabonetes, pasta de dente, escova de dente, alimentos prontos (suco, biscoito, todinho). E, no fim da tarde, compramos 450 reais descartáveis, que foram destinados para uma unidade escolar que está, juntamente com uma igreja, produzindo quentinhas para distribuir de dia e de noite. 

Saldo do dia: 1.850 motivos para manter viva a esperança no poder do bem e em motivos para agradecer a cada um!”

Os prédios das escolas sempre albergaram ocultas tragédias – as educacionais. Numa delas fora encontrado o cadáver de uma aluna vítima de enxurrada. Na rua foi encontrado o cadáver da professora Raquel. Tantas vidas precocemente ceifadas!

Quem dera que, nesse tempo, a Cecília pudesse dispor de maiores meios de atender a necessidades essenciais da educação petropolitana. E, sobretudo, que pudesse influenciar, tomar decisões, que permitissem que os prédios das escolas fossem usados para abrigar sobreviventes de tragédias, mas também para as prevenir e evitar.

A prevenção estava na prática de uma nova educação, aquela que a bondosa e solidária Cecília viria a conceber, mais tarde, para que jamais fosse necessário usar as escolas para mitigar os efeitos de tragédias anunciadas.

Por: José Pacheco

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