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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXXII)

Brasília, 11 de março de 2043

Há, precisamente, vinte anos, a comunicação social divulgava um encontro de educadores, que a alguém disse ser “movimento nacional de pessoas que sonham, lutam e realizam por uma educação verdadeiramente transformadora, democrática e emancipatória”.

Dez anos antes, também na Brasília do Darcy, um manifesto fora lançado na primeira das CONANE. O Terceiro Manifesto era um legado dos Românticos Conspiradores, oferecido ao ministério e depositado nas mãos de uma equipe coordenada pela minha amiga Sônia. Esse manifesto deveria ser atualizado e servir de referência para as CONANE seguintes. 

O Manifesto hibernou, até chegar o tempo da pandemia. Um simples vírus bastou para que o sistema de ensinagem entrasse em crise e o teor do Terceiro Manifesto se materializasse num FAZER tardio, depois da Sexta CONANE.

Assim se manifestaram os autores do Manifesto:

Indicamos ao poder público melhorias para uma nova construção social de aprendizagem, servindo como diretrizes para uma Educação do século XXI. 

Assegurar às escolas a dignidade de um estatuto de autonomia; rever o tipo de gestão das escolas, passando de uma tradição hierárquica e burocrática para decisões colegiadas, coletivas; desenvolver comunidades de aprendizagem, baseadas num projeto local de desenvolvimento, consubstanciado numa lógica comunitária, que pressupõe uma profunda transformação cultural e concretiza uma efetiva diversificação das aprendizagens, tendo por referência uma política de direitos humanos, que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos.” 

O Terceiro manifesto clamava por “uma nova construção social de aprendizagem”. aquela que Lauro e Agostinho anunciaram. Aquela que António Nóvoa e de Pedro Demo especificaram, quando disseram que seria preciso acabar com a sala de aula e erradicar o instrucionismo.  

Diziam os dicionários que uma conferência era uma reunião de pessoas com a intenção de debater ideias, problemas, inovações. Uma conferência era concebida para conferir. Isto é: para verificar, averiguar, certificar, confirmar, reconhecer, outorgar. 

Tomando como ponto de partida o primeiro dos significados – verificar – fui para a “CONANE da Esperança”, na esperança de verificar a concretização das recomendações de António Nóvoa e de Pedro Demo: a de acabar com a sala de aula e erradicar o instrucionismo. 

Como coautor do terceiro Manifesto, fui verificar se o António e o Pedro teriam sido escutados e respeitados. Deparei com uma discussão sobre o “Novo Ensino Médio”, um despropósito a que não faltaram referências à… “sala de aula”.

Eu poderia ter perguntado, por exemplo:

O que é o “ensino médio”? Por que existe?

Por que se mantém inalterada a tradicional segmentação cartesiana?

Por que se continua a trabalhar em sala de aula?

Nada perguntei. Pelo respeito devido à à CONANE, abandonei o auditório.

Dez anos depois da primeira CONANE, a quase totalidade dos projetos divulgados nessa conferência tinha sido extinta ou neutralizada. Seria de presumir que, decorridos mais dez anos, aqueles que ganhariam visibilidade social na Quinta CONANE já teriam sido destruídos ou neutralizados.

A “nova construção social” proposta na primeira CONANE permanecia ignorada. Até meados dos idos de vinte, continuar-se-ia, abusivamente, a colocar o rótulo de “inovador” em projetos paliativos do modelo educacional instrucionista. e, enquanto a sala de aula não foi extinta, a sofisticação do discurso pedagógico continuou a contrastar com a miséria das práticas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXXI)

Universidade de Brasília, 12 de março de 2043

Já não via a Kátia desde o tempo em que era secretária municipal de educação. recordo-me de um encontro, em Manaus. Estive ali, a pedido de pais de crianças atentos aos malefícios de um sistema de ensinagem feito de salas de aula e burocracia. Recordo-me de lhe ter oferecido os meus préstimos – trabalho gratuito e sem financiamento – que propiciariam às crianças de Manaus uma educação de boa qualidade. 

Voltei a encontrá-la, no último dia da CONANE da Esperança, já na qualidade de Secretária da Educação Básica. No seu discurso, expôs a situação herdada de quatro anos de desgoverno, queixou-se de “fogo amigo” e falou de “ensino médio”, de “sala de aula” e de outros inúteis artefatos do sistema de ensinagem. 

 

Finda a palestra, me inscrevi no breve período de pergunta e resposta. Inscrevi-me, mas não fui contemplado. Talvez o meu questionamento fosse considerado desimportante. 

Privado da fala, optei por lhe enviar uma cartinha. No fundo do baú das velharias a encontrei e vo-la dou a ler.

Prezada Kátia, sê bem-vinda à CONANE. Venho falar-te de “fogo amigo” e de um faz-de-conta feito de índices de decoreba. Também farei três perguntas, que não me deixaram fazer. 

Estamos reunidos em solo sagrado, na Universidade sonhada por Darcy Ribeiro.

Foi aqui que, há mais de meio século, Darcy se juntou a Agostinho, um português exilado pela Ditadura de Salazar, autor da seguinte frase:

“Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América. Só falta Portugal desembarcar em Portugal.”

O grande Lauro de Oliveira Lima, cearense de Limoeiro, com quem convivi na sua casa do Rio de Janeiro, confirmou a agostiniana profecia, na sua obra “Educação do Futuro”, mostrando que o futuro da Educação está no sul. 

Isso mesmo, prezada Kátia, a Nova Educação não virá da Finlândia, nem dos Estados Unidos. Não tarda, a nova Educação, que está a nascer no Sul irá “desembarcar” no Norte, sem resquícios de colonialismo, isenta da exploração do Homem pelo Homem. Uma Nova Educação radicada em culturas pré-colombianas, presente na antropogogia dos povos originários, latente na cultura quilombola, que nos diz ser necessária uma tribo inteira para educar uma criança, isto é: que a educação deve acontecer em comunidade. 

Será uma Nova Educação pautada na solidariedade e numa autonomia, que opera o milagre da sobrevivência do povo das favelas, onde vivem 75% dos alunos brasileiros. Uma Nova Educação plasmada num caldo cultural pleno de criatividade, composto de múltiplas origens (portugueses, alemães, italianos, japoneses, de judeus e árabes, de russos e ucranianos que não fazem guerra…).

Urge conceber alternativas para uma Nova Educação – o mote da CONANE – uma Nova Construção Social de Aprendizagem e Educação, mote do Terceiro Manifesto. Urge transitar de práticas instrucionistas para práticas propostas pelo Anísio escolanovista, juntando-lhe contribuições do paradigma da comunicação. 

A CONANE busca conceber: “uma educação verdadeiramente transformadora, democrática e emancipatória” (sic). Por isso, te pergunto:

Se António Nóvoa recomenda a extinção da sala de aula, será possível conceber uma educação transformadora, se iniciativas de política pública não obedecerem a critérios de natureza científica?

Como poderemos aspirar a uma educação democrática, se um modo de pensar e de agir se furtar ao diálogo com outros modos de pensar e de agir?

E cadê a educação emancipatória, quando os projetos de um pensar e agir diferente do teu ficam expostos à afronta de uma administração autoritária e sob “fogo amigo”? 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXX)

Brasília, 10 de março de 2043

Naquele tempo, os inspetores do ministério eram presença assídua na Escola da Ponte. E as homéricas discussões sempre terminavam com a inspetoral ordem: 

“O senhor professor tem de voltar para a sua sala de aula!”

E eu respondia com a sacramentada pergunta:

“Por que terei de voltar para a sala de aula?”

“Porque eu sou seu superior hierárquico, represento o ministério da educação e você é funcionário do ministério”

Nunca me deixei “funcionarizar”. Com o devido respeito a quem era “superior”, fazia perguntas e praticava desobediência civil:

“Se o Senhor Inspetor não der resposta às minhas perguntas, não obedecerei.”

Nunca cedi a imposições sem fundamento. Porque, nos idos de setenta, eu adotara toda a complexa parafernália do Celestin e da Elise Freinet: os ficheiros autocorretivos, a assembleia dos alunos, a correspondência escolar, a aula-passeio, a imprensa, a classe cooperativa…

E o curioso, que sempre fui, quis saber por que razão Freinet quase não “dava aula”. Fui até Paris, ao encontro dos seus discípulos. 

Foi, sobretudo, devido a uma “deficiência” que Freinet se libertou de atavismos. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam “dar aula”. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, foi com os alunos para fora dela. Arejou a sua escola e provocou correntes de ar novo em muitas outras. 

Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais! – por razões que a razão desconhece, a sala de aula passaria a ser mero objeto de museu da pedagogia. 

Mas, um século decorrido sobre a origem da “Escola Moderna”, a quase totalidade dos professores possuía pulmões de aço, que lhes permitiam falar alto (e até gritar) em sala de aula.

Pouco antes da realização da quinta CONANE, dois dos maiores teóricos desse tempo – Pedro Demo e António Nóvoa – afirmaram a necessidade de acabar com o trabalho em sala de aula. 

Os mestres Pedro e o António (escrevi “mestres”, porque “doutor” qualquer um poderia ser) eram para mim referências de honestidade intelectual. Para além de outras virtudes e defeitos (de perto, ninguém é normal) eles encarnavam a coerência freiriana.

Esses bons amigos reuniam duas qualidades que eu apreciava: um rigor científico a toda a prova e uma ação tão exigente como compassiva, por se saberem professores entre professores. 

Para eles, a teoria e a ação educativas eram duas vertentes indissociáveis. Na exploração de seus temas de estudo, faziam uso de instrumentos teóricos heterogêneos, em busca de conclusões que não estivessem evidentes na superfície dos fatos. Porque o “evidente” quase sempre mentia. Não era assim, António?

No tempo da Quinta CONANE, os projetos que eu acompanhava tinham ido muito além do “deixar de dar aula”. Eram esboços de uma nova construção social. E, numa conferência, que eu ajudei a criar, esperava encontrar exemplos de inovação. 

Embora pudesse utilizar outros indicadores, parâmetros e critérios de avaliação de projetos, o critério-base de aferição seria a presença, ou ausência, do dispositivo central do instrucionismo – a sala de aula. 

Saturado de embustes e paliativos instrucionistas, na véspera da minha partida para Brasília, era enorme a expectativa. Levava na bagagem muita esperança – a V CONANE dizia ser a “CONANE da Esperança” – e uma interrogação: iria encontrar “alternativas” e exemplos de “nova educação”? 

Assisti às apresentações dos projetos selecionados. Vos direi o que vi e ouvi.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXIX)

Aeroporto Santos Dumont, 9 de março de 2043

No mês de março de há vinte anos, a Nasa divulgou a descoberta de um asteroide e alertava para o risco de atingir a Terra em 2046.

O Serviço de Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço do governo norte-americano indica que há chance de o asteroide colidir com o planeta em 14 de fevereiro de 2046, o que significa que, daqui a três anos, poderá acontecer-nos o que aconteceu com os dinossauros. E tudo aquilo que, porfiadamente, tentamos alcançar deixará de fazer sentido. Todas as causas, todos os idealismos, todos os projetos humanos se dissiparão numa fração de segundo. Inclusive, as questiúnculas em torno das ciências da educação.

Porém, enquanto os cientistas tentam desviar o asteroide da rota mortal, vos continuarei a contar estórias do tempo da CONANE.

Ontem, a propósito da comemoração do Dia Internacional da Mulher, eu dizia que o evidente… mente. Este trocadilho foi usado pelo amigo António, num dos seus livros, no tempo da pós-verdade. Nos idos de vinte, o que era “evidente” mentia. Ou, como diria o amigo Rui, quando se analisa um rolde necessidades que o sistema engendra, deveremos tentar perceber quais as necessidades que estão por detrás das necessidades enunciadas. 

“Temos que sair da sala de aula!” – assim falava o amigo António Nóvoa, que um jornal referia como “referência global em educação, reitor honorário da Universidade de Lisboa, ex-embaixador da Unesco e com outros encômios mais do que justos.

A notícia dava conta de uma palestra sobre o papel da escola no ensino do futuro, tema que o António tratara num livrinho chamado “Escolas e Professores: Proteger, Transformar, Valorizar”. 

Para o António, doutor em Ciências da Educação e História, doutor honoris causa em instituições de diferentes partes do mundo, nenhum desses títulos era tão importante como o de professor. Nas décadas de oitenta e noventa, e, depois, no Brasil do início deste século, acompanhei a sua saga de anunciador de uma educação de novo tempo. 

Recordo-me, em particular, de uma conversa que tivemos com alunos da Universidade de Brasília, lado a lado, junto ao Quiosque do Chiquinho, questionando uma universidade que ainda “dava aula”.

Numa entrevista, Nóvoa defendia que o lugar dos alunos não era mais em sala de aula, que a escola deveria passar por uma metamorfose que envolvia a criação de novos ambientes educativos. Então, sendo o António considerado uma das maiores referências pela universidade desse tempo, por que seria que a universidade (e, em particular, nos cursos de ciências da educação) continuava “dando aula”?

Conheci o António na Universidade do Porto, quando cursava o primeiro curso de ciências da educação. Ele havia publicado a obra “Le Temps des professeurs”, que eu li e reli no original (ou não fora ter-me apaixonado pela professora de francês…). Estávamos na década de oitenta, uma década após os meus embates com a burocracia ministerial.    

“Temos que sair da sala de aula”, defendia António Nóvoa, “referência global em educação” – Assim mesmo! Com todas as letras. 

Volvidos cinquenta anos após as minhas quezílias com a burocracia ministerial, após meio século de ter deixado de trabalhar em sala de aula, o ex-embaixador da Unesco pregava mudança radical envolvendo a estrutura de ensino.

Nos idos de vinte e três, o amigo Nóvoa emitia um apelo, no sul do Brasil: “Queremos que o aluno trabalhe. E a sala de aula é feita para o professor trabalhar”.

Mas, parecia que o amigo Nóvoa falava chinês e escrevia em Braille. 

Nos auditórios onde proferia palestras, os “ouvintes” seriam surdos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXVIII)

Maricá, 8 de março de 2043 

Neste dia de há vinte anos, era comemorado mais um “Dia Internacional da Mulher”. E o que havia para comemorar? Pequenas conquistas, ou o aumento do feminicídio? 

No fundo baú das velharias, achei notícias publicadas nos jornais desse dia:

“Mulheres negras voltam a alisar cabelos após críticas e relatam pressão sobre a própria imagem”. 

“Ações trabalhistas que citam assédio sexual crescem 200% desde 2018”.

“Cúpula da República teve uma mulher para cada dezesseis homens após redemocratização e segue masculina”.

Evidentemente, esse tipo de efeméride era criada na tentativa de chamar a atenção da sociedade para desigualdades gritantes. Mas o evidente… mente.

Os alunos da Ponte foram os primeiros a receber o galardão da Bandeira Azul da Europa, pelo seu papel na defesa do Meio Ambiente. E, todos os anos, participavam nas comemorações do “Dia Mundial do Meio Ambiente”.

O Programa Bandeira Azul teve início, à escala europeia, em 1987, integrada no programa do Ano Europeu do Ambiente. Com o apoio da Comissão Europeia, tinha como objetivo, elevar o grau de consciencialização dos cidadãos em geral, e dos decisores em particular, para a necessidade de se proteger o ambiente.

A data de 5 de junho – “Dia Mundial do Ambiente – fora escolhida por ocasião da Conferência de Estocolmo, realizada em 1972, que discutiu a questão do impacto humano sobre o meio ambiente, num encontro patrocinado pela Organização das Nações Unidas, com a finalidade de aumentar a visibilidade e as discussões sobre a causa ambiental.

Quatro anos depois, as nossas crianças envolviam-se em projetos de erradicação de lixeiras, de recolha seletiva de lixo, de despoluição de um rio. Num tempo em que, raramente, se ouvia falar de tais assuntos, na capa de um dos jornais da escola, com data de 1977, surgia a pergunta: “O que é a poluição?”

As crianças propunham medidas de regeneração das águas do Rio Vizela, antes que houvesse ministério do ambiente. 

Recebemos a visita da Comissão Nacional do Ambiente. Os técnicos conversaram com as crianças, num encontro memorável. E a televisão fez dois documentários, exemplos de cidadania ativa.  

Mas, o rio continuava poluído e as ruas, cheias de lixo. E o assunto era recorrente nas agendas das reuniões da Assembleia da Escola.

Anualmente, a câmara municipal organizava um desfile de alunos das escolas portando cartazes com frases e figuras alusivas à defesa do Ambiente. Os alunos da Ponte participaram no desfile, até ao dia em que se aperceberam que estavam a ser utilizados e que nada mudava. Usando de senso crítico, as crianças decidiram não aderir à comemoração do “Dia Mundial do Ambiente”. Escreveram em ata: 

“Para nós, todos os dias são dias do ambiente”. 

Nos idos de vinte, era grande o meu cansaço perante a sucessão de notícias que davam conta do descalabro da educação e dos trágicos efeitos de uma escola sem sentido. O meu cansaço advinha de ter de escrever para denunciar, quando desejaria mais anunciar. 

José Saramago, que exerceu o ofício de escritor com a consciência de um cidadão e a visão ampla de um verdadeiro intelectual, deste modo apontava as raízes do drama escolar e social:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”. 

A escola democrática do Darcy, a escola berço de cidadania do Anísio demorava a chegar. Havia quem impedisse. Amanhã, vos falarei de inovadores, de conservadores e de… impostores.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXVII)

Maricá, 7 de março de 2043

Estávamos em 2023. Rumo a Brasília, para participar na CONANE, ultimei uma “lista de verificação” daquilo que de “alternativo” havia sido feito em dez anos. 

Na primeira das conferências, elaborara uma proposta de critérios de avaliação de supostas “inovações”. E, na posição de observador atento, iria aferi-la, tendo por referência um artigo do Mestre Pedro. Não irei transcrevê-lo integralmente, apenas usarei alguns excertos. 

“Abordo a proposta do processo formativo sem cronometragens artificiais em anos, séries, ciclos. A mania de cronometrar processos não físicos, como aprendizagem, é resquício positivista instrucionista, que recua à gestão “científica” de Taylor, quando cronometrou, tintim por tintim, processos produtivos e modos de os agilizar.

Os nomes variaram historicamente muito. Houve a época da escola que fazia alfabetização, e depois um “ginásio”. Este virou depois “ensino médio”, precedido de um ensino fundamental. Com a LDB, temos outras etapas cronometradas, começando por “educação infantil” (enquanto o fundamental e o médio são “ensino”, a infantil é “educação”!) 

A cronometragem aparece em tudo, ademais. O ano tem dois semestres. O ensino fundamental passou de oito para nove anos, um gesto de total irresponsabilidade, já que só piorou os anos finais, ficando por isso mesmo. 

A alfabetização demora 3 anos (dos seis aos oito anos) – o Governo tentou reduzir para 2, mas as prefeituras não aceitaram. Chamou-se a isto de “idade certa” para alfabetizar, à revelia dos alfabetizadores mais lúcidos, como Magda Soares, que consideram alfabetização um processo vital interminável. 

Segundo a ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização), os resultados deste tipo de política educacional (Pacto pela Alfabetização na Idade Certa) são absolutamente pífios: na média, metade se alfabetiza em três anos; muitos estados ainda devem mais de 80%. 

Os dados indicam uma escola “analfabeta”, inepta como alfabetizadora e que, neste imbróglio inacreditável, deturpou a expressão da LDB da “progressão continuada” (direito de avançar na escola, aprendendo) para “progressão automática”, fenômeno estapafúrdio do estudante que vai “caindo para cima”, sem aprender. 

“Anos de estudo” perderam totalmente o sentido, porque é uma cronometragem fraudulenta: chega-se ao fim do ensino médio analfabeto em matemática. Amém. 

Houve época em que “ciclos” pareciam a salvação da lavoura, ao invés de anos sequenciais, apenas para encobrir a mesma fraude do descuido com a aprendizagem. 

Uma das noções mais tolas é postular que alfabetização se complete aos oito anos. Gostamos de encenações formalistas e burocráticas, apenas para encobrir nossa inapetência escandalosa em termos de cuidar da aprendizagem dos estudantes. 

Uma das cronometragens mais fraudulentas é a aula de 50 minutos, um padrão nacional dogmático, fundamentalista, intocável. Não faz nenhum sentido, nem mesmo se fosse para só transmitir conteúdo. 

Sendo aprendizagem fenômeno aberto e complexo, 50 minutos não é referência para nada, representando apenas uma visão tacanha de escola/fábrica que monta peças cronometradas. Não existem aprendizagem de 50 minutos, nem leitura, nem produção de conhecimento, nem autoria. Mas a escola é tudo e só isso!”

Juntei este naco de prosa a outras contribuições, para a elaboração de um critério: qualquer projeto que mantivesse intacta a segmentação cartesiana e a tradicional padronização do tempo não poderia ser considerado “alternativa”, nem contribuiria para uma “nova educação”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXVI)

Campinas, 6 de março de 2043

Há vinte anos, era frequente este tipo de notícia:

Ex-modelo é encontrada morta e com o corpo carbonizado, em Cotia. De acordo com as investigações feitas pelas Delegacia, Aline teria caído em uma armadilha armada por outra mulher.

Mais dois feminicídios ocorreram no DF, totalizando oito casos este ano. Letícia, de 25 anos, foi espancada até a morte pelo namorado. Rayane, de 18, foi estrangulada pelo companheiro.”

Quem teria criado tais monstros? Teriam nascido assassinos, ou teríamos sido nós (educadores), as famílias e a sociedade que os engendrou? Talvez tenha sido o… “sistema”.

“Diarista desabafa sobre ser proibida de esquentar comida na casa de cliente: Nas redes sociais, ela contou que o cliente teria dito que os aparelhos domésticos eram só para os moradores da casa. 

Comentário da diarista: “Não adianta ser doutor e não ter educação’”

Pois não! Naquele tempo, havia “doutores” racistas, sucedâneos de um “sistema” reprodutor de desigualdade social.

“Aluna de escola cívico-militar do DF sofre racismo religioso. Após a negativa da jovem de retirar um colar que traz referências religiosas, um tenente do colégio tentou remover o adorno à força do pescoço da aluna.” 

Pois é! Nesse tempo, um sistema de ensino autoritário engendrava fundamentalismo religioso. 

Em 2023, o Brasil comemorava “uma descida no número de homicídios”, uma “descida” para mais de 40 000 homicídios por ano. O que se comemorava? A violência simbólica de um sistema de ensinagem moralmente corrupto?

“A Polícia Federal prendeu nesta quarta-feira o ex-ministro da Educação, por suspeitas de envolvimento em corrupção e tráfico de influência durante sua gestão à frente do Ministério. Também cumpre mandados de busca e apreensão e prisão contra pastores-lobistas. A Procuradoria-Geral da República informou, em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, que havia um trabalho de “cooptação de prefeitos” no suposto esquema para liberação de verbas do Ministério da Educação.”

Naquele tempo, eram comuns notícias como aquelas que aqui vos deixo. Máfias de merenda, de transporte, de livro didático e outras quadrilhas se instalavam num sistema eticamente corrupto. E ainda havia quem o mantivesse. E ainda havia professores “dando aula”, fingindo ensinar alunos, que fingiam que aprendiam. E ainda havia quem sustentasse o “sistema”, quem o alindasse com projetinhos. E ainda havia quem os financiasse. E ainda havia quem organizasse concursos de “Professor Nota 10” e afixasse nas paredes das escolas vergonhosos “quadros de excelência”. 

A voz do Mestre Pedro clamava pelo abandono de um “sistema” que não prestava, nem era sanável. Mas não se fazia escutar. 

Esse “sistema”, “um equívoco encalacrado em sua própria reprodução”, mantinha-se, em parte, devido ao “cinismo de dirigentes” e ao “mascaramento dos problemas”. Obscuros interesses se perenizavam e a reelaboração da cultura pessoal e profissional dos professores era adiada. 

A propósito, o Mestre Pedro escrevera:

“Impressiona o quanto a pedagogia instrucionista é arraigada, formando um consenso aterrorizante. Existe o temor do novo.”

Na primeira metade de dois mil e vinte e três, o temor do novo se dissipou nas práticas de muitos educadores. O processo de desmonte do “sistema” começava nos encontros de formação das manhãs de sábado. Melhor dizendo, o desmonte do “sistema” começou muito antes, em setenta e seis, numa escolinha do norte de Portugal. 

Nada se repete, mas havia uma referência, também, no Brasil. Vos contarei estórias da sua história.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXV)

Olinda, 5 de março de 2043

Nos idos de vinte, foram muitos os dias em que quase estive para desistir da vida que levava. Desgastava-me em longas viagens, desperdiçava os meus parcos recursos num afã desgastado por pequenas e grandes deslealdades. 

Eram dolorosas aquelas que vinham “de dentro” e que punham em causa a autonomia dos projetos. Fundamentado na lei e numa ciência prudente, eu reivindicava o exercício de autonomia administrativa e pedagógica. Quando me sentia hesitar, a quase desistir, recomeçava, valendo-me da inestimável solidariedade do Mestre Pedro. 

Queridos netos, sempre optei por não publicar escritos que a mim se referiam. Mas, já lá vão vinte anos, creio não ser necessário mantê-los confidenciais. Aqui vos deixo escritos do Mestre Pedro, pedindo-vos desculpa por falarem de mim. 

“A luta do Professor. Pacheco é para que seja viável a autonomia da inovação comprometida com a aprendizagem do estudante. Primeiro, porque a LDB assegura; segundo, porque não existe aprendizagem sem autonomia, já que sua dinâmica central é “autoria”; terceiro, porque é função constitucional: frequenta-se escola para aprender, não para perder tempo e recursos.

No entanto, na prática os sistemas temem o Professor Pacheco, porque percebem de imediato que a inovação proposta derruba o sistema atual. Mostra, ao fundo, a inutilidade das atuais burocracias. Existem para atrapalhar.

Os burocratas deveriam agir de outra forma: cobrar resultados. Nunca fazem isso, porque só cobram as formalidades. E o Ideb é um saco imenso de maus resultados e não redunda em nenhuma mudança significativa.

Pacheco não quer autonomia a qualquer custo, como doação. Primeiro, é direito. Segundo, propõe-se mudar para que a escola seja “constitucional” (republicana e democrática), ficar dentro da lei.

Sua proposta tem a confiabilidade de anos de experiência e de êxito visível, também internacional. Não é aventureiro. Aventureiras são as secretarias que são franco-atiradores, burocráticas encardidas, ocupam cargos conforme a onda dos chefes e dão ordens sem nexo.

A “comunidade de aprendizagem” é um fenômeno construído meticulosamente, contando com todas as energias disponíveis, movendo a todos na escola e nos arredores, transparente, com apelo constante de avaliação externa irrestrita – ou seja, algo sumamente ajuizado e comprovado. Mesmo assim, como agride ao sistema de ensino, para o sistema é preferível matar a mudança em seu nascedouro. Seria insuportável uma escola autônoma!

Fizemos um PNE (Plano Nacional de Educação para 10 anos). De tão malfeito, enjambrado mal e porcamente no país, fantasiado como movimento debaixo para cima (popular), já não vale mais. Ficou sarcástico a cada ano justificar por que não deu certo. É que foi feito para não dar certo! Como o próprio sistema de ensino atual. 

Todos queremos 10% do PIB em educação, mas não neste sistema inútil. Não sabemos ainda valorizar o professor, que se mantém como uma marionete instrucionista na escola.

Aprender mal deve ser absoluta exceção, resíduo. Os professores comandam a escola sob este compromisso: garantir a aprendizagem dos estudantes. Professores seremos, se tivermos a mínima capacidade de argumentar e contra-argumentar. Não existe interesse em professores “eunucos”, que não o serão por liberdade de expressão, mas por manipulação desabrida.

Diriam muitos que não somos – ainda – uma república ou uma democracia. Por que não se pode discutir isso na escola? É fundamental discutir isso, mas em termos pedagogicamente corretos: discutir sem doutrinar.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXIV)

Araguari, 4 de março de 2043

Nos idos de vinte, eu temia que, quando se dissipasse a crise pandêmica, a normose regressasse e não houvesse um “novo início”. Talvez os educadores não tivessem entendido a mensagem do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de mudança no sistema político, econômico, educacional. Talvez não tivessem entendido a subliminar mensagem e se perdesse a oportunidade de fazer o que, já há mais de cem anos, precisaria ser feito. 

Tal como o vírus, o sistema de ensinagem possuía grande capacidade de adaptação. E a administração educacional usava artifícios virtuais, para prolongar a agonia do “sistema” e os seus trágicos efeitos. 

Irei servir-me de mais uma metáfora, estabelecer um paralelo com a situação de “conservantismo”, que se vivia nos idos de vinte.

No “hino da alegria” – a “Ode An Die Freude”, magistralmente musicada por um surdo – o coro canta: 

Alegria, formosa centelha divina! Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam onde teu doce voo se detém.”

Nesse poema, Schiller apelava à prática de ideais como a liberdade, a paz e a solidariedade. Ideais partilhados com um Beethoven, que viu censurada a sua obra. 

Na primeira apresentação da Nona Sinfonia, os “tradicionalistas” chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. Nesses tempos sombrios, os detratores do génio opunham-se a que se cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a alegria é a filha querida dos deuses”.

Dois séculos decorridos, “tradicionalistas” e “conservantistas” recorriam a um novo tipo de fundamentalismo pedagógico, assente na funcionarização da profissão de professor.  

No submundo das escolas da sala de aula. os professores funcionarizados diziam não poder mudar as suas práticas porque deveriam “cumprir ordens recebidas dos seus superiores hierárquicos”. 

A escola “prussiana” do século XVIII, que havia atingido a sua máxima expressão nas escolas do Terceiro Reich, fazia sentir os seus efeitos nas escolas do século XXI. No Julgamento de Nuremberg, os comandantes dos campos de extermínio, também, diziam “ter cumprido ordens dos seus superiores hierárquicos”. 

Urgia preservar os projetos, protegê-los do controle exercido por professores funcionarizados e seus “superiores”. E, se a necessidade aguça o engenho, nada mais fácil do que recorrer aos saberes do Mestre Pedro, que inspirou a redação de um termo de autonomia.

Em Portugal, o projeto da Ponte consolidou-se a partir da celebração de um contrato de autonomia, pelo que, no Brasil, efetuamos a entrega de minutas de termos de autonomia à administração e à direção das escolas. Seriam negociadas à luz de artigos da LDBEN (nomeadamente, o 15º) e da Meta 19 do PNE.

Assim falava o amigo Pedro, nos artigos que me enviou, para me ajudar a contornar obstáculos à criação de comunidades de aprendizagem:

“A autonomia que Pacheco quer é a de poder mudar a proposta pedagógica, saindo do instrucionismo e voltando-se ostensivamente para o direito de aprender do estudante. Por isso alega ele que a escola atual está fora da lei. 

Está, sim! E flagrantemente. Na escola onde se aprende matemática em apenas 7.3% (média nacional em matemática em 2015 no ensino médio), temos desobediência escabrosa à Constituição e à LDB. 

O burocrata vai exigir as “aulas”, porque está no papel; não se dá ao trabalho de verificar que não prestam para nada. Bastaria observar os dados que o próprio MEC produz. Como é “pau mandado”, usa o mesmo pau para mandar. Mantém o instrucionismo vigente e facilmente exacerba o fracasso escolar.”

(continua)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXIII)

Uberaba, 3 de março de 2043

No início do século, entre a minha casa de Portugal e a Fundação Síndrome de Down de Campinas, a minha relação com o amigo Rubem se foi fortalecendo. E eu fui aprendendo e apreendendo o “Povo Brasileiro” do Darcy. 

Não sei se já vos disse que foi por ver o Rubem emocionado, de lágrimas nos olhos, que dele me aproximei, naquele dia mágico da sua presença na Escola da Ponte. Quando vejo um homem chorando de emoção, ele alcança o topo do meu ranking de humanidade.

A Europa quase desconhecia a obra do Rubem. Na tentativa de o dar a conhecer aos portugueses, o Ademar providenciou a publicação de alguns dos seus livros. Um deles – “A Alegria de Ensinar” – foi dado à estampa na editora do amigo Matias, a mesma que publicou as minhas “Cartas para Alice”. Aqui vos deixo um pouco desse livro, com a recomendação de que o leiais.

“Pensar é voar sobre o que não se sabe. Quando eu era menino, na escola, as professoras me ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. 

Ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as ideias que moram na cabeça do pintor. São as ideias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançar sobre a tela.

Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre. Somos pobres em ideias. Não sabemos pensar. Nisto nos parecemos com os dinossauros, que tinham excesso de massa muscular e cérebros de galinha. 

Hoje, nas relações de troca entre os países, o bem mais caro, o bem mais cuidadosamente guardado, o bem que não se vende, são as ideias. É com as ideias que o mundo é feito. Prova disso são os tigres asiáticos, Japão, Coréia, Formosa que, pobres de recursos naturais, se enriqueceram por ter se especializado na arte de pensar.

Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?” Disse-me que ‘esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque, se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. 

O pensamento é como a águia que só alça voo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.

Memória: um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos legaram. E elas são boas. Tão boas que elas nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre mares desconhecidos.

Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se de águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas universitários.

Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o passado legou, fazem os alunos se esquecer de que o seu destino não é o passado cristalizado em saber, mas um futuro que se abre como vazio, um não-saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-se então que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se ensina o que se sabe, deve chegar o tempo quando se ensina o que não se sabe.”

Com o amigo Rubem, construí a “escola das perguntas”. 

 

Por: José Pacheco

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