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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXII)

São Gonçalo de Rio Abaixo, 22 de novembro de 2042

Preferiria não vos contar a estória que, hoje, vos contarei. Pouco edificante, muito desagradável poderá parecer. Retirei-a de uma pen drive, que encontrei no fundo do baú das velharias. Ainda funciona e me trouxe à memória algo que preferiria ter esquecido. Sucessivas gerações de jovens foram vítimas da ignorância de governantes e da cupidez de empresas. À distância de décadas, tudo nos parece tão sórdido, que até chegamos a pensar que tudo isso não passou de um sonho mau.

Durante uma “palestra” realizada numa instituição de formação de professores, os alunos me disseram serem obrigados a assinar listas de presenças em sala de aula. Perguntei se, ali, ainda havia sala de aula. Disseram que havia. 

Eu tinha lido a “proposta pedagógica” daquela instituição e nela estava escrito que formavam professores autónomos e responsáveis, para além de outros atributos, que não casavam com a obrigação de assinar listas de presenças.

Um professor tomou a palavra, visivelmente irritado, e a mim se dirigiu nos seguintes termos:

“O senhor não sabe o que diz! Onde já se viu? Por que não há-de haver sala de aula?”

Respirei fundo. Senti os olhares dos alunos cravados em mim. Hesitei em dar resposta, por não querer criticar um colega de ofício. Mas ele insistiu na provocação:

“Aqui, ensina-se! Ouviu? Diga lá por que não havemos de ter sala de aula!”

“Lhe direi. Mas, antes, lhe peço que me diga por que deverá haver.”

“Eu acho…” 

Interrompi-o, para dizer que o “achismo” não era para ali chamado.

“Colega, seja qual for a resposta, faça o favor de a fundamentar cientificamente. Obrigado.”

Reagiu, gritando:

“Eu não sou seu colega! Doutorei-me com uma tese sobre Vygotsky, fique sabendo! Eu sou doutor! E já vi que você só fez mestrado.”

Fiz-me desentendido, tal o tamanho do despropósito, e insisti com o “colega”:

“O colega terá lido o mesmo Vygotsky que eu li? O Lev? Leu-o e continua a ensinar em sala de aula?”

“Claro!” – vociferou.   

“Então, só poderei concluir que talvez o colega seja analfabeto funcional. Leu e não entendeu”.

Não vos direi qual o desfecho daquele encontro. Não me orgulho do que disse, mas a paciência tem limites. Vim a saber, mais tarde que o “doutor” (se a memória não me falha) fizera um curso de administração e que se “doutorara” (em Educação!) num país vizinho. 

Começava a entender por que a Educação deste país se encontrava em estado lastimável. Quando falava de inovação, os “doutores” diziam tudo ser teoria, e afirmavam que a lei “proibia que se fizesse experiências”. 

Mostrei-lhes a Lei que, no seu artigo 81º, referia a criação de uma rede de escolas inovadoras, com caráter experimental, numa intervenção efetiva e continuada para confrontar e superar os problemas reais da sociedade, por meio de indivíduos autônomos, que procuravam compreender o significado profundo de valores perfilhados e partilhados.

Havia no Brasil uma tradição de movimentos inovadores. Na primeira década do nosso século, Eurípides foi pioneiro. Nise foi inovadora na década de vinte. Na década de trinta, Lourenço Filho defendia que “a escola deveria preparar para a vida real pela própria vida”. Nos anos quarenta, Agostinho ousou inovar. Os anos cinquenta assistiram ao nascimento dos colégios vocacionais da Maria Nilde.

Na década de sessenta, tempos sombrios apagaram vestígios de inovação. E nem uma Lei de Diretrizes e Bases logrou ser instrumento de mudança. As escolas se enfeitaram de inúteis projetos. E, quando pensávamos que novas oportunidades se abriam, deparamos com um novo obstáculo: o “Efeito Sobral”.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXI)

Córrego Grande, 21 de novembro de 2042

Há mais de oitenta anos, talvez inspirado no provérbio africano, que nos dizia ser necessária uma tribo para educar uma criança, o educador Lauro de Oliveira Lima escreveu: 

“A expressão “escola de comunidade” procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será um centro comunitário. A escola não se reduzirá a um lugar fixo murado”. 

Lauro foi premonitório. E, há vinte anos, juntando-lhe o quanto baste da teorização do Ramon, escolas se transformavam em espaço-tempo de novas relações sociais. Eram práticas que iam muito além da proposta escolanovista. O aluno já não era o centro do processo de aprendizagem. Não havia centro do processo, mas a criação de vínculos entre sujeitos de aprendizagem. Num território-comunidade específico, escolas eram pessoas, escolas eram sistemas de relação, a Escola era a rede.

Ainda vivíamos um tempo marcado por uma modernização de racionalidade técnica, burocrática, industrial, numa sociedade da informação caracterizada pelo individualismo, pela solidão. O modelo escolar herdado da primeira revolução industrial deveria ser repensado e transformado, partindo de caminhos já trilhados e valorizando a competência-base dos professores: o saber “dar aula”.

À nova construção social poderíamos dar o nome de “comunidade de aprendizagem”. Era uma práxis comunitária assente num modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável e assumiam a forma de rede simultaneamente social física e virtual. Nas comunidades de aprendizagem, privilegiar-se-ia a relação entre pessoas sobre as relações entre instituições, bem como as redes físicas sobre as virtuais, apesar da prática de aprendizagem mista (presencial e remota). 

Por janeiro de vinte e três, começaram a tomar forma as primeiras comunidades de aprendizagem de que há memória. Nesse tempo, o que havia com essa designação eram caricaturas de comunidade compostas de “tertúlias literárias”, “bibliotecas tutoradas” e outros paliativos instrucionistas.

Às novas construções sociais de aprendizagem e educação não poderíamos aplicar raciocínios dedutivos. Nelas, todos éramos autodidatas e alterdidatas, todos éramos aprendentes. Seria necessário reconceitualizar as práticas escolares, para que as escolas se assumissem como nodos de redes de aprendizagem, erradicando a segmentação cartesiana, promovendo a participação de quem era considerado “fora da idade de escolarização”. 

Urgia questionar o modelo hierárquico de relação, propiciar relação comunicativa, descolonizar mentalidades, celebrar termos de autonomia. Urgia substituir o consumo acéfalo de currículo pela produção comunitária de conhecimento, substituindo a escola-prédio pela escola-rede.

Queridos netos, admito que possais duvidar do que o vosso avô diz, mas a verdade é que, nos idos de vinte, ainda havia sala de aula. 

Na “Escola no Futuro” dos idos de sessenta, Lauro perguntara: “Por que razão teima o professor em dar aula?”

Há trinta anos, Salman Khan escreveu no seu livro “Um Mundo, Uma Escola”: “O modelo clássico de sala de aula ainda faz sentido numa era digital? O velho modelo de sala de aula não atende às nossas necessidades em transformação. O sistema se tornou arcaico. Por que ainda insistimos que o trabalho deva ocorrer no confinamento de uma sala de aula e ao ritmo de campainhas?”

Esta foi a primeira das perguntas, fraternas interrogações, que enviei a “especialistas” e aos meus companheiros das ciências da educação. 

Vos direi qual foi a resposta.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLX)

Córrego Novo, 20 de novembro de 2042

No novembro de há vinte anos fui até aos cafundós de Minas, conhecer gente que fazia acontecer. A secretária Robenícia orgulhosa do desempenho dos seus professores, mas também consciente da necessidade de inovar. O Américo pediatra cuidando de crianças, e prefeito preocupado com o futuro das crianças grandes à sua guarda. O Bruno estimulando o capitão das congadas e buscando caminhos de recuperação de tradições perdidas. O educador Lucca embrenhado na tarefa de educar com responsabilidade, cumprindo o princípio básico da “cidade educadora”, aquela que entende o potencial do território, que explora suas possibilidades e as transforma em capital educativo.

Raúl Soares enveredava por práticas de aprender em comunidade, concretizava um projeto coletivamente concebido. O Mestre Florestan aprovaria, pois reconhecia que, para adaptar a educação aos recursos fornecidos pela ciência e às exigências da civilização científica, além dos obstáculos opostos às inovações necessárias pelo jogo dos interesses sociais ou pela estrutura rígida do sistema de instituições educacionais, os educadores enfrentariam dificuldades erguidas pela inexistência de uma perspectiva comum na escolha dos fins e dos meios das atividades educacionais.

Naquele tempo, Floresta e outros mestres eram ignorados, ou ostracizados. Mais de cem anos decorridos sobre a vaga escolanovista, que afirmou o primado do pedocentrismo, já no estertor do instrucionismo, ainda havia académicos que dissertavam sobre “protagonismo do aluno”, enquanto davam aula centrada no professor.

E o vosso avô invocava um jargão de décadas: os professores precisam mais de interrogações do que de certezas. Quando “especialistas” procuravam modos de melhorar a oferta daquilo a que chamavam “ensino médio”, perguntava: Por que há ensino médio? E o que é “ensino médio”? Sempre que criticavam um instrumento de darwinismo social a que tinham dado o nome de “vestibular” e apontavam virtudes de um “ENEM”, perguntava: Por que há ENEM? Enquanto exame, instrumento falível de avaliação, o que avalia o ENEM?

Paralelamente a estéreis exercícios de erudição pedagógica, em Raúl Soares e muitos outros lugares do Brasil já se ensaiava a criação de círculos de aprendizagem, federados em potenciais protótipos de comunidade, organizados em rede. 

No início deste século, o vosso avô rascunhara um projeto que dava pelo nome de “Escolas Inovadoras em Rede”. A “base teórica” do projeto ficara a levedar num cantinho da memória do computador. Em finais de vinte e dois, estava chegando o tempo de o testar.

O Projeto: “Escolas Inovadoras em Rede”, fora precocemente ensaiado no Projeto Âncora. Já então se fazia urgente, na medida em que pretendia reavivar a prática educativa, considerando cada contexto escolar como comunidade. Numa lógica de progressiva autonomia, inovações curriculares, pedagógicas e administrativas, deram origem a um modelo de organização de escola que, em muitos aspectos, divergia do modelo prevalecente de escola pública. 

O Estado e a sociedade civil estavam devendo às leis o seu cumprimento e à ciência a sua aplicação. Urgia interrogar práticas hegemônica. Urgia juntar à aprendizagem escolar o domínio da arte e cultura, da saúde pública e ambiente. Seria necessário um novo renascimento que religasse a teoria com a prática, que unisse a universidade, o poder público e o chão da escola. 

Ainda iríamos a tempo de reunir a escola, a sociedade e a família, na configuração de novas construções sociais de aprendizagem? 

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLIX)

Ilhéus, 20 de novembro de 2042

Há vinte anos, andava o vosso avô por terras do sul da Bahia, onde o Jardim Ciranda montra arraais. Se, na região, a Escola Pública, aquela que a todos garantisse o direito à educação, não existia, famílias cuidavam da educação dos seus filhos. 

Até à chegada da primeira das pandemias, com grande sacrifício, abriram caminhos novos para a velha educação. Porém, os recursos se exauriram, a um belo projeto faltava assegurar sustentabilidade financeira.

Em Porto Seguro, encontrei uma secretária de educação preocupada e decidida a fazer Escola Pública. Os seus professores tinham feito muitas pós-graduações e doutoramentos, muitas ações de formação e projetos, e o IDEB mantinha-se em níveis indesejados.

Atentamente, escutei famílias do Arraial d’Ajuda. Em Trancoso, a Morena me acolheu e me descreveu a escola que desejava para as suas filhas. E a Mãe Negra me pediu ajuda.

À época a que me reporto, uma cidade do Ceará ganhara fama e proveito, por via do seu elevado índice de decoreba. Ingenuidade pedagógica e ânsia de resolver problemas estruturais, induzia o poder público a celebrar contratos de nulo efeito.

Assistíamos à expansão de uma perspectiva desenvolvimentista da educação com a sua subordinação aos imperativos da competitividade económica e às regras do mercado. A narrativa do “foco no resultado” se sedimentara no meio corporativo e na gestão das escolas. Por essa via, jamais aconteceria Escola Pública, tal como o João a interpelava.

“Durante mais de 150 anos o Estado assumiu, no mundo ocidental, a função de Estado Educador. A criação e desenvolvimento da escola pública tornou-se, primeiro, um imperativo para a consolidação do Estado-Nação e, mais tarde (principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial), um elemento essencial do desenvolvimento económico. 

A escola pública desenvolveu-se, assim, com base num voluntarismo político, claramente centralizador, que pressupunha um forte consenso social no valor da educação e nas modalidades de organização da escola. 

O crescimento extraordinário dos sistemas educativos e a complexificação da sua organização tornaram difícil a sua renovação e adaptação às necessidades do mundo atual. 

Perante estas situação de crise, os governos procuraram responder com grandes reformas que, com grande optimismo retórico, eram anunciadas como o mito regenerador da educação e a boa solução para tudo resolver de maneira racional e planificada.

O balanço que se faz destas grandes reformas, que constituíam o manifesto político de qualquer ministro que se prezasse é conhecido. A maior parte das reformas não passou do papel e as que foram um pouco mais longe raramente se radicaram nas escolas e, muito menos, na sala de aula e nas suas práticas quotidianas.”

Na Internet, eram abundantes anúncios deste tipo: 

“Como sair de zero para quatro mil alunos em 12 meses. Metodologia de Aceleração de Vendas. As inscrições estão abertas”.

Secretarias de educação celebravam contratos milionários com empresas. Fundações e filantropos injetavam avultadas quantias em experimentalismos inconsequentes. adotando “finlandesas e sobralísticas soluções”, que nada solucionavam.

A defesa da Escola Pública passaria pelo desmonte do carácter pretensamente neutro da introdução de uma lógica de mercado na educação, pela denúncia da sua ética perversa e por fazer da definição e regulação das políticas educativas um processo de construção coletiva do bem comum que à educação cabia oferecer, em condições de igualdade e justiça social, a todos os cidadãos.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLVIII)

Serra Grande, 18 de novembro de 2042

Sem querer afetar-vos com uma overdose de estórias da história da Ponte, não resisto a juntar mais uma ao já extenso rol.

Aquando de mais uma tentativa de destruição do projeto – a história da Ponte foi feita de sofrimento e resiliência – o Rui dissera que a nossa escola inovara à margem do “sistema”. Mas foi mais longe na conclusão:

“Seremos mais exatos se afirmarmos que ela se desenvolveu contra as reformas, na medida em que se baseia em pressupostos e em soluções que são contraditórios com aquilo que tem sido a ação dominante da Administração. Na experiência da Escola da Ponte os professores falam pouco de autonomia, mas exercem-na e constroem-na, desde há muito. É uma autonomia não outorgada nem tutelada. 

Em contrapartida, a autonomia decretada pelo Ministério desencadeou (por boas ou más razões) um sentimento defensivo e de rejeição pelos professores, da autonomia que lhes caiu em cima. Parece ser óbvio que não é a mesma autonomia que está em causa. 

As preocupações com a flexibilidade da gestão curricular estão melhor representadas na experiência da Ponte (polivalência dos espaços, flutuação dos agrupamentos dos alunos, gestão autónoma dos tempos, diversidade de dispositivos de aprendizagem, organização democrática da vida da organização) do que nas sucessivas reformas curriculares que, em nome da flexibilidade, estabelecem, de modo inflexível, soluções uniformes (por exemplo, que a aula de 50 minutos seja substituída, em todo o lado, de forma obrigatória e autónoma pela aula de 90 minutos). 

João Barroso, o “pai” do decreto da autonomia das escolas, completava a reflexão do Rui:

“O caso da Escola da Ponte não é um episódio pontual, mas, antes pelo contrário, constitui um exemplo paradigmático das posições e ações em confronto no debate atual sobre a escola pública: por um lado, os que, na Escola, se esforçam por promover um ensino justo, democrático, participativo, adaptado à diversidade e características dos alunos, pedagogicamente eficaz e civicamente ativo; por outro lado, os que, no governo e nos meios de comunicação social, querem fazer crer que a escola pública está condenada ao fracasso, que a competição e o mercado devem ser os seus valores de referência, mas que, ao mesmo tempo, têm (ou defendem) políticas centralizadoras, burocráticas e conservadoras que a impedem de mudar e de se aperfeiçoar. 

Não pode ser reduzido a uma mera discordância  quanto à maneira de gerir com mais eficiência os dinheiros públicos que o governo gasta na educação, em particular na gestão da rede escolar. 

A questão é política e interpela simultaneamente os defensores da escola pública que, neste caso, são confrontados com a necessidade de defenderem a existência de projetos pedagógicos próprios; e os defensores da introdução de uma lógica de mercado na educação que, neste caso, aparecem como acérrimos defensores da setorização e da carta escolar, obrigando os pais a matricular os seus filhos numa escola determinada pelo Estado, em função de critérios meramente administrativos. 

À distância de quarenta anos, creio ser útil refletir sobre o conceito e prática de autonomia. A Ponte celebrara o primeiro “contrato de autonomia” de que há memória. Porém, de imediato, a administração pública engendrou modos de a mitigar ou anular. 

O João dizia ser necessária uma efetiva defesa da Escola Pública, reafirmar os seus valores fundadores, perante a difusão transnacional da vulgata neoliberal que via no serviço público a origem de todos os males da educação e na privatização a alternativa. 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLVII)

Uruçuca, 17 de novembro de 2042

Apesar de contar cerca de quarenta anos, o artigo da autoria do amigo Rui, que vos dei a conhecer, permanece atual. Eis como ele concluía a sua argumentação:

“Reconhecer, compreender, valorizar e apoiar iniciativas inovadoras das escolas representa assumir uma estratégia indutiva de conhecimento e intervenção na realidade que se situa nos antípodas da lógica da reforma. 

Esta estratégia indutiva implica reconhecer duas coisas que, sendo irritantes para alguns, não deixam, por isso, de ser óbvias: por um lado, têm sido as escolas a mudar (ou esvaziar de sentido) as reformas e não o contrário; por outro lado, só é possível mudar as escolas com os professores e não contra eles. Implica, ainda, uma terceira conclusão, a de que é possível e necessário aprender a aprender com aquilo que as escolas fazem (de bom e de mau). 

É nesta perspectiva que deve ser entendido o meu testemunho sobre a experiência que, desde há mais de duas décadas, tem vindo a ser laboriosa e persistentemente construída, com avanços e recuos, feita e refeita, à maneira de Sísifo, por uma equipa de professores que, em Vila das Aves, teimam em ser autónomos, criativos e donos da sua profissão sem, para isso, pedirem autorização prévia. 

É possível e necessário aprender com a Escola da Ponte. Tentarei, de modo sucinto, enunciar alguns dos aspectos desta experiência que me parecem mais marcantes e mais fecundos, em termos da nossa aprendizagem. 

A Ponte é uma inovação contra as reformas. Ao longo dos últimos 25 anos desenvolveu-se na Escola da Ponte uma experiência ímpar, marcada por um percurso complexo, não linear e necessariamente conflitual, enquanto que, paralelamente, se processava uma sucessão de reformas conduzidas pelas sucessivas equipas do Ministério da Educação. 

Como é próprio das paralelas, estes dois processos nunca se encontraram, no sentido de mutuamente se fecundarem. Ao longo de mais de duas décadas o Ministério agiu como um obstáculo, primou pela ausência e raramente se colocou numa posição facilitadora, com excepção do curto lapso de tempo em que esta, como outras experiências inovadoras, esteve integrada no Programa Boa Esperança, da responsabilidade do Instituto de Inovação Educacional. 

A experiência da Escola da Ponte tem subjacente uma teoria e uma prática de formação de professores baseada no exercício profissional em contexto, combinando a ação e a reflexão coletivas. Na história da experiência ganha particular relevância a construção de projetos auto formativos, baseados na figura do círculo de estudos. Esta formação nada tem a ver com o desenfreado consumo da formação, orientado para a acumulação de créditos que constituiu o eixo estruturante da formação contínua de professores durante a década de noventa. 

A experiência da Escola da Ponte encontrou uma resposta pedagogicamente coerente para lidar com a heterogeneidade do público escolar, sendo exemplar a forma como integra e resolve os problemas dos chamados alunos difíceis ou com necessidades especiais. A construção desta resposta só foi possível num quadro de superação da organização em classe, na medida em que esta foi historicamente concebida para lidar com o aluno médio

Pelo contrário, as sucessivas reformas, em termos da individualização pedagógica, têm permanecido no estádio da retórica ou, pior que isso e em nome da diferenciação, reproduzem o que há de mais negativo na organização homogénea em classes. Pode, assim, dizer-se que a experiência da Escola da Ponte se desenvolveu à margem e apesar das reformas.”

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLVI)

Ilhéus, 16 de novembro de 2042

Voltemos às estórias e à reflexão feita pelo amigo Rui Canário sobre um período crítico da história da Ponte, quando, mais uma vez, o ministério da educação de Portugal tentou destruir o nosso projeto. 

O ministério era um lugar mal frequentado, máquina acionada por burocratas autoritários, que viam na Ponte “perigosos” sinais de autonomia. Dessa vez, a nossa escola não ficou sozinha perante o monstro burocrático. As universidades, os sindicatos, outras escolas e professores se uniram num movimento que derrotou malévolas intenções ministeriais. Sobre essa contenda, o amigo Rui isto escreveu:

“Por que foi tão importante o movimento de solidariedade gerado em torno da Escola da Ponte, por ação de tantos professores, educadores e cidadãos? Que lições encerra a experiência da Escola da Ponte e em que nos pode ser útil para o futuro? Como pôde uma pequena escola, aparentemente isolada, gerar apoios e resistir? Donde vem a sua força? Em que reside a exemplaridade desta luta? Eis algumas das perguntas para as quais pretendo, neste texto, esboçar algumas tentativas de resposta. Para que a solidariedade com a Escola da Ponte seja, para além da sua dimensão afetiva, um ato de lucidez.” 

O ministério permaneceria socialmente autista durante décadas. Por isso, o  amigo Rui avisava ser preciso aprender a escutar as escolas. 

“Por contraste com uma perspectiva de estabilidade e continuidade, os conceitos de mudança, inovação e reforma emergiram, a partir do final dos anos sessenta, como palavras-chave para descrever, pensar e planear o funcionamento dos sistemas escolares. 

A criação de agências especializadas na promoção de inovações, o desenvolvimento da investigação aplicada e o crescente domínio do saber técnico-científico reforçaram os mecanismos de tutela externa sobre os professores e as escolas. 

Apesar da retórica sobre a criatividade das escolas, os processos de mudança deliberada basearam-se numa atitude de desconfiança relativamente aos professores e às escolas, apresentados como intrinsecamente resistentes à inovação

A obrigação imposta às escolas de serem inovadoras colocou estas numa situação penosa, de permanente duplo constrangimento, ou seja, na impossibilidade de corresponder a esta exigência: não é possível ser criativo, por imposição externa. 

Os processos de mudança deliberada, em larga escala, saldaram-se, regularmente e por toda a parte (como é notório no caso português), por fracassos e decepções. Estes fracassos podem ser relacionados com dois erros principais, um erro de diagnóstico e um erro de metodologia

O primeiro erro consiste em referenciar a crise da escola como uma mera crise de eficácia e de meios, sobrevalorizando-se uma resposta de natureza técnica. Sabemos hoje que a crise da escola se situa, sobretudo, no campo da legitimidade e apela, por isso, a respostas políticas que se situam no terreno dos fins da ação educativa. 

O segundo erro radica em processos de mudança construídos a partir de cima, numa lógica de exterioridade relativamente aos contextos e aos atores locais. Esta importação para o campo educativo de processos industriais de produção de mudanças contribuiu para acentuar, em vez de resolver, a crise da escola, estabelecendo uma relação de conflito entre os processos de mudança instituídos (do centro para a periferia) e os processos de mudança instituintes (construídos a partir de baixo). 

Em síntese, as escolas e os professores têm vindo de forma metódica, regular e persistente, a ser vacinados contra as mudanças.“

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLV)

Mutari, 15 de novembro de 2042

E, como não há duas sem três… de novo, o Rui e a Ariana, quando ensaiaram uma “explicação” para os “segredos” da Ponte, que era segredo nenhum. 

“Ali se envolvem as crianças na gestão das atividades e das tarefas escolares a realizar, condição que visa assegurar o funcionamento dessas atividades e constituir-se como uma oportunidade para promover o desenvolvimento das suas competências de autonomia. Ali se concebe e desenvolve um complexo dispositivo de meios de intervenção educativa, que tanto pode servir para apoiar o trabalho de pesquisa, de estudo ou de resolução de problemas

A problemática da articulação entre a exigência académica e os propósitos da inclusão escolar, de acordo com esta perspectiva, adquire novos contornos, abalando-se, deste modo, a concepção que tem vindo a prevalecer neste âmbito: Aquela a partir da qual se define uma relação marcada por tensões entre o saber quotidiano das crianças e o saber escolar, sem que isso possa constituir razão suficiente para justificar a renúncia face a um ou face a outro. Uma renúncia que, a acontecer, implicaria que a Escola renunciasse a assumir-se também como um contexto educativo. Num caso, porque ignoraria o saber e as vivências das crianças, deixando-as demasiado sós, entregues a esse  confronto e, no outro, porque ignoraria, por sua vez, o potencial formativo do património cultural, cuja finalidade consiste, fundamentalmente, em permitir que as crianças se afirmem como seres humanos capazes de ler e de intervir no mundo de forma mais competente, mais justa e mais partilhada.

Deste modo, a ação educativa afirma-se em função de uma dinâmica que não é concebida em função de um dos polos que permitem configurar essa ação (aluno, professor, conteúdos curriculares), mas da relação que se estabelece entre eles. 

Uma relação que se afirma em função de um objetivo formativo, onde a centralidade do aluno implica que o professor adquira um protagonismo pedagógico inédito e o ato de aprender conduza à reconceptualização do ato de ensinar.” 

Lestes bem: “relação”! Pouco tempo após a escrita desse texto, a Ponte viu aprovado o seu contrato de autonomia. Eu fora diretor por quase três décadas. Quando deixamos de ter diretor, entregamos a direção do projeto à comunidade e outro tipo de relação se instituiu.

Já não levávamos a escola para a comunidade, nem a trazíamos para a escola. A Ponte passara a ser um nodo de uma rede comunitária. A relação que se estabeleceu no contexto dessa rede estimulava uma comunicação horizontal, fraterna, autônoma.

Da matriz axiológica da Ponte constava o valor “autonomia”. Na prática, uma autonomia relacional, em tudo oposta ao individualismo dos extremismos escolanovistas. A minha autonomia não terminava onde começava a autonomia do outro. A minha liberdade começava onde começava a liberdade do outro. 

No início do século, o projeto Fazer a Ponte já tendia para práticas caraterísticas afins do paradigma da comunicação. Formalizara o seu contrato de autonomia. Estava bem implantada no seu território. Dispunha de um conselho de direção de maioria comunitária. Instaurara um sistema de relações de efetiva participação das famílias e da comunidade, que decidia o futuro do projeto. 

Todavia, o desgaste sofrido ao longo de décadas fez-se sentir. O autoritarismo da administração educacional forçou o desrespeito de legítimas  decisões e esteve na origem de um processo de desintegração comunitária, de parcial burocratização das práticas, de perdas significativas de autonomia.

Sobre isso vos falarei.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLIV)

Almenara, 14 de novembro de 2042

Uma das críticas (destrutivas) feitas à Ponte foi a de que os nossos alunos tinham baixo rendimento académico. E que nós não fazíamos provas, testes, porque temíamos que tivéssemos de lhes atribuir fracas notas.

Nas suas escolas, esses professáurios críticos aplicavam prova e “davam nota”. Pouco ou nada avaliavam e não sabiam que avaliação não era o mesmo que classificação. Enfim! Os maldizentes boatavam, na intenção de denegrir o projeto. Esqueçamo-los. E vejamos o que sobre a problemática escreveram aqueles que eram competentes na matéria.

“Tradicionalmente, parte-se do pressuposto de que a reivindicação de uma maior exigência académica implica uma escola mais seletiva, enquanto que uma escola de carácter inclusivo pressupõe a ausência de processos de avaliação fidedignos. 

As práticas quotidianas e os resultados escolares obtidos pela Escola da Ponte apontam na direção contrária. Sendo uma escola com um projeto educativo marcadamente inclusivo, não deixa, por causa disso, de obter resultados acima da média. As provas de avaliação aferida no Ensino Básico e, posteriormente, o Relatório da Comissão de Avaliação Externa comprovaram. Constam de um  relatório redigido por uma equipa da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

O que é notável, no entanto, é compreendermos que tais resultados não se obtiveram apesar da assunção de um projeto em que os propósitos de inclusão escolar constituem a trave-mestra do conjunto de intervenções educativas que se desenvolvem, mas por causa, precisamente, da assunção congruente da dimensão inclusiva deste mesmo projeto. 

Um projeto que marcou a organização e a administração dessa escola, assim como determinou, de forma profunda, a organização do espaço e do tempo da aprendizagem, o tipo de gestão curricular adoptado, bem como a gestão do processo de aprendizagem nas mais diversas áreas do saber, interferindo de forma decisiva nas soluções adoptadas.

Pode afirmar-se, então, que nos encontramos perante uma concepção mais ampla de exigência académica, em que esta deixa de ficar confinada, apenas, aos testes estandartizados que visam hierarquizar as crianças, para ser assumida como um propósito que decorre do facto de as escolas não renunciarem à educação de todos os alunos que a frequentam, tendo em conta as suas particularidades e potencialidades e assumindo, por inteiro, os compromissos e as implicações pedagógicas decorrentes de uma tal opção. 

Daí que se possa afirmar que, numa escola pública e democrática, a exigência académica não é um conceito estranho a essa escola e ao seu funcionamento. Pressuposto que a Escola da Ponte permite sustentar, ao mesmo tempo que permite afirmar que aquilo que se recusa não é a exigência académica, em si, mas os seus efeitos discursivos como um instrumento necessário para justificar as políticas de cariz meritocrático, os quais, ao elegerem a seleção académica como uma necessidade pedagógica e social, contribuem, entre outras coisas, para se esquivarem a uma séria e rigorosa discussão acerca das finalidades políticas, sociais, culturais e educativas da Escola, do seu funcionamento como instituição educativa formal, dos sentidos do saber escolar e das implicações educativas dos modelos de mediação pedagógica a partir dos quais se configura a gestão do processo de ensino-aprendizagem.“

Há quarenta anos, já se apontava a necessidade de conceber uma nova construção social de aprendizagem e de educação, que só viria a tomar forma concreta na década de vinte.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLIII)

Trancoso, 13 de novembro de 2042

Sempre que visitava uma escola, passava por três espaços-radiografias: os banheiros, a Biblioteca e a Sala dos Professores. E foi na Sala dos Professores que conversei com o meu amigo F. 

A conversa chegou ao seu auge, quando lhe perguntei… onde era a “Sala dos Alunos”. Compreendi que não conseguia fazer-me entender. Ou talvez ele não me escutasse.

“Mas, então, cadê a Escola?” – replicou.

“É de Escola que eu tenho estado a falar.” – respondi.

“Mas, então, tem de haver Escola! Não é?”

“De que Escola estamos a falar, meu amigo?”

Era difícil comunicar com quem estava possuído pela ideia de que a Escola era aquela instituição degradada no início da Modernidade e que arrastou a sua degradação para além da Modernidade e da Pós-Modernidade (se isso existiu).

Apressei-me a dizer-lhe que voltasse a ler o Bordieu, que ele tanto admirava e que tinha sido a vedeta do seu doutoramento.

Abraçou-me e foi dar a sua aula, numa “Sala de Aula Normal” (era esse o dístico afixado sobre a porta da dita sala).  

Entrei em muitos banheiros (os quartos de banho portugueses). Em todas encontrei os mesmos dísticos, os mesmos avisos: “Por favor, urine dentro do vaso”) e recomendações (“Por favor, dê a descarga”). 

Por favor se solicitava os mais elementares comportamentos: “Por favor, não lave a cuia neste lavatório”, “por favor, não suba para cima do vaso”. 

Do chão da escola aos gabinetes dos ministérios, passando pelas universidades, o interior das portas dos sanitários exibiam sugestivos desenhos, predominando elementos fálicos. E ostentavam frases de alto gabarito intelectual e moral elevada.

Por que seria necessário pedir favores, lembrar o óbvio?

Era por demais evidente a deformação sócio-moral dos utentes. Encolhiam os ombros, quando lhes perguntava se professores e alunos partilhavam o mesmo banheiro. 

Não se conseguia entender por que estavam separados. Nos seus lares, também haveria banheiro de pai separado do banheiro do filho?

Indiferentes à estranha situação, moralistas de duvidosa moral questionaram a existência de um banheiro “unissexo”, idêntico àqueles de que qualquer habitação dispunha. Políticos fundamentalistas acusaram de “indecente” uma escola onde havia banheiros utilizados por crianças de tenra idade, sem discriminação de género. 

Perguntei-lhes se os banheiros dos aviões utilizados para irem à Disney, ou os ônibus das excursões escolares, dispunham de banheiros para homens separados de banheiros para mulheres.

Como era podre aquela moral! Nas escolas, havia banheiros de alunos que nem papel higiénico tinham e banheiros de diretores dotados de ar condicionado!

Cedo identificamos a degradação da “Escola” do meu amigo F. e nos apressamos a criar acordos de convivência. Era a partir de compromissos prévios que se legitimava e configurava o ato de educar, que a Escola da Ponte se definia como uma escola inclusiva, como uma escola sem muros, uma escola de todos, uma escola cidadã. Ali, no lugar de prescrições a cumprir, havia um processo de reflexão participada e de compromisso. 

Os visitantes da Ponte surpreendiam-se com a ausência de cartazes com pedidos de comportamentos óbvios. E concluíram:

“Não há pragmatismos tecnocráticos que permitam iludir a dimensão axiológica dos projetos educacionais que entendem a Escola como um espaço cultural aberto a todos e plural. Um espaço que se define em função dos pressupostos de uma sociedade democrática e que, a seu modo, pode contribuir para que esta sociedade também se construa como tal, a partir do conjunto de realizações que aí têm lugar.”

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