Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVIII)

Caraíva, 15 de outubro de 2043

Voluntariamente, “exilado” nas terras do Sul, acolhido na mátria brasileira, ainda envolvido em pedagógicos afazeres, naquela viagem aportei à Bahia. Por lá, encontrei uma empreendedora Luiza e pataxós reivindicando dignidade e espaço vital de sobrevivência. Em Trancoso, reencontrei o amigo Álvaro. Trocamos novidades, falamos de Krishnamurti, recordamos velhas andanças. Amigos da Coqueiral chegaram de Caraíva. A Caina, a Ilana, a Fada Flora e outras amigas e amigos (nunca consegui dizer “amigues”…) se juntaram a educadores provindos de muitas paragens. 

Nessa manhã, voltaríamos a falar de educação regenerativa, de educação integral, de educação humanizada, de… Educação. Parecia ter chegado o momento propício à concretização de projetos-sonhos de décadas. E, enquanto a Flora interpelava o papai sobre os mistérios da vida e a Vovó Ludi saboreava a vida, preocupada com a vida da sua neta, o canto de um sabiá acompanhou a escrita deste textinho (que achei num velho computador):

“E eis que chegou mais um “Dia do Professor”! A história de vida de um professor pode ser contada num minuto. Assim…

Quando decidi ser professor, eu sabia tudo, ou quase tudo, de eletrotecnia, mas não sabia ser professor. Eu só sabia “dar aula”. Finda a crise moral, que me assaltou – porque eu “dava aulas” magistrais, bem planificadas, e havia quem não aprendesse – adquirira consciência de que já conseguia ensinar mais de metade dos alunos, mas havia outros que não aprendiam. 

Quando sobreveio a segunda crise – a crise ética – eu pensava ter reinventado a roda da educação: o aluno já estava no centro do processo de aprendizagem. Foi então que o vosso avô compreendeu que havia produzido paliativos pedagógicos, na intenção de pretender melhorar o “sistema”. Para trás ficara um cemitério de projetos. E, com centro no professor, ou com centro no aluno, o direito à educação continuava a ser negado a muitos seres humanos.

A educação dos idos de vnte e três sobrevivia imersa numa crise centenária estatisticamente demonstrada, traduzida no pessimismo e no conformismo manifestados pela maioria dos professores. 

A comunicação social estava enxameada de referências a “práticas inovadoras”. Eis senão quando, me convidam para um evento anunciado como “revolucionário”. Nele seriam apresentados projetos chamados de “novo tipo”. Tratava-se, mais uma vez, da fútil polêmica em torno do “ensino médio” dos idos de vinte e três, com um discurso semeado de abstrações sem caução de práticas. Recupero um naco de prosa contido no manifesto pela sua revogação:

“A parte diversificada do currículo tem o objetivo de preparar para o mundo do trabalho. Ocorre que, para a maioria das profissões, é necessário fazer estágio, cursar determinados conteúdos, além de outras regulações profissionais. Nada disso é proposto na reforma. Como a quantidade de aulas de suas matérias foi reduzida, os professores pegam muito mais turmas para completar a jornada, aumentando enormemente seu cansaço, tornando inviável conhecer seus alunos.”

À semelhança de outros papeis, que encontrei no baú das velharias, este textinho reflete uma visão tacanha do que fosse currículo, que não contemplava a dimensão da subjetividade e do projeto de vida dos jovens. Nesse tempo, a “preparação para o trabalho” era objeto de “preparo” em sala de aula para profissões que, decorridos dez anos, não existiriam. E os jovens eram compelidos a serem designers de si próprios, de aprender a se adaptar a múltiplos ofícios, algo que a escola da sala de aula não propiciava. Enfim!

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVII)

Brasília, 14 de outubro de 2043

Foi breve a minha passagem por Brasília. Mas permitiu verificar que projetos suspensos durante um desgoverno retomavam o seu rumo. Apesar dos desmandos da desgovernação, Brasília e Distrito Federal praticavam Darcy. 

A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal dizia ter como missão proporcionar uma educação pública, gratuita e democrática, voltada à formação integral do ser humano, para que pudesse atuar como agente de construção científica, cultural e política da sociedade, assegurando a universalização do acesso à escola e da permanência com êxito no decorrer do percurso escolar de todos os estudantes. 

Teoricamente, isto é, no domínio das intenções, era essa a missão. Na prática, a secretaria apenas parcialmente a cumpria. E, dentro dela, havia quem contribuísse para que a “qualidade da escola pública” não melhorasse. 

Em 2024, chegaria o “chamamento público da “educação inovadora”. Uma portaria instituía o “Grupo de Trabalho Comunidades de Aprendizagem”, cuja finalidade era a de “elaborar proposta de Diretrizes de Política Pública para a implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal”.

Segundo o enunciado do seu artigo terceiro, competia ao GT entre outras missões: “desenvolver a análise técnica para viabilizar a implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública do DF; desenvolver estudos de experiências e fundamentos científicos; contribuir para reconfiguração da prática educativa; elaborar e/ou adequar normativos; viabilizar, gradualmente infraestrutura adequada à implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal”.

Nada de novo, mas manifestação da observância, por exemplo, do pensamento de Anísio Teixeira para a educação de Brasília: ”Fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisem andar muito para alcançá-las.” E o incremento da pesquisa nas bibliotecas. E a reorganização dos tempos escolares, que garantissem a concretização do princípio da integralidade defendido no “Currículo em Movimento da Educação Básica”: “O território não se limita ao espaço geográfico, mas a abrangência dos efeitos sociais e políticos em que o indivíduo esteja inserido. O estudante não é só da professora ou da escola, e sim da rede, da Cidade”. 

O reconhecimento de que a cidade poderia constituir-se espaço educador, possibilitaria o encontro dos sujeitos históricos, criando espaços, tempos e novas oportunidades educacionais. No pressuposto de que “a formação dos indivíduos não se restringe ao espaço físico escolar”, a proposta integrava a vida comunitária, o envolvimento e a articulação de todas as instituições e associações públicas e privadas, que tornassem a educação pública, de fato, um direito subjetivo, conforme estabelecia a Constituição Federal. 

A pretensão de modernizar a educação brasileira, de a libertar das amarras de uma herança jesuítica secular e conservadora, inseria-se num amplo movimento de renovação da educação. Porém, quatro anos foram desperdiçados. E outros quatro, mercê da “sobralização” ministerial, poderiam sofrer idêntico destino. 

Para evitar o desperdício, educadores éticos se encontraram, numa tarde de outubro. Projetos como o da Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, o do Sol Nascente, o do Mangueiral, o da 115 Norte, do Gama e de outros não-lugares ganharam novo ímpeto.  Daquilo que por lá aconteceu vos falarei em outra cartinha.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVI)

Brasília, 13 de outubro de 2043

Na véspera do “Dia da Criança”, estive reunido com a Alice e os seus companheiros de projeto. Fiquei apreensivo com o seu cansaço e a decisão de manter um rumo de projeto, que se antevia desastroso. Mas, garanti-lhes disponibilidade para “correção de rota”.

Na manhã do feriado, entre a poesia da Martha, a música do Milton trazida pela Marta e a dança circular proposta pela Cláudia, o reencontro de educadores resilientes marcou o retorno a Brasília. À tarde, o amigo Isaac acolheu gente disponível para promover mudanças. Em todos os encontros, senti recetividade ao convite de retomada de projetos interrompidos.  

No dia seguinte, retomei contato com aeroportos e estradas. Pelo caminho, revi velhos vídeos. Num vídeo de meados dos anos noventa, o amigo Armindo e outros pais da equipe inicial davam testemunho do essencial: que a Ponte havia nascido pela vontade de uma comunidade e pela da iniciativa de um professor. 

Em 1976, já sabíamos que escolas não eram prédios, que eram pessoas. E que o projeto era um ato coletivo, assente em princípios. Tive necessidade de recordar aos professores da Ponte os princípios fundadores do projeto. Parecia terem sido esquecidos. Espero que a sua leitura não seja maçadora. Ei-los:

1- Uma equipa coesa e solidária e uma intencionalidade educativa claramente reconhecida e assumida por todos (alunos, pais, profissionais de educação e demais agentes educativos) são os principais ingredientes de um projeto capaz de sustentar uma ação educativa coerente e eficaz.

2- A intencionalidade educativa que serve de referencial ao projeto Fazer a Ponte orienta-se no sentido da formação de pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis e solidários e democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

3- A Escola não é uma mera soma de parceiros hieraticamente justapostos, recursos quase sempre precários e atividades ritualizadas – é uma formação social em interação com o meio envolvente e outras formações sociais, em que permanentemente convergem processos de mudança desejada e refletida.

4- A intencionalidade educativa do Projeto impregna coerentemente as práticas organizacionais e relacionais da Escola, que refletirão também os valores matriciais que inspiram e orientam o Projeto, a saber, os valores da autonomia, solidariedade, responsabilidade e democraticidade.

5- A Escola reconhece aos pais o direito indeclinável de escolha do projeto educativo que considerem mais apropriado à formação dos seus filhos e, simultaneamente, arroga-se o direito de propor à sociedade e aos pais interessados o projeto educativo que julgue mais adequado à formação integral dos seus alunos.

6- O Projeto Educativo, enquanto referencial de pensamento e ação de uma comunidade, que se revê em determinados princípios e objetivos educacionais, baliza, e orienta a intervenção de todos os agentes e parceiros na vida da Escola, e ilumina o posicionamento desta face à administração educativa.

Fui a Portugal, para ajudar a criar protótipos de comunidade de aprendizagem. Dado o seu exemplo de pioneirismo e face a esse enunciado de princípios, seria de esperar que Ponte fosse a primeira escola a participar nesse projeto. Propus a criação de um Grupo de Trabalho (GT), de uma Assembleia (ARCA), e a recuperação de um contrato de autonomia. Pois, como dizia o amigo Nóvoa: 

Não podemos deixar a escola bloqueada por uma pedagogia medíocre.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXV)

Comunidade da Lagoa das Amendoeiras, 12 de outubro de 2043

No “Plano do Dia” que junto a esta cartinha faltava um “A”, mas não faltava amor. O amor-dedicação da Bruna, do Gabriel, da Francis, do Bruno. Não faltava o amor incondicional da Patrícia, que não sossegava enquanto não se conseguisse matar a fome de alimento e de afeto das crianças da Lagoa das Amendoeiras. Não faltava a amorosidade de uma Vovó Ludi e as suas pedagógicas contribuições. Ali, todos os dias eram “Dia da Criança“.

Dei por mim, relendo Ellen Key, pedagoga sueca autora da obra “O século das Crianças”, publicada no ano 1900. Ellen reivindicava liberdade para aprender, despenalizar o erro, incorporar os pais no labor educativo, suprimir castigos. Aquilo que, hoje, nos parece normal não o era, no final do século XIX. E foi por esse tempo que os estados-nação consolidaram um sistema em tudo oposto às propostas de Ellen Key.

As crianças eram consideradas homúnculos, adultos em tamanho pequeno. Nada de educação que reconhecesse a bondade do estado natural do ser humano. Ou lembrasse Goethe que, na sua obra “Os anos da aprendizagem de Wilhelm Meister”, apelava a um humanismo que elevasse o espírito da criança até dotá-la de um saber próprio e uma sólida responsabilidade. Eram raras as referências à beleza como elemento formativo, à estética como fator de redenção social, pensada por Ruskin e, William Morris.

A profecia de Ellen Key não se cumpriu. O século XX não foi o “Século da Criança”. Mais de meio século decorrido sobre o falecimento de Ellen Key, o vosso avô passou por uma insólita situação.

“A sala do senhor diretor é ali, ao fundo do corredor.” 

Segui a indicação da funcionária. Pedi para entrar.

Lá dentro, um silêncio de cemitério. Crianças encolhidas, cabeça baixa, copiando o que estava escrito no quadro negro. Régua de cinco olhos em cima da secretária, uma vara comprida encostada à parede. 

“Venha cá, colega! Já estava à sua espera. Vem se apresentar, não é? Ainda bem que chegou um homem! Já se me estava a esgotar a paciência de aturar estes burros. Do que eles precisam é de alguém que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem”. 

Fiz-lhe ver que não costumava recorrer a castigos e muito menos aos corporais.

“Não seja mole, colega, não seja mole! Você é novo, mas vá por mim, que já cá ando há trinta anos!”

A conversa descaiu para uma análise, pouco fundamentada, do insucesso:

“O colega não espere tirar grande coisa destes gandulos. Pancada é do que eles precisam. Do que eles precisam é de alguém com pedagogia musculada, que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem!”

Sarcástico, aquele diretor machista se pronunciou, exatamente como vos digo e se a memória não me trai:

“Ó colega, não sabe por que é que a educação está como está? Caro senhor, está-se mesmo a ver! Na nossa profissão só se vê mulheres. É só mulheres! Está explicado!”

Eu não queria acreditar no que ouvia, mas ouvi, claramente ouvido. Efetivamente, sempre que abria um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparava com referências a dez ou vinte homens e apenas duas mulheres. De Louise Michel a Ellen Key, de Irene Lisboa a Nise da Silveira, da Emília Ferrero à Magda Soares, da Maria Nilde à Amanda Alberto, a lista de ilustres educadoras era extensa, mas não totalmente revelada. 

Porquê tal ostracismo imposto a “metade do céu”? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, de Alma de Mahler à Elise Freinet e à anónima companheira de Einstein, “por detrás de um grande homem havia sempre uma grande mulher”. Ou seria o contrário?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIV)

Brasília, 11 de outubro de 2043

Voltemos a falar de integral, integralidade, integração, começando por vos contar mais uma estória. Ouvi contá-la assim:

“Enquanto uma menina desenhava, a professora perguntou:

Que desenho é esse? O que estás a desenhar?

Estou a desenhar Deus – respondeu a menina.

Como poderás estar a desenhar Deus, se ninguém sabe como Ele é?

Quando eu acabar de desenhar, a senhora vai saber.”

Foi assim mesmo que respondemos, quando todo mundo duvidava de que fosse possível “desenhar” uma coisa chamada Escola da Ponte.

Eurico Lemos Pires foi personalidade marcante no campo da afirmação da identidade plural das ciências da educação, gestou os conceitos de escola integrada e de educação integral. O seu heterodoxo pensamento abriu caminhos para pensar a educação de diferentes modos. Investigador incansável, foi autor de livros como “Nos meandros do labirinto escolar”, no qual fez um relato sucinto da sua visita à Escola da Ponte.

Foram marcantes as imagens da sua passagem pela nossa escola. Logo à chegada, surpreendeu-se com o fato de não haver portaria nem porteiro e por encontrar um portão aberto. Antes que eu pedisse a uma criança que lhe mostrasse a escola, pediu-me que o “deixasse deambular pelos lugares onde houvesse crianças”. Acedi ao pedido.

A meio da manhã, fui encontrá-lo, sentado junto de uma mesa onde crianças preparavam o “guarda-roupa” de uma peça de teatro. As crianças tinham colado fitas de todas as cores nos escassos cabelos brancos do “amigo Eurico”. Paciente e feliz, o mestre com elas conversava. 

Não quis interromper o diálogo. Discretamente, me retirei dali. Só no início da tarde, quando o mestre Eurico parou o seu deambular, consegui chegar à fala com ele. Visivelmente comovido, me disse:

“Professor Pacheco, durante a minha já longa vida, visitei muitas escolas. Apenas nesta me foi permitido estar com crianças, brincar com elas”.

O Mestre Eurico manifestou agrado por ver como era valorizada a integração comunitária da escola, entendida esta como nodo de uma rede de aprendizagem propiciadora de desenvolvimento local, espaço em que se fomentava a liberdade de pensamento e de expressão, onde todos eram estimulados para a descoberta, para o questionamento e a resolução de problemas, onde a educação integral passava do teor do projeto da escola para a prática quotidiana.

Naquele tempo, no enunciado dos projetos objetivos como este era anunciado: 

“Promover educação integral do estudante, seu pleno desenvolvimento como pessoa”. 

Eram meritórias as intenções, como a de “assumir a educação como meio de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades”. Mas, como poderia uma escola fundada no paradigma da instrução assegurar uma prática efetiva de “educação integral”?

No Vale de Santiago, no Alentejo profundo, a Cristina reuniu famílias, professores e lideranças locais, num encontro fundador de comunidade. Numa velha pen drive, consegui reaver o documento que a Cristina enviou para o Agrupamento de Escolas:

“É necessário humanizar a educação, concretizar educação integral. A modernidade está nos tornando individualistas, portanto, precisamos aprender mais sobre convivência e diálogo, sendo oportuno falar de novas construções sociais.”

Havia quem “desenhasse” possíveis futuros. também havia quem os destruísse. Tristes tempos foram aqueles do início dos anos vinte! A Cristina viu ser destruído o seu projeto. Mas não desistiu. Como diria o Aleixo:

“Quem prende a água que corre / é por si próprio enganado / o ribeirinho não morre / vai correr por outro lado.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIII)

Cubatão, 10 de outubro de 2043

Como vos disse, na breve passagem por Cubatão herdei uma dose suplementar de esperança. Reparai que falo de esperança e não de otimismo. Como diria o Rubem, o otimismo é da natureza do tempo, a esperança é da natureza da eternidade. Os gestos de um educador perduram por gerações, porque a esperança, ao contrário do que muita gente pensa, não é a última a morrer – a esperança nunca morre. Através dela e de ícones humanizadores, sobrevivemos, humanizamos e nos humanizamos.

Estava próximo o fim de um tempo. E o início de outros, claro! Tempos de regeneração, que me impeliam a um derradeiro esforço de andarilhagem e de afastamento de seres amados. Uma vida de contínua viagem privava o viajante de estabilidade afetiva e emocional. Mas, “abelha fazendo mel
vale o tempo que não voou”.

De Cubatão para São Paulo e dali para Brasília, Porto Seguro, ao encontro de educadores éticos. Como aqueles que me acolheram em Cubatão e a quem devo a “dose suplementar de esperança”: o Luís, a Karen, a Lidiane, o Guilherme, um sem fim de nomes de anónimos construtores de futuros. Porque os projetos humanos dos idos de vinte, como não me cansei de repetir, requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos, exigiam que se transformasse uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual desse oportunidades de ser e de aprender, que praticasse “educação integral”. 

Anísio Teixeira, a maior referência do “Currículo em Movimento” concebia a ideia de uma educação integral, onde se acolhesse toda a amplitude do ser e se usasse como matéria-prima a própria vida: 

Se o nosso interesse é pela vida, aprender significa adquirir um novo modo de agir. Aprende-se através da reconstrução da experiência. Toda aprendizagem deve ser integrada à vida, ou seja, adquirida em uma experiência real de vida”.

O ser humano aprende quando tem um projeto de vida e o realiza nas dimensões cognitiva, afetiva, emocional, ética… é sempre um projeto de vida com os outros, numa escola em transformação, como Morin aconselhava: 

Temos a necessidade de reformar radicalmente o modelo de ensino nas universidades e escolas. O conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo. O modelo atual leva a negligenciar a formação integral e não prepara os alunos para mais tarde enfrentarem o imprevisto e a mudança”

Acompanhei o cotidiano de escolas que se preocupavam com a formação integral dos jovens e cujos professores se assumiram responsáveis por aquilo que fizeram de si, a partir do que deles a vida (e a escola) havia feito. 

Infelizmente, subsistia a crença da transferência linear do conhecimento em sala de aula. Uma cultura sedimentada ao longo de quase três séculos reproduzia-se a si própria, desde a universidade ao chão das escolas, impedindo a emergência de novas práticas e mercantilizando a Escola Pública. Numa breve análise de conteúdo de propaganda enganosa, identifiquei os termos frequentemente usados e o que mais me irritava era o uso e abuso da expressão “educação integral”. 

Os mercadores não faziam a mínima ideia do que isso fosse, mas logravam vender “poções mágicas”. No auge do estertor do instrucionismo, aprendizes de feiticeiro da educação lucravam com as preocupações de professores e pais, explorando a ingenuidade pedagógica da administração educacional.

Felizmente, secretarias de educação, como a de Cubatão, se abriam a novos tempos, a uma nova Educação. E para o vosso avô chegava o tempo de ir plantar árvore e olhar passarinho. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXII)

Cubatão, 9 de outubro de 2043

Foi uma agradável surpresa viagem a Cubatão. Com a Vovó Ludi, a Tina e a Zizi, pude confirmar que nem tudo estava perdido. Mais uma secretaria de educação se mostrava aberta a novos tempos. E ficou, mais ou menos, combinado um regresso, no ano letivo seguinte

Como enfatizaram alguns psicólogos russos de há mais de um século, o desenvolvimento humano ocorre em meio a uma rede de relações sociais, marcadas por um contexto sociocultural específico, é sempre um ato de relação. O aprendente aprende, quando tem um projeto de vida, um projeto de vida com os outros, participando de transformações, pois, como Augusto Boal advertira: “cidadão não é aquele que apenas vive em sociedade – é aquele que a transforma. 

Para ser, efetivamente, integral, a educação deveria contemplar a multidimensionalidade do Ser. Deveria acontecer, efetivamente, em tempo integral, isto é, a todo o momento, nas 24 horas de cada um dos 365 dias de cada ano. Requeria o questionamento do modelo de relação hierárquica, alteração de padrões comportamentais, atitudinais. Requeria a disponibilização de equipamentos coletivos e espaços de encontro, flexibilidade na organização, respeito pela diversidade. 

Com raras exceções, não era isso o que acontecia. Acompanhei práticas integrais e integradoras, que visavam o desenvolvimento local e ocorriam em múltiplos espaços sociais, tal como Lauro previa: 

Escola, no futuro, será um centro comunitário propulsor das equilibrações sincrônicas e diacrônicas do grupo social a que serve”. 

As emergentes “turmas-piloto” de comunidade de aprendizagem cumpriam o desígnio do Mestre Lauro. Fundadas no conectivismo, estruturavam redes sociais, contextos de mútua aprendizagem presencial e remota. No contexto de uma relação de agrado, vínculos afetivos, cognitivos, emocionais viabilizavam a produção de conhecimento. O desenvolvimento humano ocorria em meio a uma rede de relações sociais marcadas por um contexto sociocultural específico.

Em meados da segunda década deste século, acompanhei as práticas do “Mais Educação”. Era um belo projeto, como eram meritórias as iniciativas que visavam o desenvolvimento local e uma inevitável redenção da Escola. Mas, uma necessária reelaboração cultural requereria alteração de padrões atitudinais. A educação de tempo integral (e a educação integral) requereriam descentralização, questionamento do modelo de relação hierárquica, negociação e contrato, iniciativas culturais, disponibilização de equipamentos coletivos e espaços de encontro, a flexibilidade na organização e respeito pela diversidade. 

Porém, na perspetiva reducionista como vinha sendo interpretado e desenvolvido, o projeto de “escola de tempo integral” ocupava “tempos livres”, assegurava atividades conduzidas por monitores mal preparados e mal pagos e sem qualquer ligação com os projetos das escolas. As nobres intenções de educação em tempo integral disfarçavam a falência do modelo instrucionista.

Havia quem se apropriasse de conceitos como o de “educação integral”, para batizar práticas obsoletas, ainda que patrocinadas por empresas e até pelo poder público. E a prática do contra-turno contribuía para operações de cosmética pedagógica, eram meros processos de desculpabilização curricular. E chegamos aos idos de vinte e três numa lamentável situação, com a “educação integral” sequestrada por ministeriais artifícios e por organizações com boas intenções, mas ingenuamente crentes de que em sala de aula se poderia fazer educação integral. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXI)

Guarulhos, 8 de outubro de 2043

Sazonalmente, teoricistas e empresários ressuscitavam um conceito ou copiam uma prática de antanho, para deles fazer enfeite de tese ou produto vendável no mercado da educação. 

Num dia de outubro de vinte e três. enquanto esperava que a Vovó Ludi chegasse a São Paulo, eu refletia sobre dois modismos em voga, por essa altura: o “socioemocional” e a “educação integral”. O anúncio de seminários e congressos chegavam à internet, em catadupa, fazendo as delícias de palestrantes e o lucro de empresas do ramo educacional. 

Essa “febre” passou, como haviam passado a das “taxonomias”, a do “ensino híbrido” e quejandos. Mas, provocou danos irreparáveis, por ter sido ilusão de momento e paliativo de um instrucionismo tardio.

“Educação integral” era uma das expressões mais usadas para enfeitar projetos político-pedagógicos e para sofisticar o discurso dos preâmbulos de decretos. Era um tema recorrente nas palestras de leitura de power point e na história das ideias pedagógicas, desde a antiguidade. Já Aristóteles falava em educação integral. E, no início do século passado, por volta dos anos vinte, Claparède e Freinet preconizavam “uma educação integral ao longo de toda a vida”. 

As práticas inspiradas nesses autores visavam o pleno desenvolvimento pessoal e social, exercício de uma pedagogia do lugar. Partiam do pressuposto de que o ser humano era multidimensional, um complexo composto de afeto, emoção, estética, ética, espiritualidade e cognição. Porém, as práticas inventariadas, nos idos de vinte e três, não passaram de caricaturas. 

No Brasil, as experiências de educação em tempo integral, de que tive conhecimento, eram tímidas e os seus efeitos eram condicionados pela prática de um modelo escolar inadequado, no qual ainda muitas escolas insistiam, despendendo avultados recursos e obtendo um retorno escasso. 

Com a Vovó Ludi, a Tina e a Zizi, fui até Cubatão, ao encontro de educadores conscientes do risco de perigosa adoção de paliativos e “soluções milagrosas” para os males do sistema. Uma secretaria avisada, consciente, dava aos seus professores a oportunidade de vivenciar práticas de efetiva educação integral. No pressuposto de que, quando se falava de educação socioemocional dos alunos, se deveria cuidar da formação sócio emocional dos professores. 

Do que aconteceu vos falarei em próximas cartinhas. Por agora, somente vos deixarei uma conclusão retirada da produção teórica e de formações e palestras sobre “educação integral”, desastrosas práticas que apenas contribuíram para prolongar a agonia instrucionista. Por que não se admitia que nas escolas de sala de aula jamais seria possível concretizar educação integral?

A instituição Escola mostrava-se surda ao apelo de Morin: 

Temos a necessidade de reformar radicalmente o atual modelo de ensino nas universidades e escolas. O conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo. O modelo atual leva a negligenciar a formação integral e não prepara para enfrentar o imprevisto e a mudança”.

Apesar dos seus trágicos efeitos, uma cultura, sedimentada ao longo de quase três séculos, reproduzia-se a si própria, da universidade ao chão das escolas, impedindo a emergência de novas práticas. Muita da “educação integral”, que se fazia, enfermava desse mal. Nos idos de vinte já se questionava a “eficácia dos contra-turnos”, embora as “alternativas” fossem de duvidosa eficácia e eficiência. Disso vos falarei amanhã.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXX)

Lisboa, 7 de outubro de 2043

Para que não fosse cerceada a autonomia dos alunos, no processo de transição para novas práticas, a abertura organizacional estabelecida foi sendo matizada por um conjunto complexo de dispositivos que, a par e passo, se foram explicitando em relação às várias dimensões de organização do trabalho escolar. Entre eles, o “debate”. 

Era um dispositivo de trabalho coletivo onde cabiam, entre outros, a discussão de assuntos do interesse dos alunos e a gestão de conflitos. Realizava-se no final de cada dia, exceto à sexta-feira, dia em que todos os alunos se reuniam em assembleia. Mais tarde, esse dispositivo tomaria a forma de “roda de conversa”.

A Assembleia da Escola tinha um cariz mais formal e mais abrangente. Obedecia a uma convocatória, que estabelecia o rol dos assuntos a tratar. Decisões e conclusões eram registadas em ata, no final de cada reunião. 

Uma Mesa da Assembleia era eleita, no início de cada ano. Nos nove anos de escolaridade básica, os alunos participavam em cerca de duas mil rodas de conversa e em quatrocentas reuniões de Assembleia, espaços e tempos de aprendizagem de cidadania. Nesses encontros, se preparavam projetos, se resolviam problemas, se analisava e votava os relatórios dos “Grupos de Responsabilidades”.

A organização de meios e a gestão do bem-estar eram responsabilidade coletiva, de acordo com categorias de tarefas a que se dava o nome de “Responsabilidades”. O cumprimento das tarefas era incumbência dos alunos, sem interferência de adultos. Havia, por exemplo, o “grupo dos murais” (a quem competia manter os murais atualizados e organizados), o “grupo do recreio bom” (a quem cabia velar pelo bem-estar de todos, nos intervalos), o dos “responsáveis pelo material comum”, pelo “terrário” etc. Quinzenalmente, todos os grupos de responsabilidades apresentavam na reunião da Assembleia um relatório contendo a descrição de tudo o que tinham realizado.

A par da assunção de autonomia pelos alunos e professores, decorreram processos de reivindicação de autonomia da escola e comunidade. A lei nos era favorável. A fundamentação científica nos dava razão. E, em 2004, a Ponte celebrou um contrato de autonomia com o ministério da educação. 

Mas, vinte anos decorridos sobre a celebração desse contrato, na relação entre escolas e ministérios ainda prevalecia o autoritarismo e a burocracia:

“Entendemos que a melhor alternativa seria matricular nossas crianças na escola pública e eles frequentarem o espaço que já existe, onde teríamos possibilidade de uma educação verdadeira

Participei dos encontros de sábado li o “plano de inovação” e o documento “novas construções sociais”, mas ainda não entendemos as implicações legais.

As famílias estão inseguras e queríamos entender melhor como isso poderia ser executado. Muitas famílias têm receio do Conselho Tutelar, algumas estão em processo judicial, lutando pela guarda dos filhos, por exemplo. Seria possível nos orientar mais detalhadamente sobre isso?

De que forma se poderia exigir professores para essa turma? Quais as implicações legais e quais as providências teríamos de tomar?

Como proceder, quando a escola não nos envia o seu PPP? Eles se fazem de mortos, dizem que “está sendo reformulado” e fica por isso mesmo. Esse é o relato da maioria das famílias

Seguimos ansiosos para avançar com o trabalho do coletivo.”

Embora desgastado por décadas de resiliência e de ver destruídos nobres projetos, acedi a novos pedidos de ajuda. Num sábado de outubro, pela enésima vez, expliquei o que explicara… cinquenta anos atrás.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXIX)

Leiria, 6 de outubro de 2043

Em 2023, educadores, sindicatos e universidades se uniram num esforço comum de “Defender a Escola Pública”, defendendo a continuidade de um projeto feito em equipe: o “Fazer a Ponte”. Já vos descrevi o Núcleo de Iniciação desse projeto. Junto, agora, uma síntese dos restantes. Em outra cartinha, entrarei em pormenores, pois o projeto evoluiu ao ponto de apenas considerar a existência de dois núcleos.

No Núcleo de Transição do período 1976-2004, algumas crianças permaneciam apenas o tempo necessário para reconstruírem os seus itinerários de aprendizagem. No encontro consigo e com os outros, a este núcleo chegavam crianças vindas de outras escolas. Vinham acompanhadas de relatórios elaborados por psicólogos, médicos, pedopsiquiatras. Careciam de tempo de adaptação. Precisavam de tempo e de um tipo de atenção que lhes facultassem a recuperação da autoestima e uma integração plena na comunidade que as acolhia. 

Os sujeitos de aprendizagem – os jovens já eram o centro do processo de aprendizagem – do Núcleo de Desenvolvimento circulavam em total liberdade pelos diversos espaços de aprendizagem (já não havia salas de aula) e conviviam numa estrutura familiar, sem separação em ciclos ou anos de escolaridade. Pela aproximação a um contexto de cariz eminentemente acolhedor, afetivo, se minimizava os efeitos da transição para uma vida escolar “diferente”, onde novos e disponíveis amigos ofereciam condições de estabilidade emocional, em “trabalho de pares” e de equipe. 

Passemos ao espaço e ao tempo de aprender, citando, novamente, Freinet:

“Organizamos minuciosamente a vida da escola para que desta organização decorram naturalmente o equilíbrio e a harmonia.” 

O derrubar das paredes libertou alunos e professores da rigidez dos espaços tradicionais e acompanhou o derrube de outros muros. Juntamente com alterações arquitetónicas, outras opções organizacionais marcaram a rutura com o modelo tradicional de organização da escola, que considerávamos não respeitar as individualidades, nem favorecer o sucesso de todos. Transformamos um “gueto escolar” num nodo de uma rede de aprendizagem chamada comunidade.

Também abolimos os efeitos de mecanismos de aprovação/reprovação, por não lhe encontrarmos sentido numa escola em que se procurava que tudo se conjugasse para proporcionar condições de uma efetiva gestão flexível do currículo. 

Esta excecional abertura das condições de organização do trabalho escolar viabilizou a criação de condições de eliminação de escolhos, que a organização tradicional impunha ao desenvolvimento de um projeto singular de educação, em que se procura estabelecer a coerência entre as vertentes cultural, socializadora e personalizadora da educação. 

A rutura com o instrucionismo e o incremento de uma nova cultura de escola geraram consequências a vários níveis. A partilha de conhecimento e a interajuda passou a ser quotidiana e em todo o sistema de relações, em todos os espaços de aprendizagem, na comunidade, a partir do exemplo dado pelo trabalho em equipe dos professores. 

A vivência “inclusiva, integrada e integradora” assumia um carácter formativo, veiculava valores sociais e normas por todos assumidas e elaboradas com a participação de todos. Na Ponte dos idos de setenta, vivia-se, cultivava-se, respirava-se a delicadeza no trato, a suavidade na voz, a afabilidade para com o colega e amigo, a disponibilidade da escuta, a atenção ao outro, a capacidade de expor e de se expor. 

Se tudo isso fora realizado em 1976, por que razão não o seria… em 2023?

 

Por: José Pacheco

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