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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMII)

Mira-Sintra, 10 de junho de 2042

Enquanto Diretora-Geral da Educação Básica, a minha amiga Teresa fez parte da comitiva do Presidente da República, quando este visitou a Escola da Ponte. Mas fugiu dos lugares de honra, escapou dos holofotes da imprensa:

“Fui-me deixando ficar discretamente para trás, pois sempre detestei os atropelos deste tipo de visitas em que as pessoas se acotovelam para ficar junto dos ilustres e, consequentemente, na mira dos jornalistas, prestando bem pouca atenção ao contexto. 

Remeti-me, pois, a um lugar discreto e visitei a escola contra a corrente, isto é, procurando os espaços menos invadidos pela horda de acompanhantes e onde poderia escutar aquilo que a escola e os seus habitantes tinham para me dizer.”

A Teresa não buscava respostas. Apenas pretendia confirmar com perguntas aquilo que acreditava a Ponte fosse.

 No “Memorial do Convento “, Saramago escreveu: “Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”. Armada de perguntas, a Teresa deambulou pela escola, atenta aos mínimos pormenores.

“Num dos espaços destinados aos computadores, duas crianças, inteiramente autónomas, de idades diversificadas, entreajudam-se no desenvolvimento da pesquisa que estavam a efetuar e que se prendia com aspectos ligados à indústria local — meninos de olhar vivaço, camisolas estampadas de feira e mãos ágeis nos computadores.

Num dos pisos de área aberta três professoras, que entendi desenvolverem funções previamente combinadas entre si, iam acompanhando as crianças que circulavam no espaço, individualmente ou em grupos, de acordo com as suas necessidades e o tipo de trabalho que desenvolviam; as professoras eram suporte provocador, andaime sólido, guia atento — mulheres comuns de meia idade, postura serena e discreta. 

Instada por mim a pronunciar-se sobre o seu trabalho, uma das professoras afirma: «Este é um trabalho que não se realiza apenas das nove da manhã às três da tarde; é um trabalho que não pode ter horários rígidos, que nos envolve por completo. Mas… sabe? Eu não quero outra coisa! Estou aqui há mais de 10 anos e sou uma professora feliz!» 

Desço para a sala polivalente onde se tinha iniciado a assembleia de escola. Desta vez não sou discreta e furo a multidão para poder ver a assembleia. Vantagem de ser pequena: fico quase atrás do Senhor Presidente que já estava a ser interpelado de forma assertiva por um rapazinho que não teria mais de 8-9 anos e que lhe falou de algumas das necessidades da escola. 

Uma menina completa a exposição do colega com exemplos práticos e incisivos. Se a memória não me falha, tratava-se da necessidade urgente de construir um campo de jogos aberto a crianças e famílias. 

Jorge Sampaio não resiste em agarrar no microfone e conversa com as crianças e os pais, dispostos ao fundo da sala. Depois de interpelar as entidades responsáveis da administração e da autarquia no sentido de apoiar o desejo formulado pelas crianças, fala de cidadania, de participação, de tomada de responsabilidades em mãos, do poder que nos assiste de poder melhorar a escola e mudar a sociedade. Mesmo quando se tem apenas 5 ou 10 anos de idade.

Estas pinceladas etnográficas são modestas memórias de quem andou contra a corrente pela Escola da Ponte, quiçá à procura de um sentido para as suas próprias perplexidades de burocrata

Aquela escola era uma lição de prática teorizada, de uma prática viva. Era uma escola formadora que, encontrada uma legislação (ou a sua aplicação) sensível e enquadradora, poderia potenciar a sua experiência de modo a induzir e multiplicar a inovação. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMI)

Agualva-Cacém, 9 de junho de 2042

Quando se tratava de ajudar a preparar projetos de comunidade, os contatos tinham de ser feitos presencialmente, “olho no olho”, que o não-verbal pouco se enxergava na tela de um computador, em rostos projetados nos retangulozinhos dos encontros virtuais. Eu precisava de sentir verdade nas intenções.

Acreditando nas intenções e na generosidade da Conceição e da Isabel, fui até Mira Sintra. Por lá, me apercebi de que era genuíno o propósito de mudança. E me senti como o aprendiz de inovações que fui, na década de setenta. 

Foi no junho de há vinte anos, que preparei materiais e um convite dirigido a educadores éticos – que ainda os havia! – para um ano de transformações com vista à fundação de uma nova construção social de aprendizagem e educação.

Por essa altura, vieram à memória as falas de quem nos visitava, quando atravessávamos um período de idênticas e profundas transformações. Era evidente a surpresa expressa no rosto dos educadores-visitantes e nos seus depoimentos. Na década de noventa, foi a vez de governantes e pesquisadores encontrarem na Ponte matéria para realização de mestrados e doutoramentos.

Nas últimas cartinhas, tenho optado por dar voz a esses ilustres visitantes. Desta feita, conhecereis a Ponte pela voz da Teresa Vasconcelos. O texto que nos enviou tinha por título: “Para que não interrompamos o projeto”. Começava por citar Ítalo Calvino. Do livro “As Cidades Invisíveis” extraíra este naco de prosa:

“À pergunta: — Por que demora tanto tempo a construção de Tecla? — os habitantes, sem deixarem de içar baldes, de soltar fios de prumo, de mover para baixo e para cima longas trinchas, respondem: — Para que não comece a destruição.

Que sentido tem o vosso construir? Pergunta (alguém). Qual é o fim de uma cidade em construção senão uma cidade? Onde está o plano que seguem, o projeto? Mostrar-to-emos assim que acabar o dia; agora não podemos interromper-nos — respondem.”

Numa escrita sensível, a Teresa assim continuava: 

“Foi na semana por Jorge Sampaio dedicada à educação: 18 a 24 de janeiro de 1998. Exercia então funções como Diretora-Geral da Educação Básica. No dia 19, 2ª feira, telefonaram-me para o Porto, onde me encontrava em serviço, para que, na manhã seguinte, integrasse a comitiva do Senhor Presidente, no dia por ele dedicado ao tema Cumprir a Escolaridade Obrigatória

Assim, manhãzinha cinzenta e nevoenta de 3ª feira, visitávamos a Escola nº 1 de Vila das Aves, conhecida entre nós pela Escola da Ponte, fazendo parte integrante do programa a participação de Jorge Sampaio na Assembleia de Escola. 

Como etnógrafa das coisas da educação que sou, independentemente das funções que então desempenhava, acompanhei a comitiva, mas fui-me deixando ficar discretamente para trás, pois sempre detestei os atropelos deste tipo de visitas em que as pessoas se acotovelam para ficar junto dos ilustres e, consequentemente, na mira dos jornalistas, prestando bem pouca atenção ao contexto. 

Penso que a intenção do Senhor Presidente ao convidar uma responsável da administração educativa para integrar a comitiva era que eu aprendesse com a visita e, eventualmente, me deixasse interpelar pelo que via. Remeti-me, pois, a um lugar discreto e visitei a escola contra a corrente, isto é, procurando os espaços menos invadidos pela horda de acompanhantes e onde poderia escutar aquilo que a escola e os seus habitantes tinham para me dizer. Dessa visita relembro, ainda hoje, alguns flashes etnográficos.

Amanhã, vos darei a conhecer os “flashes” que, discretamente, a Teresa colheu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CM)

Vila Nogueira de Azeitão, 8 de junho de 2042

Netos queridos, para isto me deu, para partilhar memórias, que só entre avô e netos pode acontecer. Mesmo longe, o encontro acontece. Dizia um autor do tempo dos livros de autoajuda, que não havia longe nem distância. Era um escritor de nome Bach, que criou a personagem central das cartinhas para vós enviadas, no início do século: a gaivota. 

Certamente, ainda guardais dois livrinhos escritos para encurtar a distância entre um avô andarilho e dois netos crescendo no “longe e na distância”. Hoje, creio que já ninguém se lembra deles. Mas, o “Para Alice com Amor” chegou a constar da bibliografia de cursos de Pedagogia – Vede lá! E o “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos” inspirou a minha amiga Janaína, que dele fez uma maravilhosa peça de teatro. 

Voltando à Terra… Naquela tarde de domingo montemorense, a conversa e a cerveja fluíam no Jardim dos Cavalinhos. O Hugo trouxera o seu violão, mas eu faltei ao encontro. Aconteceu que, chegadas de Évora, a Rita e a Vera requeriam a minha atenção, precisavam de ajuda, que o vosso avô não poderia recusar. Apesar do cansaço e sem beneficiar de feriados ou fins de semana livres de canseiras, o périplo de junho se expandiu. Voltei à estrada. 

Na companhia da Carina e da Sílvia, conversei com o Luís, para que os filhos dessas maravilhosas (e preocupadas) mães pudessem beneficiar de uma educação do século XXI. As escolas da Quinta do Conde não poderiam ficar à margem de uma mudança, que começava a tomar forma. Nem ignorar o que uma escola portuguesa havia conseguido fazer e que o amigo Ilídio assim comentava:

“Na minha atividade de investigador, um dos objetivos que procuro não perder de vista é o de promover um pensamento reflexivo e crítico que tenha em conta os constrangimentos e as possibilidades da ação humana. 

Os diversos contatos que tenho mantido com as escolas e os professores têm revelado uma enorme descrença em relação às possibilidades de transformação da escola, nos seus aspectos mais substantivos. Surgem, porém, nesses contatos, momentos em que os professores encaram essas possibilidades a partir de experiências inovadoras que observaram. E a Escola da Ponte é a que é referida mais frequentemente. 

Já participei em diversos encontros onde a experiência da Ponte foi apresentada e pude observar o grande entusiasmo e interesse demonstrados pelas pessoas presentes, não apenas professores, mas também alunos, pais, autarcas, investigadores e outros interessados nas questões educativas. 

Em ações de formação contínua e em cursos de formação inicial, costumo referir e suscitar a reflexão em torno de experiências inovadoras que existem no nosso e noutros países. Mas amiúde são os próprios participantes que referem o exemplo da Ponte, quer porque já ouviram falar dela, quer porque já a visitaram. 

A Escola da Ponte e o seu projeto educativo assumem, por isso, redobrada importância. Importância para todos quantos nela têm estado envolvidos diretamente, mas também como símbolo de esperança e de coragem para todos os que levam a sério o desafio de repensar a escola e o sentido do trabalho escolar. 

O projeto educativo da Escola da Ponte é um símbolo de esperança. Assume um grande desafio, face à dificuldade ainda maior de transformar o trabalho escolar assente numa realidade segmentada, de estrutura disciplinar. 

Na cartinha de ontem, deixei-vos uma pergunta. Se a Ponte correspondia àquilo que o Ilídio escrevia, por que razão não havia mais escolas como aquela? 

Nos idos de vinte, a resposta foi dada por milhares de educadores. E na prática!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIX)

Coruche, 7 de junho de 2042

Por finais do século XX, duas obras me marcaram profundamente. Uma da autoria do amigo Nóvoa: “Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas”. A outra escrevera-a o Boaventura: “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”. 

Na sua releitura e entre outras contribuições para o reconhecimento da minha ignorância, reencontrei bases da crítica da “pedagogia predial”. Lauro a fizera, na década de sessenta. E o amigo Ilídio a retomara, quando se apercebera de que apenas uma escola P3 – creio que dela vos falei – conseguira manter-se fiel aos princípios do modelo de “escola de área aberta”.

Sabe-se lá por que critérios (científicos!), o Ministério da Educação criara as “escolas básicas integradas” e já cometera o crime de transportar e encaixotar crianças em megalómanos “centros educativos”. Nas aldeias do interior de Portugal já não havia crianças e os antigos edifícios escolares apodreciam. E o Fernando assim dizia:

“Apesar da matéria de tipologias de rede escolar já estar esgotada no debate educacional e de, ao longo das duas últimas décadas, já ter esgotado a paciência de muitos autarcas, gestores escolares, professores e outros atores do sistema escolar, elas continuam a ser apresentadas pelos responsáveis do Ministério da Educação como prioridades educativas

Tal não significa que a tipologia de uma escola não seja aspecto irrelevante; o que significa é que a questão se torna relevante apenas quando inserida num projeto educativo que não fique refém dos aspectos de morfologia. 

Esta é a característica essencial do projeto da Escola da Ponte — quando pretende desenvolver uma experiência de integração dos três ciclos do ensino básico —, mas paradoxalmente é com base em argumentos de natureza gestionária e de mera morfologia que a continuidade desse projeto é ameaçada pelos responsáveis pelo Ministério da Educação. 

Este projeto representa, assim, um exemplo de coragem que deveria ser apoiado por todos, a começar pelos responsáveis pelo ministério. No entanto, ao invés de o apoiarem e incentivarem ameaçam a sua continuidade. Tal posição põe a nu a hipocrisia que tem caracterizado o discurso sobre a Educação. 

O discurso tem sido fértil em referências à autonomia da escola, à gestão flexível do currículo, ao trabalho em projeto, à educação para a cidadania etc., mas as posições concretas do ministério relativas à Ponte mostram que se trata apenas de um discurso balofo. 

Se se tratasse de genuínas intenções, o projeto educativo da Escola da Ponte não seria silenciado. Pelo contrário, seria encarado como um caso exemplar de práticas e experiências de autonomia, de gestão flexível do currículo, de educação para a cidadania, de trabalho em projeto, de vivência democrática. Com a diferença de, no caso da Escola da Ponte, não se tratar de palavras ocas como as que têm invadido os textos das sucessivas e desacreditadas reformas educativas.

Sobre o que está em causa, o subtítulo de uma obra de Boaventura de Sousa Santos – contra o desperdício da experiência – é elucidativo. No período que estamos a viver, em que é visível uma enorme descrença nas possibilidades de mudança da escola e das práticas educativas e um grande desalento dos professores, a experiência da Escola da Ponte não pode ser desperdiçada. Sob pena de deixarmos de acreditar que é possível construir mudanças em educação e pela educação.” 

O Fernando encontrara resposta para uma pergunta, que, muitas vezes, eu escutara:

“Por que não há mais escolas como a Escola da Ponte?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVIII)

Montemor-o-Novo, 6 de junho de 2042

Recordo bem o primeiro fim de semana do junho de há vinte anos. Incansável, a Caetana andava num rodopio entre o belo local onde a bondade da Cristina nos tinha acolhido e a preparação dos encontros em que viríamos a decidir sobre o nosso papel nos caminhos que a educação montemorense tomaria. Prestes a concluir-se tempos perdidos, era tempo de criar condições de ultrapassar velhos condicionalismos e levar a bom porto uma desejada e sempre adiada mudança educacional. O tempo das reformas reformadas findava.

Como vos disse numa cartinha anterior, o artigo que o meu amigo Ilídio redigiu, quando estávamos no início deste século, mantinha-se atual, nos idos de vinte.

Se não, vejamos:

“Mesmo falando-se muito, atualmente, em autonomia da escola, é a gestão que tem estado no centro das preocupações das escolas e dos agrupamentos de escolas, designadamente com a instalação de órgãos, com a realização de muitas reuniões e com a elaboração de documentos escritos, como os regulamentos e os projetos. 

Se bem que as preocupações com a gestão da escola já viessem da década anterior, designadamente em torno da ideia de gestão democrática, é no contexto da reforma educativa iniciada em Portugal em meados da década de 80 que se instala no debate educacional, o conceito de gestão: o novo modelo de gestão, o regime de autonomia e gestão, a gestão local da escola, a gestão da rede escolar, a gestão curricular, a gestão pedagógica, a gestão de recursos.

Os diversos documentos que têm que elaborar – o regulamento interno, o projeto educativo, o projeto curricular etc. –, os aspectos morfológicos da composição dos órgãos de gestão da escola e as questões da rede escolar, expressas por exemplo nas preocupações com as modalidades de agrupamentos de escolas –horizontais ou verticais – invadiram as preocupações dos professores, em detrimento dos assuntos respeitantes às atividades, aos saberes e às aprendizagens escolares.

No período recente, embora sejam abundantes as referências às políticas de autonomia e de gestão local da escola, as estruturas da administração do Ministério da Educação têm criado um verdadeiro corrupio nos contextos da ação local. Por exemplo, o projeto transformou-se numa das principais preocupações da escola, mas apenas nas suas dimensões formais e instrumentais. 

Como temos vindo a observar, os professores viram-se obrigados a elaborar o projeto educativo de escola, o projeto curricular de escola, o projeto curricular de turma, e outros, mas em grande medida assumindo esse trabalho como um processo administrativo de elaboração de documentos escritos exigidos pela Administração e pela Inspeção. 

Do mesmo modo, no âmbito da reorganização curricular, as novas áreas – a Área de Projeto, a Formação Cívica e o Estudo Acompanhado – tendem a ser encaradas como modas, como mais uma disciplina a leccionar, como uma forma de intensificação do seu trabalho.” 

Anos a fio, o ministério tinha mandado às malvas o disposto na Lei de Bases. Os critérios de natureza científica eram letra morta. Usando critérios de natureza administrativa (e, autoritariamente, burocráticos), os legisladores insistiam em reproduzir pedagógicos vícios ornados de novas roupagens.

Quando, no Conselho Nacional de Educação, redigi o Parecer sobre uma proposta de lei que incluía a Formação Cívica, a disciplina de Preparação para a Cidadania, eu perguntara se os jovens apenas seriam cidadãos uma hora por semana, se não poderiam ser cidadãos na aula de Matemática, ou na Educação Física… 

Ninguém respondeu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVII)

Montemor-o- Novo, 5 de junho de 2042

Em cartinhas anteriores, manifestei temor de escrever a história de uma escola, que ajudei a construir. Temia ser inexato, vê-la com olhos viciados de emoção. Muito menos, desejaria misturar a imaginação à descrição de uma pedagógica viagem de mais de meio século. Por isso, deixei que fossem outros a definir lhe os contornos – olhares externos eram, muitas vezes, mais aguçados do que os meus. 

É por isso que ouso, mais uma vez, convidar o Fernando para contar as “impressões” das suas visitas à Ponte e os estudos que por lá fez. 

“O tipo de investigação que tenho privilegiado nos últimos anos – a pesquisa etnográfica – tem-me permitido manter um contacto e uma presença direta e prolongada em contextos educativos concretos, de envolvimento em projetos, de participação em ações de formação, de visitas a escolas, de entrevistas com alunos, professores, pais, autarcas, gestores escolares e outros atores educativos, que tenho construído um conhecimento por dentro da vida das escolas.

Mas nem sempre esse conhecimento tem sido fruto da investigação mais estruturada e planificada. Frequentemente, tem sido nas situações mais informais, de conversa com as pessoas, nas quais escuto, mais do que faço perguntas, que esse mundo se revela com maior clareza. 

A cultura da performatividade competitiva gera sentimentos de culpa, incerteza e insegurança ontológica: 

Estarei a trabalhar bem? Estarei a trabalhar o suficiente? Estarei a trabalhar no sentido certo? Será isto que querem que eu faça?” 

Ora, esta insegurança tende a gerar uma fantasia encenada para ser vista e avaliada; o espetáculo e a opacidade tendem a sobrepor-se à transparência e à autenticidade. 

Estes mecanismos têm gerado a ideia, no interior das escolas e entre os professores, de que as mudanças educativas lhes são exteriores. Isto é, tendem a ser encaradas como assuntos de gestão e da exclusiva responsabilidade dos administradores e dos gestores, em relação às quais os professores que trabalham quotidianamente com os alunos parecem considerar-se alheios ou apenas atores secundários. 

A mudança tende a ser encarada como um mero jogo nominalista, como se não houvesse outra mudança para além da alteração dos nomes. É o caso, por exemplo, da passagem da área escola para a área de projeto, ou dos currículos alternativos para a gestão flexível do currículo

Mas estas mudanças não têm penetrado no âmago do trabalho escolar. Pelo contrário, o entendimento da mudança como uma mera alteração dos nomes é não apenas inibidor da transformação do trabalho pedagógico como é também legitimador da conservação das práticas tradicionais. Isto é, para sobreviverem profissional e institucionalmente no clima de urgência criado pelas reformas educativas, as escolas e os professores tendem a esconder as suas práticas e a preocupar-se mais com a produção de discursos pedagogicamente corretos em conformidade com os temas do momento das reformas educativas.

A caracterização que António Nóvoa fez da situação atual dos professores e da educação escolar é bastante elucidativa. O período recente tem sido marcado, como diz, pelo «excesso de discursos» e pela «pobreza das práticas» e por um pensamento que se projeta num «excesso de futuro» como forma de justificar um «défice de presente»

O amigo Nóvoa isso escrevera em 1999! Nos idos de vinte, as suas palavras mantinham-se atuais. Em Portugal, era divulgado o relatório do projeto de “Autonomia e Flexibilização Curricular”. Na Unesco se dava a conhecer um relatório sobre os “Futuros da Educação”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCVI)

Azeitão, 4 de junho de 2042

Conheci a Sandra, o João e o Martim, num tempo em que já quase desistia de andarilhar. Acolheram-me num lar feito de simpatia e de saber cuidar, num lugar onde a Fabi se abrigou das intempéries da vida e se lançou na construção de comunidades.

No junho de há vinte anos, deixei a Fabi e a Jana na margem sul do Tejo, entregues aos seus destinos, e rumei ao norte, ao encontro do que restava da Escola da Ponte. O Fernando a descreveu de um modo bem peculiar, quando a viu “repensando o sentido do trabalho escolar”, em contraste com “a lógica de reforma como mecanismo inibidor da transformação da escola”: 

“A lógica de reforma é avessa às experiências inovadoras que escapam à sua obsessão pela uniformidade e pelo controlo. Ignorando o valor dessas experiências, a lógica de reforma impõe-lhes enquadramentos legais, aplica-lhes decisões e inviabiliza lhes projetos, acabando muitas vezes destruí-las.

Frequentemente, esses enquadramentos e decisões são apresentados como uma espécie de desígnio nacional, com base no argumento de que é necessário proceder a reformas. Acontece, porém, que, apesar da difusão de slogans como em cada escola fazer a reforma ou a escola no centro das políticas educativas e da retórica da autonomia da escola, da possibilidade de as escolas construírem um projeto educativo próprio, da necessidade da participação de todos os interessados no processo educativo, as reformas educativas conduzidas pelo Ministério da Educação têm-se desenvolvido quase sempre em função de crenças, interesses e estratégias muito particulares, parecendo por vezes mais o resultado de um capricho do que de um processo de produção de políticas públicas. 

Sendo, embora, apresentadas como reformas, as ditas decisões tornam-se, na realidade, muito voláteis. E é, em grande medida, esta volatilidade que está na origem do desalento que se vive hoje no interior das escolas, face à constatação de que essas reformas intensificaram o trabalho, mas não em benefício da construção de uma escola com sentido.

As reformas educativas são frequentemente apresentadas como um desígnio nacional, com base no argumento de que o país está atrasado, de que tem pela frente o desafio da modernização e de que é necessário proceder a reformas estruturais. 

Porém, as tecnologias políticas de reforma educacional não são apenas veículos para a mudança técnica e estrutural; são também mecanismos que contribuem para a mudança das subjetividades, das identidades e dos valores. 

Sob a aparência de liberdade criada pela retórica da devolução de poderes, da flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo que impregnam as subjetividades dos professores e afetam as condições de trabalho e de vida nas escolas. Estas tecnologias – o mercado, o gerencialismo e, particularmente, a performatividade –, põem em causa a colegialidade e a autenticidade dos professores.”

Com sábias palavras, o Fernando partia da experiência da Ponte, para construir uma argumentação capaz de demover o ministério de nefastas intenções. Apesar de descrever a Escola da Ponte como “símbolo de esperança e de coragem”, o seu olhar atento desocultava subtis processos de desconstrução que, mais tarde, viriam a revelar-se em autoritárias decisões ministeriais.

Nas primeiras duas décadas deste século, a pretexto de introduzir alterações no aparato legal e de relançar velhas reformas, a descaraterização do projeto da Ponte foi tentada e, em parte, conseguida por políticos sem escrúpulos apoiados pela administração educacional. 

E voltei à Ponte.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCV)

Palmela, 3 de junho de 2042

Há alguns anos, andando por terras da margem sul, saboreando o esplêndido projeto concebido pela amiga Elsa e com ele muito aprendendo, instaram comigo para que escrevesse a história da Ponte. 

Nunca me atrevi a fazê-lo, nem a farei. Era uma tarefa ingrata, porque ela não se deixava historiar. Os “desvios de rota” – pelo menos, era assim que eu interpretava alguns “descaminhos e inações” – não me permitiam descrevê-la estática. Fiquei pela redação de artigos dispersos, esperando que alguma boa alma os quisesse organizar. E foi isso que aconteceu.

A partir da década de oitenta, a nossa escola foi objeto de curiosidade. Milhares de visitantes ali rumaram, talvez em busca de inspiração. Depois, foi objeto de estudo. Afinal, reconhecer-se-ia que a Ponte tinha sido a primeira escola a conseguir “ir além do Bojador”, como diria o Fernando, que foi Pessoa e dezenas de heterónimos. 

No início do século, outro Fernando assim se referia à Escola da Ponte:

“Conversas revelam, muitas vezes, um conhecimento diferente — um conhecimento da escola vista de fora, por quem não vive no seu seio e para quem ela se apresenta como uma realidade mais estranha. E este conhecimento da estranheza é essencial, sobretudo quando o que está em causa é uma realidade que tende a ser encarada como naturalmente boa independentemente das suas práticas e experiências concretas. 

Poderia contar vários episódios reveladores deste tipo de conhecimento, mas refiro aqui apenas uma conversa recente com um casal jovem que tem uma filha de seis anos que acabou de entrar na escola. 

Como outros pais e mães, estes estão interessados na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles não estão apenas interessados, como já estão também bastante preocupados, apesar de a menina só ter entrado para a escola há duas ou três semanas. Contavam-me, receosos, que a professora lhes dissera que a filha estava atrasada no i. Poderíamos discutir amplamente o significado desta expressão, que é profundamente reveladora de concepções e práticas de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu próprio ter verificado que a criança identificava e desenhava o i perfeitamente. Durante a conversa, pude perceber, no entanto, que não era isso que estava em causa. Estar atrasada no i significava que a criança não escrevia tantas linhas de iiiii quantas a professora pretendia. 

Este episódio ilustra uma das características mais enraizadas da forma escolar tradicional – o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetição – que as sucessivas reformas educativas das últimas décadas conduzidas pelo Ministério da Educação não conseguiram alterar, apesar de tanta retórica e de tanta legislação produzidas. 

Neste período, têm-se desenvolvido, apesar de tudo, experiências que questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da repetição não é uma fatalidade e que é possível construir uma escola com sentido para os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar.

A Ponte é, talvez, o exemplo mais marcante de uma escola com sentido que nasceu e se desenvolveu no período democrático em Portugal, com a qual temos muito a aprender. E é possível aprender com ela, não apenas nas suas dimensões endógenas, mas também sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras decisões do Ministério da Educação que frequentemente criam dificuldades, inviabilizam e até destroem experiências e projetos inovadores, tal como está a acontecer hoje em relação ao projeto educativo da Escola da Ponte.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIV)

Quinta do Conde, 2 de junho de 2042

Queridos netos,

À distância de vinte anos, tudo nos parece um sonho mau. Mas, na verdade, não se tratava de um sonho, mas de dura realidade. No mês de maio de há duas décadas, na América dita civilizada, um jovem de nome Salvador matava a “sangue-frio”, com extrema crueldade, vinte e uma crianças e duas professoras. 

Numa escola primária de um recôndito lugar do Texas, Salvador esperara, metodicamente, pelos seus dezoito anos, para comprar as armas com que iria cometer tal atrocidade. Comprou-as, imaginou tudo em pormenor, serviu-se de informação disponível na Internet, treinou os passos da tragédia, como se estivesse a jogar “Call of Duty”. 

Nas redes sociais anunciou o que ia fazer. Depois de tentar matar a sua avó, saiu de casa, entrou na escola e, numa sala de aula idêntica à que fora sua, executou crianças indefesas. 

Numa viagem para o sul, entrou no comboio um grupo de professoras. Sentaram-se junto de mim. Por isso, não pude deixar de escutar conversas. Começaram por comentar a situação na Ucrânia. Depois, manifestavam surpresa perante mais um massacre numa escola. E, sem entender a ligação causa-efeito, passaram ao comentário do insucesso de um projeto, de entre muitos que o ministério, desde há muitos anos, patrocinava. 

Uma delas, que disse “estar a fazer doutoramento”, recorria a termos colhidos num qualquer compêndio de ciências da educação e as colegas escutavam-na com visível reverência. Aplaudiram-na quando ela se referiu num tom crítico e destrutivo ao chamado “Projeto MAIA”. Desdenhava do “Plano do Aluno”, da “Ficha Formativa”, das “grelhas” e de outros afazeres, que o dito projeto impunha a professores cansados de “planificar”, de “aplicar fichas” e de “preencher grelhas”.

“Eu tenho lá tempo para isso! Já chega a papelada de final de ano, as reuniões de avaliação e tudo o resto. Agora, está na moda a avaliação por rubricas e as competências modelo Maia. E a avaliação formativa. Pois é! Modas que se vendem e professores que as compram. Não alinho. À falta de melhor, há o google. E não está à venda nem na moda” (sic). 

Não entendi, por completo, a lenga-lenga daquelas professoras. Mas fiquei surpreendido por perceber que confundiam avaliação com classificação e não faziam ideia alguma de como se praticava avaliação formativa.

Entretanto, a conversa mudou de tom e, pouco a pouco, as professoras se foram remetendo para o isolamento social, de atenção centrada no écran (na tela) dos seus telemóveis (os celulares do Brasil). Perto delas, viaja uma multidão silenciosa de estudantes alheia ao que se passava à sua volta, concentrada num contínuo bater de teclas. 

Para me distrair de conversas sem conteúdo, também liguei o meu ifone. E, como não havia coincidências, mas sincronicidades, logo deparei com palavras da Conceição, descrevendo aquilo que chamou de “exemplo gritante”: 

“Mês de junho. 2.º momento de avaliação formativa, decidido em departamento. 

Estudo do Meio 17 de junho; matemática 22 de junho; português 23 de junho. Ora o 2.º ano de escolaridade tem provas de aferição (avaliação externa) a 15 de junho (Português/Estudo do Meio) e a 20 de junho (Matemática/Estudo do Meio). Os professores da minha escola recusam a ideia de prescindir da avaliação interna e os miúdos de 7/8 anos estarão sujeitos a duas semanas de Fichas de Avaliação: 15, 17, 20, 22 e 23 de junho. 

Ridículo e até obsceno no meu entender. Estou sozinha nesta discussão. Porque o calendário da avaliação formativa foi aprovado em departamento e porque de outro modo não poderão atribuir notas “com rigor” aos alunos.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIII)

Arruda dos Vinhos, 1 de junho de 2042

Quando um ministro dizia que “muita coisa” melhorara, que o “sistema melhorou”, o que teria melhorado? 

Não dizia. Quanto muito, no campo da educação, diria que já todos os meninos iam à escola. E essa afirmação equivalia a fazer um elogio fúnebre da “massificação” do ensino. Pois, como diria o amigo João: 

“Antigamente, eles não iam a escola. Agora, apanham-nos lá dentro e reprovam-nos. Afastam-nos com processos disciplinares. Mandam-nos para centros de explicações, para aulas suplementares de mais do mesmo. Envia-os para a educação de adultos, ou para escolas de “segunda oportunidade”.

No Portugal dos idos de vinte, o modelo educacional prevalecente na maioria das escolas era o mesmo de duzentos anos antes, ainda que enfeitado de computadores e projetinhos, um instrucionismo disfarçado de comunidade de aprendizagem, de ensino híbrido ou de outras modas pedagógicas 

À margem do irresponsável e dispendioso aventureirismo ministerial, uma escola logrou emancipar-se do modelo instrucionista. Foi reconhecida como a escola mais inovadora do país, recebeu a visita do Presidente da República, foi-lhe atribuída a mais alta condecoração que uma escola pode receber: a comenda da ordem da instrução pública. Como se não bastasse, foi distinguida com um contrato de autonomia, que lhe permitia concretizar uma efetiva gestão flexível do currículo e até selecionar professores que assumissem valores e princípios do seu projeto. 

O exemplo dessa escola poderia inspirar o ministério e contribuir para evitar uma hecatombe escolar. Ela resistiu quanto pode. Ao cabo de alguns anos, roubaram-lhe a autonomia, retiraram-na da comunidade onde nascera, isolaram-na em território hostil.

Quem me perguntava por que razão eu fora embora do meu país, sabia a resposta. Sobrevivera um cansaço de dezenas de anos de confronto com a burocracia instalada no ministério. Porém, há exatos vinte anos, declarações de um ministro e de um secretário de estado, que eu bem conhecia, devolveram-me algum ânimo. E pedidos de ajuda, provindos de familias, autarcas, escolas, diretores, me fizeram voltar. 

A súbita euforia seria decorrente da situação vivida durante a pandemia? Seria uma tardia tomada de consciência?

Por essa altura, o amigo Domingos assumia a presidência do Conselho Nacional de Educação. A Presidente cessante, a Maria Emília, assim se referiu à escola de que vos falo nesta cartinha:

“Num colóquio, a alguém que lamentava os professores da escola da Ponte por “terem que ser missionários”, respondeu José Pacheco: “Antes missionários, que demissionários!” (…) Parece haver consenso quanto à necessidade de busca de novas formas de escolarização e de organização escolar, de adequação a novos paradigmas de mudança. E por que é importante a experiência da Ponte? 

Em primeiro lugar, como um exemplo possível duma escola pública diferente, que desnaturaliza algumas características da escola tradicional e quer ter em conta as mudanças económicas, políticas e tecnológicas ocorridas ou em curso e, ao mesmo tempo, reforçar e desenvolver as suas qualidades democráticas e democratizadoras. 

Em segundo lugar, como um ensaio de modos de inovar que sejam desejados e construídos pelos próprios interessados, designadamente pelos professores, a partir da escola, da sua situação, dos seus atores e parceiros. 

Em terceiro lugar, como uma concretização de uma teoria e de uma prática de formação de professores baseadas “no exercício profissional em contexto, combinando a ação e a reflexão coletivas”.

 

Por: José Pacheco

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