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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXII)

Vassouras, 3 de janeiro de 2042

Queridos netos,

No dealbar da “Idade da Educação”, o vosso avô desgastava-se em constantes viagens e reuniões. Despendi o mês de fevereiro de vinte e dois numa sucessão de encontros e desencontros. No dialogar com a Magda, a Paula, com outros secretários de educação, gestores e professores, tentava não-desesperançar. Ganhava novo alento, quando recebia mensagens como o amargo e, também, esperançoso e-mail da Bruna:

“Olá, caro amigo, como vai?

Começamos, hoje, mais um ano letivo. A expectativa, como sempre, é das melhores: novas possibilidades, novos alunos, novas relações, um novo tempo para aprender e para viver juntos. No entanto, logo na primeira reunião administrativa realizada com as gestoras da escola, somos surpreendidos com uma votação estranha. Confesso que momentos democráticos são muito apreciados por mim, ainda mais sendo tão raros como são na instituição em que trabalho. Mas, nesse caso e pelo objetivo da votação, fiquei muito triste e até mesmo surpresa com o resultado.

As gestoras colocaram em pauta a execução de planejamentos de aula idênticos para todas as turmas de mesmo ano. Ou seja, todos os primeiros, segundos, terceiros, quartos e quintos anos, como também a educação infantil, deverão aplicar atividades iguais para os tantos diferentes alunos. 

A justificativa para essa decisão é, segundo elas, que se trata da mesma escola, na qual os alunos devem receber as mesmas atividades, que os pais comparam planejamentos quando são diferentes e que, além disso, fica mais fácil para os professores, ficando menos atarefados, dividindo as atividades a serem planejadas, um planejando para a turma do outro (a qual nem conhece) sequências didáticas sem fim e sem sentido. 

O que mais me surpreende é que do grupo de mais de 40 professores, apenas eu e mais uma professora votamos contrárias a essa prática, defendendo a observação dos interesses das crianças, seus desejos e suas histórias de vida.

Parece uma história do século passado. Infelizmente é de 2022. O sentimento que me toma é a tristeza. Como podem educadores optarem por uma prática reprodutiva e sem nenhum sentido, que se distancia tanto da ciência da educação? Como podem educadores optarem por ações tão contraditórias aos documentos e à legislação educacional? Sinceramente, acho que morri mais um pouquinho, hoje. Mas logo ressuscito, novamente, assim que me encontrar com as crianças e ouvir tudo o que elas têm para me contar.

Outra coisa que me entristece é que o motivo dessa votação é evidente. Pretendem que, de uma vez por todas, eu deixe de insistir em aprender com os meus alunos, de planejar com eles e fazer pesquisa a partir do que eles se interessam. Impõem que passe a aplicar planejamentos iguais. Afinal, a maioria assim decidiu. 

É uma luta dolorida escapar da reprodução, reprodução e reprodução… Esses últimos anos têm sido um desgaste tão grande, que quase meus sonhos escorrem pelas mãos. O tempo gasto, batendo de frente com práticas arcaicas, demonstrações de autoritarismo, ouvindo ofensas contra as crianças e professores, poderia mudar vidas, se fosse utilizado para discussões pedagógicas, científicas coletivas. 

 Concretizar a Lei de Bases, como você bem citou na entrevista publicada no DN do dia 23/01/22, está cada vez mais distante da minha realidade. Enquanto isso, continuamos driblando o poder, sempre com esperança. 

Muito obrigada, por compartilhar seus pensamentos, suas ideias e inquietudes de forma tão corajosa. E, além disso, por nos dar o privilégio da escuta.

Um abraço!

Professora Bruna.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXI)

São Bento do Sul, 2 de fevereiro de 2042

Nos idos de vinte, António Nóvoa, insistia em falar “Da Pedagogia e dos Pedagogos:”:

O pedagogo existe na zona de encontro entre a prática e a teoria. A sua palavra não lhe vem apenas da experiência, mas é nela que encontra o seu sentido. O seu pensamento não é uma mera especulação teórica, mas antes um esforço para refletir sobre a ação educativa. A escrita pedagógica define-se neste entre-dois e alimenta-se da procura de um “terceiro lugar” para falar das coisas educativas.
Só há ensino, quando as crianças aprendem. Ser pedagogo é acreditar na possibilidade de educar todas as crianças, sem nunca esquecer que só há ensino, quando alguém aprende. Ser pedagogo é não se contentar com a obrigatoriedade da instrução e tudo fazer para que haja aprendizagem. Ser pedagogo é valorizar a cultura, uma cultura que se inscreve numa pessoa, contribuindo assim para a sua formação.

Contrariamente a uma opinião corrente, os pedagogos são os maiores defensores da cultura, porque são eles que a promovem diariamente junto das gerações mais novas. A missão essencial do educador é apresentar o mundo aos que chegam: é deles a primeira palavra. Mas o processo formativo tem como finalidade permitir a cada um “dizer-se pessoa”: a última palavra pertence aos educandos.

A pedagogia como exercício de intervenção cívica. Os percursos pedagógicos definem-se pela insatisfação face ao estado da escola e pela busca de novos caminhos. Quando os outros desistem, os pedagogos continuam teimosamente a querer formar todos os alunos, evitando a exclusão e o “apartheid”. Quando os outros se resignam, os pedagogos associam-se coletivamente para, na partilha de experiências, encontrarem as respostas úteis e necessárias.

Uma atenção permanente à formação de professores. Quando se estudam os textos pedagógicos, desde meados do século XIX, deparamo-nos com uma atenção permanente às questões da formação de professores. Não há pedagogo que, num ou noutro momento da sua vida, não tenha participado na organização ou na dinamização de programas de formação inicial ou contínua de professores. Eles sabem, melhor do que ninguém, que o esforço de educar, enquanto esforço de cultura e de relação humana, depende acima de tudo da competência e do talento dos mestres”.

Os discursos do amigo Nóvoa eram música para os ouvidos. Nóvoa era hábil no uso da palavra, da palavra-substância, coerente com o que de valioso o discurso das ciências da educação aportava. Repetiria esse discurso ao longo de décadas de congressos e formações. Muitos o ouviam. Raros eram os que o escutavam. 

Como explicar a falta de “pedagogos” e de “antropogogos”? Cadê o “esforço para refletir sobre a ação educativa”, se a “especulação teórica” permanecia apanágio de universitários ociosos?

Cadê as evidências de que se acreditava na possibilidade de educar todas as crianças? Nos idos de vinte, a ensinagem não gerava aprendizagem, mesmo que o índice de decoreba da educação chegasse a ser dez. E a pedagogia (praticada!) não era exercício de intervenção cívica – a última palavra não pertencia aos educandos. 

Mas, em algo o amigo Nóvoa tinha razão. Nesse tempo, havia quem manifestasse insatisfação face ao estado da escola, havia quem buscasse novos caminhos. Quando a maioria desistia de agir, educadores teimosos ajudavam a evitar a exclusão, não se resignavam, agiam.

Encontrei-os em São Bento do Sul, decorria o mês de fevereiro do já distante dois mil e vinte e dois. Com eles partilhei experiências. Com eles reaprendi a encontrar respostas úteis e necessárias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXX)

Mendes, 1 de fevereiro de 2042

A clarividência do Darcy conduzira-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujos ações iam na contramão da história. Esse malfadado projeto de escola e sociedade estava escancarado nas alocuções de palestrantes de um congresso realizado entre janeiro e fevereiro de há vinte anos. 

Inscrevi-me. Escutei. Entre salamaleques e mútuos elogios, supostamente, se debatia a “educação básica”. Mas, de que “educação básica” se trataria? Eu apenas ouvia falar de “regresso às aulas”, de velhos “novos normais”, de “híbridos” e de outros paliativos instrucionistas. Estoicamente, escutei o “mais do mesmo” à mistura com alguns disparates. Quando a paciência se esgotou, desliguei. Restou inquietação: o que estariam o Celso, o Pedro e o António a fazer naquele “festival de horrores”?

Dez anos antes desse infeliz evento, a minha amiga Jaqueline organizara as velhas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Ela nos dizia que a escola, face às exigências da Educação Básica, precisava ser reinventada. Deveriam ser priorizados “processos capazes de gerar sujeitos inventivos, participativos, cooperativos, preparados para diversificadas inserções sociais, políticas, culturais, laborais e, ao mesmo tempo, capazes de intervir e problematizar as formas de produção e de vida”. A escola tinha, diante de si, o desafio de sua própria recriação, pois os rituais escolares eram “invenções de um determinado contexto sociocultural em movimento”. 

Projetos são compostos de valores, decorrem da adoção de princípios, traduzem visões de mundo, de sociedade e de… escola. Com base nesse pressuposto, a Jaqueline coordenou um programa chamado “Mais Educação”. A proposta educacional da escola de tempo integral visava “promover a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas e o compartilhamento da tarefa de educar e cuidar (…) alcançar a melhoria da qualidade da aprendizagem e da convivência social, e diminuir as diferenças de acesso ao conhecimento e aos bens culturais, em especial entre as populações socialmente mais vulneráveis”.

No tempo em que a palavra era fonte de mal-entendidos, se eu pronunciasse a palavra “escolas”, a maioria dos meus ouvintes, mentalmente, representava as “escolas” como prédios feitos de salas de aula e solidões. E eu pretendia que compreendessem que escolas eram pessoas jamais sozinhas. Se eu pronunciasse a palavra “projeto”, entenderiam que eu não estava a referir-me ao plantar uma horta, muito menos a uma “aula de meditação” de um “projeto para apaziguar hipercinéticos”? Face à dificuldade de me fazer entender, resolvi redigir um glossário. Eis como definia “escolas” e “projeto”.

“Escolas” são pessoas, que aprendem umas com as outras. que aprendem no contexto de uma organização social dotada de autonomia, em todo e qualquer lugar com potencial educativo. Pessoas aprendem na intersubjetividade, no vínculo estabelecido com um objeto de estudo e com mediadores. 

Implícita ou explicitamente, as pessoas são os seus valores. Estes, quando transmutados em princípios de ação, são geradores de projetos. E, em espaços de aprendizagem, dentro e fora de um edifício escolar, pessoas empreendem caminhos de reelaboração da sua cultura pessoal e profissional. 

No último dia de janeiro de vinte e dois, fui até ao lugar onde Darcy, quarenta anos antes, lançara o seu projeto de Educação Básica. Fui ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a retomar o rumo sugerido pela Jaqueline, e a celebrar o legado de Darcy. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIX)

Vassouras, 31 de janeiro de 2042

Entre os anos setenta e oitenta, uma rotina se repetia. Viagem de quase oito horas de comboio, para chegar a Lisboa. Da estação de Santa Apolónia seguia para o ministério. Longas esperas por suas excelências, breves reuniões gastas em diálogos de surdos. 

Lembro-me bem dos olhares de desdém e da manifesta ignorância dos altos funcionários ministeriais. Ainda hoje, sinto – e já lá vão mais de cinquenta anos – o desprezo com que nos tratavam. E o seu autoritário “Sou seu superior hierárquico, não esqueça!” A força da razão era derrotada pela razão da força.

Algo mudou, por volta de 1986. No seu artigo 45º, a Lei de Bases estabelecia que na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. Nos idos de vinte, o 45º já era o 48º. As revisões que a lei sofrera não afetara essa “pétrea cláusula”. Porém…

Como devereis estar recordados, falei-vos do encerramento de escolas com menos de vinte alunos, sem que qualquer fundamento de “natureza pedagógica e científica” sustentasse tal decisão. Se critérios houvesse, o que explicaria a manutenção em funcionamento dos “centros educativos”, cuja ratio era inferior a dez? Apesar da publicação dos famigerados decretos 54 e 55, ilegalidades foram cometidas, muitos projetos foram descaracterizados e destruídos, mercê do ostracismo a que a lei foi votada. 

Já muito se tinha escrito sobre a primeira escola que efetivara a transição de práticas do paradigma da Instrução para práticas do paradigma da aprendizagem. Mas, quase meio século decorrido sobre a rutura operada, seria necessário repensar as práticas instituídas e relançar os projetos que, entretanto, se inspiraram na Ponte, para que a todos fosse garantido o direito de aprender. 

Voltei a Portugal para isso mesmo: para aprender. Aprender como se integraria o que de útil poderíamos retomar do paradigma da instrução e da aprendizagem, juntando-lhes contribuições do paradigma da comunicação. Pudemos contar com o apoio de meia centena de educadores organizados numa equipe, que viria a ser origem de um “movimento”. Eram pessoas com formação experiencial suficiente para dialogar com aqueles que, na universidade, teorizavam o que no chão da escola se fazia. 

Milhares de estudos tinham sido desenvolvidos em torno da Ponte e do Projeto Âncora. Para terdes uma ideia do impacto desses projetos, aqui vos deixo o título de uma tese de doutoramento realizado na Universidade de Paris Nanterre: 

La pédagogie du sud: Analyse de l’émergence d’une nouvelle éducation au Brésil à travers le parcours de José Pacheco”

Para sublinhar que inovações nasciam no sul, nela se afirmava: 

« José Pacheco cite Helena Singer et sa définition d’innovation, qui met l’accent sur l’importance d’aligner éducation et utilité sociale: Innovation est tout ce qui est créé par les personnes et les communautés, basé sur des recherches, des connaissances, avec une méthodologie claire de la réalité dans laquelle ils vivent, afin de faire face aux défis, qui sont vécus dans leur contexte».

Em Portugal, também surgiam projetos com potencial inovador. Na estabilidade política resultante de um ato eleitoral, esperava-se do novo governo condições de mudança educacional. Educadores portugueses decidiram juntar os seus esforços aos do sul. Foi intenso o intercâmbio de saberes e do saber-fazer operado a partir de meados de 2022. 

Eu ia fazendo a minha parte, tentando que duas oceânicas margens se aproximassem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVIII)

Cordeirinho, 30 de janeiro de 2042

Decorria o já distante janeiro de vinte e dois. No último domingo desse mês, os portugueses foram a votos, para escolher novo governo. As propostas dos partidos, no campo da educação, eram paupérrimas. Eram a negação de princípios constitucionais. Iam na contramão de uma corajosa iniciativa da secretaria de Maricá. Ofendiam a memória de insignes educadores e políticos como Darcy. Veja-se, por exemplo o que a “Iniciativa Liberal” propunha, no âmbito da “inclusão de alunos com necessidades especiais”:

“Os alunos com necessidades especiais devem ser enquadrados na escola de uma forma que atenda à gravidade das suas necessidades. Se essas necessidades foram compatíveis com um ritmo normal de aprendizagem – por exemplo, se forem de natureza motora – então os alunos devem ser incluídos em turmas normais.

Se, por outro lado, as necessidades especiais não forem compatíveis com um ritmo normal de aprendizagem – por exemplo, se forem de natureza cognitiva ou comportamental – então esses alunos devem ser inscritos em turmas especiais lideradas por professores e outros profissionais devidamente habilitados para lidar com essas limitações”.

“Enquadrados na escola (…) gravidade das necessidades (…) ritmo normal de aprendizagem (…) turmas normais (…) “turmas especiais”. Também no domínio da “inclusão”, os programas eleitorais dos partidos eram autênticos pesadelos. Os seus autores, certamente, não teriam lido a “Declaração de Salamanca”. Os políticos e “especialistas”, que os redigiram pareciam saídos das catacumbas pedagógicas da proto-história da educação.

“A crise da educação não é uma crise, é um projeto”, diria o Mestre Darcy. As suas obras sobre a identidade da América influenciaram estudiosos latino-americanos críticos da visão eurocêntrica presente nos estudos sobre os povos originários do Brasil e do sul. Darcy afirmava que, nos trópicos, havia uma outra forma de se viver e de sentir a vida. A Educação do sul não era o atraso, mas o futuro do mundo. E o futuro recomeçava em… Maricá.

Voltando a lugares onde tudo recomeçou, nesse janeiro, a prefeitura de Maricá lançava o projeto “Comunidade de Aprendizagem”. O lançamento do projeto inseria-se na celebração do centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Até ao 26 de outubro do já distante 2022, iniciativas várias impediriam a sua segunda morte: a morte da memória.

Numa sociedade atolada em fundamentalismos e negacionismos, um oásis feito de bom senso e esperança nascia. A iniciativa Secretaria Municipal de Educação visava “melhorar a aprendizagem, com mais diálogo e envolvimento de estudantes, pais e escola, na escolha dos processos educativos. Seis escolas foram selecionadas para um projeto-piloto, escolhidas de acordo com a sua localidade, faixa etária dos alunos e porque as gestoras tinham experiência com tempo integral”, explicou a secretária Adriana. 

O lançamento do projeto ocorreu na Casa Darcy Ribeiro, em Cordeirinho. As secretarias de educação das cidades de Vassouras e Mendes se fizeram representar. A secretária Magda Sayão e a secretária Maria Paula partilhavam as convicções da secretária Adriana: 

“A gestão tem que ser democrática e participativa de fato, e toda a comunidade precisa contribuir. Vamos quebrar vários paradigmas da comunicação, personalizando o aprendizado. Nossos alunos vão aprender efetivamente sobre aquilo que eles têm interesse e, por isso, a formação dos professores é essencial nesse processo”. 

E, mais do que partilhar convicções, também tinham decidido agir.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVII)

Flamengo, 29 de janeiro de 2042

Isto de ser velho não é tarefa fácil. Não há livro de instruções de aprender a envelhecer. E, num tempo em que não se pode perder tempo, gasta-se tempo a procurar o que se esquece. Hoje, esqueci o lugar onde guardei o remédio da ciática (espero que não seja Alzheimer…). Enquanto o procurava, achei um livrinho com o título “Quando for grande, quero ir à Primavera”. Escrevi-o em finais do século passado. Como o tempo passa!

Deitei os olhos ao prefácio escrito pelo Ademar. Ele encontrou no “naufrágio” a metáfora perfeita para descrever a crítica situação do sistema educacional desse tempo. Creio ser útil recuperar memórias:

“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. 

Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que, ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes), que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas. 

A última peça tocada pela banda (contou outro sobrevivente) foi o hino “Nearer My God to Thee”. Meia hora depois, os cinco músicos estavam mortos no fundo do oceano, talvez abraçados (uma pitada de lirismo fica sempre bem nestas evocações) aos seus maravilhosos instrumentos. Não era suposto que, na apertada agenda de salvação do Titanic, houvesse lugar para os artistas (que, de resto, viajavam em segunda classe)…

Como não vi o filme de James Cameron, não posso imaginar como a mais recente narrativa do naufrágio do Titanic tem vindo a passar, através do cinema, ao imaginário popular, quase noventa anos passados sobre a tragédia. Presumo que com doses elevadas de excitação romanesca (ia a escrever hollywoodesca). Mas os factos principais são conhecidos. A iminência da tragédia não desviou os músicos do cumprimento das suas obrigações profissionais. Eles tinham de tocar até à morte como sempre tinham tocado, desejavelmente, até que o navio – o mais seguro, inexpugnável e luxuoso dos transatlânticos jamais construídos – batesse no fundo do oceano. A música deveria anestesiar o pânico e o sofrimento dos que iam morrer… 

O naufrágio do Titanic, sabe-se hoje, estava desde o berço inscrito no seu patético destino de magnificência.  A sua tão apregoada insubmersibilidade não passava de um estúpido e perigoso slogan propagandístico. O aço com que foi construído, apurou-se muito mais tarde, era de baixíssima qualidade e vários erros grosseiros de concepção, que prenunciavam a catástrofe, tinham sido cometidos pelos projectistas. 

A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direcção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espectáculo; também ela exige as maiores provas de abnegação e subserviência aos seus profissionais; também ela, em situação de catástrofe, só está preparada para deixar salvar os passageiros que viajam em primeira classe; também ela segue, confiante e autista, a mais suicida das rotas”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVI)

Divinéia, 28 de janeiro de 2042

O meu amigo Alex dizia-se impressionado com a quantidade de tempo, dinheiro e energia desperdiçados no modelo de sala de aula tradicional. E citava a Marcelle:

“A sala de aula é um lugar cheio de pessoas ausentes”. 

Seres humanos apelidados de professor e aluno não estavam, realmente, ali. Estavam em outros lugares, “desejando, secretamente, viver, amar, rir, relaxar, “contribuir, criar, pertencer”.

Eis o que o Alex dizia:

“Salas de aula com jogos e projetos capitaneados pelo professor podem até “ativar” alguns dos alunos. Ainda assim, não são capazes de ativar a todos. Para obter a verdadeira presença, é preciso que adultos e crianças possam trazer o que está presente dentro de si: seus interesses, suas curiosidades, suas paixões, seus propósitos. É a partir desses presentes divinos que cada um de nós poderá criar suas jornadas mais potentes. Talvez eles não brotem instantaneamente depois de anos e anos de salas cheias de pessoas ausentes. É preciso algum tempo e, sobretudo, confiança para a anestesia ir embora”.

O Alex mostrava-se indignado com as tentativas de “mudar para que tudo permanecesse igual”. Na sua opinião, o uso da tecnologia, com ares de “inovação na educação”, na sua essência, não passava do recurso às ferramentas de reprodução das velhas e ineficientes práticas padronizadoras, com saberes fragmentados e decoreba como resultado final, adestrando mentes para passar em testes. 

Tentava-se maquiar a mudança necessária, transpondo do analógico para o digital, sem mudar o modelo educacional. O Alx resumia numa frase a situação vivida nos idos de vinte:

Não adianta ter a escola dos Jetsons com o modelo mental/pedagógico dos Flintstones”.

Na Internet, a Tânia conversava com o André sobre estórias inacreditáveis:

“Como o vídeo da criança a ser alimentada na creche à base de violência, ou uma tabela de “problemas de comportamento” e respetivas “medidas disciplinares”. Infelizmente, muitos outros eventos desse tipo acontecem nas nossas escolas.

Se toda a gente soubesse e tomasse consciência das micro violências cometidas, perceberia melhor o desrespeito que a escola tem pela criança, a pouca eficácia dos métodos de ensino, a necessidade urgente de fazer diferente.

Há que falar sobre estas coisas”.

No janeiro do Brasil de há vinte anos, a covid ainda açoitava um povo de corpo e alma fragilizado. Quando já se contavam por milhões as vítimas da pandemia, uma “nota técnica” do Ministério da Saúde brasileiro indicava o uso de hidroxicloroquina para o tratamento covid, rejeitando a vacina. Saltavam à vista os nefastos efeitos das “longas ausências em sala de aula”. Muitas crianças “ausentes” morriam. 

Na Europa do janeiro de 2022, um ginasta campeão olímpico e autor de posts antivacina morria vítima da Covid. Nos Estados Unidos, um líder negacionista falecia, vítima de Covid. A par com os desmandos negacionistas, crescia o espectro de uma guerra. Os norte-americanos rejeitavam propostas da Rússia, dizendo que a guerra na Ucrânia dependia do presidente russo. Moscovo prometia retaliar o Ocidente. Gente crescida brincava às guerrinhas, como se a terceira guerra mundial não pudesse ser a última das guerras. Nesse janeiro pré-eleitoral, eram feitas candidaturas e desfeitas alianças. E, num ano em que o povo passava fome, o fundo eleitoral atingia o recorde de quase cinco bilhões de reais. 

No contrafluxo da loucura generalizada, procurávamos modos de mitigar os efeitos perversos de um sistema educacional perverso. E eu encontrava na Divinéia um lugar de ficar, de viver. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXV)

Maricá, 27 de janeiro de 2042

Enquanto, em Portugal, despontavam comunidades, na margem sul do oceano, uma nova educação acontecia no exercício de uma cidadania de novo tipo, “decolonizante”, como, então, se dizia. Afinal, o Brasil era a terra do Milton, do Florestan, do Freire, da Nilde, de Nise, do Lauro, do Anísio, do… Darcy.

Movimentos suspensos nos anos sessenta ressurgiram. Secretarias de educação se reuniam, para suliar rumos de chegar a uma educação do século XXI. Constituídos “grupos de trabalho” encarregados de coordenar os processos de transição, se cuidava de oportunizar uma formação adequada aos educadores envolvidos na primeira fase de um plano de inovação. A par das transformações operadas, a base legal era revista e a sustentabilidade dos projetos repensada.

Foi-me conferido o privilégio de acompanhar esse movimento concebido por extraordinários seres humanos devotados ao bem-estar comum. O Alex e a Tina faziam parte do rol. Consciente da velhice do “novo normal” e de que era hora de ignorar professáurios e apoiar as iniciativas de professores éticos, a minha amiga Tina assim os saudava:

“Parabéns a todos os professores que não aceitam um “sempre foi assim” como negativa para a transformação da educação, que entendem que memorização não é sinônimo de aprendizagem, que têm a clareza de que a padronização gera exclusão e não igualdade de oportunidades, que não aceitam a robotização imposta por apostilas, que não enformam crianças, que exercem uma escuta empática e uma educação afetuosa, solidária e colaborativa, que não praticam uma educação bancária, em linha de montagem e nem tratam as crianças como tábulas rasas ou folhas em branco, que proporcionam que seus alunos sejam protagonistas e autônomos no processo de aprendizagem, que não se iludem com a “educação do futuro” e lutam pela melhoria da educação do presente. Parabéns a todos os professores que acreditam que é possível uma nova construção social pela educação humanizada, integral em comunidades de aprendizagem. Parabéns a todos os professores dedicados, que sofrem discriminação dos professores acomodados”.

Neste ato de corajosa escrita, nesta declaração de Amor, a Tina sintetizava o sentir dos seus pares.

Na Pluriversidade portuguesa, a voz crítica da Bárbara, investigadora em desenvolvimento comunitário e participação cidadã, juntava-se ao coro de agentes educativos que, nos idos de vinte, encetaram profundas mudanças no modo de conceber e de fazer educação:

“Hoje temos em Portugal uma parca educação para a cidadania ativa (…) um povo dos brandos costumes, desconhecedor de alternativas”. 

Eram justas as palavras da Bárbara. E a Teresa, atenta à criatividade dos movimentos sociais de então, participante de projetos promotores de “cidadania ativa”, questionava: · 

O que nos impede de pensar a Escola Pública em conexão profunda com o território, com as suas gentes, os seus saberes?

O que nos impede de sair do espaço físico do edifício da escola e de aprender na e com a comunidade?

O que nos impede de acreditar na proximidade, no envolvimento, no diálogo, como fatores de aprendizagem e produção de conhecimento?

O que nos impede de criar Círculos Locais de Conhecimento, tal como se procura criar circuitos diretos na Economia Circular?

O que nos impede de juntar gente miúda e graúda numa Educação Comunitária, em que todos aprendem com todos, e todos cuidam de todos?

Afinal, o que impedia a mudança? O desgoverno? As lideranças tóxicas? 

Não. O que impedia era o nosso imobilismo. Éramos nós! 

Então… nós nos despedimos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIV)

Marvila, 26 de janeiro de 2042

Lá pelo início da década de vinte, se estou bem recordado, em Lisboa, nascia uma universidade popular e comunitária. A “Pluriversidade Comunitária” era uma “utopia coletiva” tornada realidade por iniciativa de moradores de bairros de vida difícil – “desfavorecidos”, como se dizia – e por académicos. Partilhavam saberes, partindo do princípio de que, embora mantivesse o monopólio de creditação, a academia deixara de deter o monopólio do saber.

Na comunidade, não havia alunos, havia aprendentes. Nem aulas, mas sessões de conhecimento partilhado. Não havia salas ou lugar fixo para aprender. 

“Pode acontecer em qualquer lado, até na rua. E os professores serão membros da comunidade, vizinhos”. 

Não era apenas uma nova escola, mas um novo tipo de escola, oposta à ideia da “(uni)formização” do saber. Nascia do e para o conhecimento cívico e voluntário, descentralizando o saber que, normalmente, ficava cativo da academia. Pretendia-se fazer da educação mais um meio de resolução de problemas, provando que a experiência de vida poderia valer tanto ou mais do que um diploma.

A ideia já levava anos na cabeça do professor Rogério: 

“Sempre me senti insatisfeito por ser um mero académico. Via os meus colegas presos aos computadores, sem sair do gabinete. Eu nunca fui assim. Temos que estar ao serviço da comunidade. É só assim que sei trabalhar.”

O Joaquim cigano desafogava a sua voz:

“Chegamos a um ponto em que deixámos de nos importar em reivindicar qualquer coisa, porque a nossa voz nunca é ouvida”. 

Apontou uma lista de mudanças necessárias no seio das comunidades, para mudar a sua sina, mas havia uma mudança prioritária: 

“Deve começar nas escolas, nas crianças, na educação. Antigamente, ouvia-se dizer em escolas de algumas aldeias, quando a criança não queria comer a sopa: ‘Olha que vem aí o cigano e leva-te’. Fico triste. Não somos como nos pintam, eu não sou. Gostava que se começasse pela educação”.

Pelo menos uma vez por mês, abria-se espaço à discussão de um tema escolhido pela comunidade como importante para ela própria: saúde mental, arte, impacto das alterações climáticas nos bairros… e o saber saltava para um podcast, em parceria com uma rádio local.

Havia uma Assembleia Comunitária e um “conselho científico” constituído por onze mulheres e onze homens. Metade deles eram mestres e doutores. 

“Nomeadamente, académicos, para não cortar esta ligação à academia, mas não de gabinete” – dizia o Rogério. 

A outra metade era feita de pessoas de grupos comunitários, algumas só com a “quarta classe”, mas reconhecidas pelos seus pares pela sua formação experiencial e imenso saber.

Reparo que o recorte de jornal de onde retirei estes extratos tem a data de 24 de janeiro de 2022. Portugal e a Europa iniciavam um caminho aberto, muitos anos antes, no Peru, na Argentina e no Chile, países-berços das universidades populares. Na Argentina de 1918, o movimento dos estudantes da Universidade Nacional de Córdova reivindicava, por exemplo, o direito universal ao ensino superior, sem concurso, sem vestibular ou enem. 

A criação do que foi a Pluriversidade fora uma ideia peregrina alimentada pelo professor Rogério. Até já tinha proposto que nela houvesse “professores sem formação “superior”, ou nenhuma”. 

A resposta da universidade fora sempre negativa:

“Não ia ao encontro dos cânones da universidade”.

O Rogério temia que a academia viesse, gradualmente, a perder o valor que poderia oferecer às pessoas, que dela necessitavam:

“A universidade arrisca-se, neste momento, a tornar-se uma coisa inútil”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIII)

Barra de Zacarias, 25 de janeiro de 2042

No decurso da campanha eleitoral do distante janeiro de 2022, tentei chegar à fala com políticos candidatos à eleição. Diálogo difícil, pois, sempre que eu lhes falava de aprendizagem e de avaliação, eles falavam de aulas e de exames; se lhes falava de educação e de crianças, eles falavam de ensinagem e de dinheiro. Porém, nesse janeiro, em contraponto com o festival de horrores eleitoralista, havia quem quisesse “combater a mercantilização e reverter a precariedade”, defendesse “o fim dos exames”, o “combate à burocracia”, a “autonomia institucional, assegurando a autorresponsabilidade das escolas”, “rever a organização dos mega-agrupamentos, recuperar a gestão democrática, reestabelecer um modelo colegial de direção escolar” e “uma reforma do sistema de ensino centrado nos conteúdos e na ilusão de que uma prova escrita é um instrumento infalível de avaliação de um aluno, ou de uma escola”. 

Propunha-se ainda “construir comunidades educativas preparadas para os desafios do século XXI, escolas que transitassem para um modelo de educação assente num conhecimento dinâmico” (sic).

No contraponto das “novidades”, desgovernantes empurravam crianças não vacinadas para dentro de prédios chamados escolas. Elites negacionistas evocavam “evidências científicas” para forçar o retorno presencial, ignorando recomendações de médicos, higienistas e cientistas. O Paulo, professor de Patologia e membro da Academia Nacional de Medicina, assim desabafava:

“Há tempos, eu prometi não escrever sobre temas políticos. Peço perdão por fazê-lo. A todas e todos que se sentirem incomodados me desculpo e peço que abandonem este espaço. Não quero causar a ninguém qualquer embaraço. Há tempos em que não se pode esconder na poesia, nem buscar consolo na memória do menino que um dia fui e que deixei perdido numa distante esquina do tempo. Escrevo por compulsão, quase um lamento por saber que hoje o Ministério da Saúde do Brasil não aprovou os protocolos de tratamento clínico da COVID-19. Sinto que devo uma satisfação às pessoas que ofereceram seus corpos para que eu estudasse a doença. Devo estar também ao lado das famílias com quem compartilhei a dor de perderem um ente amado. Falo particularmente em nome das crianças, cuja morte me fez recobrar, numa noite fria, a esperança de um encontro com Deus. Permitam-me falar também em meu nome, hoje como paciente e infectado. O dia de hoje é para esquecê-lo, de apagar da mente o pesadelo destes dias impregnados pela ignorância profunda, oriunda de gentes que pouco sabem, que não se compadecem dos aflitos, que desconhecem o amor, que se apegam a mitos. É uma ignorância convicta, presunçosa, pastosa e nefasta. Frente a este cenário, o silêncio dos órgãos de regulação médicos é ensurdecedor. Desde a minha janela, o dia hoje foi quente e ensolarado. No interior da minha alma foi noite escura. Que vergonha senti hoje por ser médico”.

Mas uma parcela da população já ousava pensar diferente e, mais do que pensar, decidira agir. Políticos éticos seguiam-lhes os passos. Já havia secretários de educação, gestores, professores, famílias e comunidades conscientes da gravidade da situação e dispostos a invertê-la.

Nesse quinze de janeiro, deixei uma Sorocaba a contas com o clímax do surto pandêmico e sujeita ao racionamento de abastecimento de água. Regressei a Maricá, para ajudar a Adriana, a Cláudia, a Natália e tantas outras excelentes educadoras a promover a educação necessária para enfrentar a pandemia dos idos de vinte e as que viessem depois.  

 

Por: José Pacheco

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