Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLIV)

Moita, 3 de junho de 2043

Quando, num auspicioso junho de vinte e três, eu preparava um setembro inovador, recebi da Raquel e do Adrian uma mensagem de que vos darei a ler alguns excertos. 

Diziam ser uma mensagem “um pouco longa”, para que eu entendesse “o nosso ponto de situação neste caminho cheio de dúvidas, avanços, recuos”. Mal sabiam esses amigos que muitos outros pais me enviavam mensagens bem mais longas. E que as “dúvidas” de quem protegia os seus filhos dos malefícios do “sistema” também eram fruto de “avanços e recuos”.

No setembro de 2043, não haveria lugar a recuos. Tínhamos esperado mais de meio século por aquele momento. Havia pais decididos a agir. A lei nos protegia. As ciências da educação nos davam guarida. A paciência se esgotara.  

“Contextualizando: Temos três filhos, sendo que o mais velho fará seis anos neste ano e temos o desafio de ver o melhor caminho a seguir no que respeita à educação. 

Em fase de pré-escolar frequentaram projetos lindíssimos, onde havia o respeito pela individualidade e interesses de cada criança, muito contacto com a natureza e favorecimento da autonomia. Vimos crianças felizes, amadas, seguras e que pensavam por si. 

Contudo, o ensino tradicional que nos é oferecido, a partir dos seis anos assusta-nos. É standardizado, onde todos têm de aprender a mesma coisa e ao mesmo tempo. 

Dada a nossa experiência pessoal e falando com várias pessoas fora e dentro da área da educação, notamos que o ensino está de tal forma massificado que quase não existem escolas com adultos devidamente preparados (e em preparação) que compreendam e respeitem as necessidades individuais de cada um, que potencializem os dons de cada criança/jovem e os faça chegar à sua vocação, criando um projeto de vida. 

Acreditamos que o professor deve ter um papel de observador e guia, potencializando a curiosidade das crianças, fazendo-as pensar, desenvolver, tornando-as pessoas capazes de, no futuro, serem pessoas empreendedoras, ativas socialmente, com espírito crítico, seguras, autónomas e acima de tudo respeitadoras de si próprias, dos outros e do ambiente, pois só assim se educa para a Paz (sim, o bullying e cyberbullying também nos preocupam).

Introdução longa, para demonstrar que tudo isto começou a criar em nós, há uns anos, inquietude e uma vontade de saber mais. Foi então que começamos à procura de alternativas pois parecia-nos que ir contra um sistema era uma batalha perdida. 

Depois de falarmos com imensas pessoas e projetos, pensamos que como não tínhamos alternativa, teríamos de meter as “mãos na massa” e criar algo (…) Seriam necessários dois pilares fundamentais: um profissional alinhado com este mindset e um espaço que tivesse bastante terreno para as crianças terem contacto com a natureza. 

Demos conta que o profissional não era nada fácil de encontrar… 

Conseguimos reunir com o Presidente da Câmara e ele ficou fascinado com o projeto. E disse-nos que nos apoiaria. Ligou para o Vereador dizendo que ele próprio queria um projeto destes no Município e tinham de ajudar-nos com a questão do espaço. 

No meio disto tudo, tínhamos contactado o Prof José Pacheco que nos respondeu a dizer que nos ajudaria. A dúvida que pairava em nós era: 

“Como professores do ensino público conseguem fazer isto, estando dentro do sistema que lhes impõe imensas condutas contrárias? Montar um projeto fora da escola seria o caminho?”

Eram muitos os caminhos. Pedi a esses e a outros educadores que conversassem sobre o assunto, no encontro das 11 horas de sábado (do Brasil, 15 horas de Portugal).

Vos direi o que nesse encontro se falou.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLIII)

Santa Maria da Feira, 2 de junho de 2043

No Portugal de há cerca de vinte anos, os decretos 54 e 55, acompanhados da portaria 181, apontavam para uma nova construção social de educação. Mas, parecia que os professores andavam distraídos. 

A lei propunha que se fizesse cumprir princípios e finalidades da educação, conforme expresso na Constituição e na Lei de Bases. Assumia-se o princípio de que era preciso rever os conceitos de educação e de aprendizagem, bem como reconfigurar as práticas escolares. Porém, os “planos de inovação” não passavam de tralha administrativa amarrada a regulamentos de burocracia a “papel químico”.

Li uma caterva de “planos de inovação”, com uma sensação de dejá vu. De inovação nada continham. Eram pródigos em jargão científico e citações de “autoajuda pedagógica”:

“Práticas pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI, como o pensamento crítico, a comunicação, atender aos diferentes ritmos e necessidades dos alunos; promover o trabalho autónomo e diferentes estilos de aprendizagem centrados no aluno. Estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas. Uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente. O professor profissional reflexivo, comprometido e empenhado com a sua profissão” etc. etc.”. E por aí seguia o costumeiro relambório. 

Nas escolas da “flexibilidade curricular” passava-se de trimestre para semestre, utilizando “uma bolsa de horas para criar mais uma disciplina”, colocando mais uma hora aqui e menos uma hora acolá. 

Alguns “planos de inovação” apelavam à gamificação, o que sugeria que a escola se transformasse num imenso casino feito de “aulas invertidas” e outros subprodutos neoeducacionais. 

A OCDE já dissera que nenhum país e sistema de ensino conseguira que todos os seus alunos alcançassem um nível de linha de base de proficiência em matemática, leitura e ciência. Reconhecia-se que o modelo instrucionista – da sala da aula – era incapaz de a todos assegurar o direito à educação. Porém, insistia-se em ignorar a declaração da OCDE e em contrariar o disposto na lei. Isto é: as decisões de política educaconal deveriam obedecer a critérios de natureza cietífica (artigo 48º da LBSE).

O amigo Nóvoa dissera que, “no futuro, não haveria salas de aula”. Mas os “planos” falavam de míticas “salas de aula do futuro”. Era afirmado nos ditos “planos de inovação” que “todas as salas de aula poderiam ser inovadoras” (sic). 

À margem do descalabro, eu acompanhava projetos com potencial inovador. Analisado o projeto educativo, passava-se à definição de princípios. Da visão de mundo se passava à ação. E o exemplo da Ponte inspirava pais e professores.

Se uma “árvore de valores” tinha por tronco a Solidariedade, o enunciado de princípios poderia começar deste modo:

“A educação é um processo relacional, possuindo um caráter social, que deve ser assumido nas práticas educativas. 

A solidariedade, mais do que um objetivo ético a ser atingido, é uma condição primordial para a realização do trabalho educativo. Este se desenvolverá plenamente, se considerar e incluir as diversas relações entre todos os atores envolvidos: educandos, educadores, gestores, famílias e comunidades. 

Cabe a escola incentivar a integração de agentes e espaços comunitários, constituir-se em polo integrador e irradiador do saber e do esforço social pela educação.”

No junho de vinte e três, preparamos o trabalho a realizar no setembro seguinte. Pais conscientes e professores éticos se uniram para, civicamente, desobedecer. E para, prudentemente, reaprender a aprender. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLII)

Paços de Brandão, 1 de junho de 2043 

No final de maio de há vinte anos, era por demais evidente o estertor do velhíssimo modelo de ensinagem. Sob a forma de “aulas invertidas” e “ensinos híbridos”, a moribunda herança da Prússia Militar do século XVIII recebia os últimos alentos e arrastava consigo um sem-fim de maleitas. 

Um estudo divulgado nesse mês apontava que um em cada três professores de crianças sofria de Burnout. A pesquisa avaliou cerca de quatrocentos professores de colégios públicos e privados. A maioria apresentava prevalência de sintomas similares: o desejo de se afastar do trabalho e pensamentos negativos sobre sua atuação.

Os jornais assim descreviam a situação:

“Um terço dos professores da educação básica sofria da síndrome de Burnout. Salários defasados, violência nas escolas e pressão por resultados estão entre os fatores que contribuem para a aumentar o estresse no exercício da docência.

Professor lida com violência física e verbal na escola, falta de estrutura, sofre pressão da gestão escolar e da exigência dos pais.”

O esgotamento da Mafalda estava atrelado a fatores como a pressão psicológica por parte da gestão e dos pais, sobrecarga de “papelada” e assédio moral. A escola a demitiu, quando ela voltou de licença, por questões de… saúde mental.

Apodrecendo aos poucos e provocando vítimas, o “sistema” resistia. Lembrei-me de uns versos do Miguel:

“Não sei quantos seremos, mas que importa?!

Um só que fosse, e já valia a pena.

Aqui, no mundo, alguém que se condena

A não ser conivente

Na farsa do presente

(…) 

E o que não presta é isto, esta mentira quotidiana.

Esta comédia desumana e triste,

Que cobre de soturna maldição

A própria indignação que lhe resiste.”

Dando largas à indignação, chegara a hora de colocar um ponto final nessa “comédia desumana e triste”. Suave e pacientemente, contudo firme e definitivamente, partindo da denúncia para o anúncio. mostrando possibilidades, ao invés de lamentar obstáculos. 

Estávamos em 2023. Os meus amigos Daniel e Sandra me levaram a conversar com professores ávidos de mudança. Ainda os havia! Como, também, havia diretores de agrupamento de toda as idades, mas de uma nova geração.

Num sistema de ensino em decomposição acelerada, o autoritarismo que o caracterizava ia dando lugar a um novo e democrático modo de gerir escolas. Longe ia o tempo em que os inspetores incutiam medo e tratavam os professores como “inferiores”. Como nos idos de setenta…

“Terá de voltar para a sala de aula!”

“Poderá dizer-me porquê, Senhor Inspetor?” 

Assim mesmo, com letra maiúscula e bovinamente sussurrando.

“Porque sou seu superior hierárquico.”

“Mas, Senhor Inspetor, faça o favor de ler o nosso projeto. Verá que não faz sentido ter livro de ponto, nem voltar para a sala de aula.”

“Vós já tendes um projeto pedagógico?”

Era esse o nome que o ministério dava ao que, mais tarde se chamou “projeto educativo”, um documento raramente lido pelos professores. 

“Sim, temos. O Senhor Inspetor quer ver?”

Não quis. Escreveu algumas “considerações” no “Livro de Registo de Visitas da Inspeção” e foi embora. Mostrar a um inspetor uma prática coerente com um projeto escrito era como mostrar a cruz ao diabo.

Durante meio século, a decisão ética plasmada num papel escrito numa máquina de escrever nos livrou do assédio de inspetores e de outros meirinhos. Por isso, há vinte anos, recomendava aos educadores eticamente assumidos que lessem, analisassem o projeto das suas escolas, que identificassem as matrizes axiológicas neles contidas. E que agissem. Que a um ato de Amor juntassem o q.b. de Coragem. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLI)

Casével, 31 de maio de 2043

Completo nesta cartinha a “série” de evocações de insignes educadores, apesar de muitos outros ficarem por referir. Todos têm em comum o anúncio de um novo tempo na Educação, o tempo das comunidades. 

O mais longevo que conheci foi José Anchieta. Um dos bispos que propôs a sua elevação aos altares, disse que a paz só poderia começar quando conseguíssemos ver no outro um irmão igual a nós. Também o José o disse, de muitos modos, sem que o escutassem. E somente nos idos de vinte foi tempo de os educadores serem sensíveis à necessidade da escuta e de perguntar como poderíamos aspirar a um país fraterno e justo, por via da educação.

Decorridos séculos sobre os seus apelos, já encontrávamos educadores atentos, entre a imensa mole dos distraídos, aos quais as difíceis condições do exercício da profissão retiravam o discernimento. Muitos anos após as suas missionárias labutas, educadores éticos tentavam modificar a educação, por acreditar nos seres viventes e na sua capacidade de transcendência. 

Anchieta chegou ao sul na armada do Duarte Góis, correspondendo ao pedido de Manuel da Nóbrega, a incumbência da construção do Colégio, onde viria a compor a primeira gramática de língua Tupi. Ao redor do Colégio, no planalto de Piratininga, fundou um povoado a que deu o nome de São Paulo, embrião de uma megalópole onde, nos idos de vinte, a educação negava o espírito do colégio original. 

Deambulara pelo litoral do Brasil, ajudando a fundar cidades, auxiliando a concretização de inadiáveis projetos, de que uma nascente colónia carecia. Não foi escutado, no seu tempo, como vos disse, mas o seu exemplo emergiu do fundo da história, consubstanciando-se em comunidades, que ele concebeu.

Embora, no século XXI, fosse discutível o modelo jesuítico de educação e questionáveis as observações do Padre Vieira sobre a escravatura, seria preciso não esquecer que foram os jesuítas os fundadores da comunidade dos Sete Povos das Missões. Com heróis, como Sepé Tiaraju, organizaram as comunidades indígenas, protegendo-as da escravatura e da extinção. 

A sanha assassina que se abateu sobre as Missões repetir-se-ia na destruição de Canudos. Estes exemplos, tão maltratados pelos historiadores que fizeram a história dos vencedores, constituíram dramáticos prenúncios do retorno da utopia às terras do sul, cujos povos inspiraram os falanstérios, os albigenses e cátaros, a Icária e a Nova Harmonia.

O espírito de vizinhança fomentada pelas Missões, que havia sido esquecido, convidava a uma convivência pacífica e salutar. A permanência das crianças junto das suas casas e vizinhança, acompanhada de um tutor (embora com outra designação no século do Anchieta) e de familiares, permitia apontar para ações que estimulavam a comunidade a participar de decisões, em busca do modo melhor para se viver. 

Antecipando o teor das cartinhas de junho, se diga que a mensagem de Anchieta era a da fundação de comunidades autossustentáveis em todos os sentidos: ambiental, econômico e político. Nos limites dos conhecimentos e da tecnologia de seiscentos, Anchieta descrevia uma nova práxis. Sem dispor de um “google maps”, sem saber em que consistia elaborar um “mapeamento participativo” identificava “pontos de aprendizagem”, antepassados das “pontes digitais”. 

Centenas de anos separavam a Missão de Anchieta das bibliotecas comunitárias e de sistemas digitais integrados, as intervenções facilitadoras de comunicação, de permutas de informação, de geração e de partilha de conhecimento.

Sobre isso conversaremos, partir de amanhã.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCL)

Liteiros, 30 de maio de 2043

Volto a falar-vos de alguém cuja obra, ainda hoje, é preciso dar a conhecer. Mesmo se tratando de uma educadora brasileira, a sua obra influenciou movimentos de mudança ocorridos no Portugal dos idos de vinte, no tempo em que o Zé Branco e a Roberta se uniram a outros pais, para fundar círculos de aprendizagem, humanizando espaços devolutos de antigas escolas. 

Nesses protótipos de comunidade, mais do que uma revolução tecnológica, a Web 5.0 prefigurava uma revolução social e cultural. Do consumo de conteúdo se passava à fruição e produção crítica de informação, não substituindo os espaços dos afetos e gerando embriões de uma democracia digital solidária. Pressenti o espírito da Maria pairando por lá…

Quem se recordará de Maria Nilde e das suas percursoras classes experimentais, sementes dos ginásios vocacionais? Em boa hora o Luciano se apercebeu do valor desse projeto e a convidou para participar da comissão de educadores, que, nos idos de sessenta, concebeu um projeto de comunidade. E Nilde coordenou o último assomo de renovação pedagógica, antes da chegada de tempos sombrios. 

Lauro afirmou que o Vocacional foi a experiência mais significativa na educação pública brasileira, até à década de 1970. Em São Paulo, Americana e Batatais, a integração curricular, a pesquisa e os projetos de intervenção na comunidade eram o dia a dia dos seus ginásios. 

A arte, as práticas agrícolas, o trabalho em grupo-equipe, os estudos sociais, eram parte de um currículo integrado de escola comunitária, bem como a prática da autoavaliação e a substituição das notas por conceitos, que geraram a rejeição de múmias acadêmicas. 

Em São Paulo, o seu curso noturno criou oportunidades para jovens trabalhadores do bairro, a quem a escola tradicional havia negado conhecimento. Na base da construção do currículo, estava a realidade social, escolas à medida das características culturais e socioeconômicas da localidade, a parceria com outras instituições, partilhando responsabilidade social. 

Uma proposta assim estava condenada às pressões do governo e à repressão do regime militar. Nem uma década durou. Resistiu à crise de sessenta e cinco, quando Nilde negou a matrícula “ao jeitinho brasileiro” de um filho de funcionário de confiança do secretário de educação. Demitida, a mobilização de professores, funcionários e pais de alunos, em assembleias na capital e no interior, forçaram o governo a reconduzi-la no cargo de coordenadora. Porém, o AI-5 impôs limitações, que ela contrariou, por ser herdeira do legado do seu mestre e amigo Florestan. A consequência foi a invasão policial e militar de todos os ginásios vocacionais, a sua prisão e a dos seus companheiros.

Na década de setenta, Nilde implantou um programa para mulheres de baixa renda nas favelas de São Paulo. Essa e outras iniciativas a dotaram de uma extraordinária formação experiencial, que desembocou numa extraordinária tese de doutorado, merecedora de atenção no século XXI, que já não viu nascer.

A ditadura impôs-lhe a aposentadoria, crente de que a impediriam de agir. Juntamente com alguns companheiros, também perseguidos pelo regime militar, fundou uma assessoria de planejamento de ação comunitária e educacional, interveniente na defesa dos direitos humanos e dos perseguidos políticos do regime militar. Voltou à prisão. 

Com o passar do tempo, os jardins e os espaços de livre aprendizagem dos extintos ginásios vocacionais foram substituídos por muros e estacionamentos de carros, as janelas foram ornadas de grades e fechadas com cadeados.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLIX)

Riachos, 29 de maio de 2043 

Florestan foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros. De origem humilde, viveu as consequências do flagelo da desigualdade social. Dedicou a sua obra e sua vida a defender a redução da desigualdade e a democratização da Escola.

Como deputado federal, participou da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases brasileira, na busca por uma Escola que integrasse a dispersão cartesiana e assumisse a dignidade da autonomia.

Malgrado os avanços que a lei de bases consentiu, a escola brasileira continuou imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites, uma escola onde imperava a violência simbólica e até a violência explícita. 

Um governador de estado inaugurou “uma escola construída no Padrão Século XXI, que custou quase três milhões” (sic). Pouco tempo após a pompa e circunstância da inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro da “escola modelo”. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida e ficou ferido. 

A diretora disse que “o rapaz tinha comportamento normal e boas notas.” 

O porteiro do colégio prestou depoimento: 

“A Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam.”

Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria as placas em volta da escola.

Mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. E tranquilizou os intranquilos: 

“A Polícia Militar ficará na porta da escola, entre os próximos quinze e trinta dias, até que o projeto de segurança seja implantado.” 

Um superintendente da secretaria de Educação “averiguou as condições da infraestrutura de segurança” e, peremptoriamente, afirmou:

“Um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola.”

A Polícia Militar, por sua vez, informou que faria rondas intermediárias nas escolas. Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem pode dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. 

A mãe de um aluno decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque “se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local.”

Segundo a Secretaria de Educação, algumas escolas estaduais iriam passar a ser administradas pela Polícia Militar. O governo enveredaria por um “plano de recuperação da qualidade da escola”, através da colocação de policiais militares formados em pedagogia. Anos mais tarde, uma vaga de ataques a escolas se saldou pela morte se muitos professores e crianças. 

Quanta ignorância a de pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso ao autoritarismo e à violência simbólica, numa escola-caserna! Um ambiente castrense nunca poderia gerar autonomia e disciplina.

A experiência das escolas cívico-militares teve o mesmo destino de outras absurdas iniciativas de política educacional, foi jogada no balde do lixo da história. Até à década de trinta, o sistema permaneceria tão corrupto, hierárquico e autoritário como no tempo de Florestan, sempre exposto a tenebrosas tentações.

Nas suas “visitas” ao DOPS, Florestan sentiu o abandono a que foi votado pela maioria dos seus colegas. Apenas contou com a ajuda do Fernando, que, embora fosse bem relacionado com os generais, não conseguiu evitar que Florestan fosse cassado pelo regime militar e feito prisioneiro. 

Por que se calavam os educadores desse tempo perante abusos? Por que se omitiam perante aberrações? Por que lamentavam a situação, se eram parte do problema?

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVIII)

Alcorochel, 28 de maio de 2043

Netos queridos, que mais vos hei-de dizer que vós não saibais, se tudo já foi dito e redito? A década de vinte da vossa entrada na vida adulta foi, também, o tempo da “adolescência” de um novo sistema de ensinagem, que o vosso avô ajudou a conceber com uma pequeníssima contribuição, de que vos falarei nas cartinhas que vos enviarei no próximo mês. Até lá, vos deixarei com referências àqueles que o anunciaram.

Começo pela Nise, que cuidou da loucura benévola daqueles que estavam no Engenho de Dentro, em nada se comparando à loucura daqueles que, fora do hospício, insistiam em manter um sistema falido, gerador de ignorância e infelicidade. Loucos de que nos falava Einstein, que insistiam no errado, delapidando o erário público em projetos, pactos, programas, capacitações, consultorias, assessorias e outras inutilidades. 

Denunciar os maus-tratos infligidos aos ditos “loucos” equivalia a denunciar a guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem liberta e libertadora, na qual os aprendizes lidassem com um conhecimento mutante, “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”

Muito tempo decorreria até que, à semelhança do Jung, o Brasil a Nise encontrasse. E concretizasse a exigência da Cecília, professora-poeta (ou poeta-professora?), sua contemporânea que, nos jornais do Rio, exigia “educação no lugar da corrupção”

O Brasil renascia de tempos sombrios e a Cecília lançava um apelo na forma de versos: 

Vem, retira as algemas dos meus braços

Porque a vida só é possível reinventada.” 

Nos idos de vinte, decorridos cem anos, as suas corajosas “crônicas da educação mostravam-se atuais, porque nos falavam de indignação. Tal como Freire e outros educadores que, no seu tempo, nos disseram que deveremos exercer o dom da revolta perante as injustiças do cotidiano. Como fizera o Freinet, nos campos de batalha pela liberdade da Europa, consciente de que “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiçados, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos.” 

A construção social Escola, que a Cecília denunciou, feita de edifícios com grades, de salas habitadas por solidões, de cartesianas segmentações, de relações hierárquicas e burocratizadas, desprovida de fundamentação científica, sobrevivia, qual cadáver adiado suportado por enfeites paliativos. Para quê mais reformas, mais pactos, se a professora Cecília vivia, em permanência, na idade dos porquês? 

Pelos seus dezesseis anos, a Cecília se fez professora. Mas, quando se candidatou à cátedra de literatura da Escola Normal, foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. Porque expressou a sua rebeldia nas páginas dos jornais, pugnando por uma efetiva renovação educacional, sofreu perseguições.

Cecília ousou romper com os tabus de uma sociedade tão moralmente doente quanto a da década de vinte deste século, denunciando um regime que invocava “a Liberdade como sua padroeira”, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”. Propunha “uma reforma de finalidades, de democratização da escola, todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. 

Cecília foi merecedora dos versos que o Manuel Bandeira lhe dedicou: 

Cecília, és tão forte e tão frágil 

Como a onda ao termo da luta 

Mas a onda é água que afoga 

Tu és enxuta.”

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVII)

Sabugal, 27 de maio de 2043

Há uns vinte anos, fui até ao interior do país, para conhecer, mais profundamente, o trabalho da Celmira e da sua jovem equipe (dele vos falarei mais adiante). No mesmo dia, mão amiga me fez chegar um fragmento da obra de Oscar Varsavsky. Aqui vo-lo deixo, no original. Espero que a língua castelhana não vos seja estranha… 

“Más importante para el cambio de la sociedad es la falta de educación para el cambio, que significa echar por tierra una serie de valores que, hasta el día de hoy, tienen una fuerza indiscutida. 

(…) Hay miles de estos problemas, que no se resuelven cambiando planes de estudio o colocando televisores en las escuelas, sino pensando concretamente en cómo decir las cosas para que no suenen a catecismo, cómo se enseña la ciencia sin que se convierta en cientificismo.

El gran reto a los pedagogos es diseñar un sistema de enseñanza que, partiendo de un pequeño grupo inicial que sabe lo que desea enseñar, consiga ampliarlo hasta que eso pueda transmitirse a la población sin perder tiempo y sin traicionar su contenido. 

Téngase en cuenta que ese grupo inicial no va a disponer de la Biblia (ni de un librito rojo) ya escrita, cuyo texto basta difundir. Muchas de las ideas estarán todavía tácitas y habrá que explicitarlas. 

¿Cómo se organiza un equipo de redactores de textos, fieles, pero no dogmáticos?

¿Cómo se ligan los principios generales con la realidad cotidiana, para que el niño deje de ver a la enseñanza como un mal cuento de hadas, igualmente falso pero aburrido? 

¿Deben subsistir las escuelas o ser reemplazadas por otro tipo de institución? 

La educación debe continuar toda la vida de una manera formalizada, concurriendo a clases obligatorias, o mediante la lectura informal de revistas o los programas de televisión, ¿o cómo?

Na década de setenta do século passado, quando a Ponte já dava resposta a algumas perguntas, Varsavsky, era referência no Chile e em outros países da América Latina.

O autor formulava perguntas perturbadores para os bem pensantes. Para aqueles que, detendo um saber académico, padeciam de cientificismo, dogmatismo e teoricismo, doenças infantis das ciências da educação. Também por isso, decorrido meio século, a ementa de congressos, a agenda de ministros e a pauta de reuniões de “especialistas” se mantinham cópias de perguntas jamais respondidas.

E a Ana dizia:

“São esses porquês que me fazem insistir em permanecer lutando, questionando avaliações sem sentido, alunos em cabines como baias de cavalo, sentados um atrás e longe do outro. Como seria bom se pudessem ser livres para aprender. Iam amar”.

 A Ana poderia não saber como poderia sair de um sistema de “cabines como baias de cavalo”. Mas, sabia que nele não poderíamos continuar. Perdêramos meio século em estéreis “polémicas” replicadas nas redes sociais, nas quais excelentes teóricos debatiam o “sexo dos anjos” da educação. 

Se nelas eu intervinha com perguntas semelhantes às do Varsavsky, o silêncio era a resposta. A publicação do livrinho “Inovar é Assumir um Compromisso Ético com a Educação” muitos amargos de boca me causou. As críticas veladas (e destrutivas) e as reações negativas de teóricos, que eu considerava amigos, agiram como fator de desmotivação. Como diria o outro, “mal com os homens por amor d’el Rei, mal com el Rei por amor dos homens.” Bom era acabar, deixar abertos caminhos novos. 

Mas ainda passariam meses de cansaço, até confiar nas mãos de amigos do Coletivo da Educação Humanizada e da Escola Aberta um esboço de projeto futuro, os meus parcos conhecimentos e os destinos da deriva educacional.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLVI)

Brogueira, 26 de maio de 2043

Netos queridos,

Dissestes terdes ficado surpreendidos com a pergunta deixada no final da cartinha de ontem: “Os responsáveis teriam lido a Lei de Bases do Sistema Educativo?”. Vos esclarecerei.

Como diria a Rúbia, “a educação torna-se subversiva, quando a comunicação envolve o processo da aprendizagem. O livro de Salman Khan, “Um mundo, uma escola”, busca repensar o sistema vigente, para libertar um modelo de mais 200 anos. Vários autores já trazem um pensamento do paradigma da comunicação como o Oliveira Lima, Agostinho da Silva (cuja foto junto a esta cartinha), Antônio Nóvoa, entre outros, que nos ajudam a pensar a Educação numa dinâmica do encontro com o mundo.”

O artigo 48º da LBSE dizia-nos que o funcionamento das escolas se deveria orientar por “uma perspectiva de integração comunitária”, sendo, nesse sentido, favorecida “a fixação local” dos seus professores. Isto é: os professores deveriam residir, trabalhar, viver nas suas comunidades. 

Dizia-nos, também, que a administração e a gestão das escolas se deveriam orientar por “princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo”. Esse desiderato não se concretizava em escolas onde havia diretor, dado que ele estava sujeito ao dever de obediência hierárquica. Mesmo que discordasse de “ordens superiores” era obrigado a cumpri-las. E as famílias dos alunos e os agentes educativos locais quase não participavam da administração e gestão das escolas. Até era frequente que os pais nem sequer pudessem passar do portão da escola dos seus filhos.

Na lei diz ainda que, na administração e gestão das escolas, “devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”. E não era isso que acontecia. A regulamentação da lei era feita segundo uma racionalidade técnico-administrativa, carente de fundamentação científica.  

Voltando ao excelente artigo da Rúbia, que vos dei a conhecer, há alguns dias:

“Necessitamos de unidade mental comum em vez de instintos comuns. Para refletir temos que compreender o sentido de futuro para vida dos seres humanos.

Temos vários autores que retratam este tema. Margaret Mead em seu livro Continuidades da Evolução Cultural, investiga as realizações do homem e sua mudança social. O Pierre Teilhard de Chardin em seu livro, O Futuro do Homem, investiga numa direção cósmica a coletivização da humanidade. 

Essas reflexões servem para compreensão da natureza humana, a identificação com seu semelhante e as diferenças, a ideia de tempo, o encontro, as inovações e as realizações. Assim, se a ciência organiza o caos para criação da ordem, aprender e estudar é fundamental. 

Estudar e investigar são condições existentes nas comunidades de aprendizagem. A curiosidade e o uso dos conceitos ajudará o andamento das comunidades de aprendizagem. Nelas encontramos um laboratório de convivialidades diante do paradigma da comunicação.

As realizações humanas fazem parte da cultura. Para tanto, a cultura eleva a consciência pelo modo como percebemos, imaginamos e simbolizamos o mundo. Bronoviski diz que “não há permanência para os conceitos científicos, porque eles são apenas a nossa interpretação dos fenômenos naturais.” Digamos que há num mundo uma riqueza de conexões, e precisamos ter consciência dessa riqueza. Cá para nós, o que alimenta a comunidade de aprendizagem é justamente a riqueza das conexões existente no mundo. A consciência surge pela capacidade de imaginar. Onde há imaginação, há vontade e há consciência. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLV)

Boquilobo, 25 de maio de 2043

A Lucrécia quis saber a minha opinião sobre “problemas de indisciplina”. Disse que havia “turmas difíceis” na sua escola.

Disse-lhe que não poderia opinar, mas perguntar: 

Por que há “turmas difíceis”? Se deixar de haver turmas, talvez a “dificuldade” desapareça. Por que há turmas, Lucrécia?

“Porque está na lei” – respondeu.

Duvido que esteja, minha amiga. Mas, se está na lei, por que está na lei? Diz-me.

Não respondeu. Lamentou-se:

“Nos intervalos, quase não conseguimos conversar. Mesmo com a porta da sala dos professores fechada, é grande o barulho lá fora. Quase gritamos, para nos fazermos ouvir. O que é que tu achas? Como poderemos resolver esse problema?”

Disse-lhe que estava proibido de “achar” Somente poderia responder fundamentando a resposta numa práxis de mais de cinquenta anos de chão de escola e nas ciências da educação. Respondi:

Há barulho, porque há intervalos, não é?

“Sim. É isso”.

Se deixar de haver intervalos, deixará de haver barulho, não é?

“Sim. É”.

Então, por que há intervalos? Por que razão os alunos têm de esperar pelo intervalo para fazer xixi? Não podem fazer xixi, quando sentem vontade?

Por que razão todas as escolas começam as aulas à mesma hora?

Por que há salas de aula?

Por que duram as aulas cinquenta minutos?

Por que há bimestres, trimestres, quadrimestres, semestres e ano letivo?

Muitas perguntas fazia à Lucrécia. Nenhuma obteve resposta.

Nos anos sessenta e setenta do século passado, visitei aldeias pulsantes de vida, crianças brincando na rua, vizinhos conversando, prédios de escola repletos de alunos.

Nas décadas de oitenta e noventa, a migração para o litoral e para o estrangeiro reduzira o número de alunos, e o ministério resolveu encerrar escolas com menos de dez alunos. Nas aldeias dos idos de vinte, ficariam apenas velhos e casas vazias. O ministério matara comunidades.

O processo de extinção de escolas – mais uma estulta iniciativa ministerial – culminou por vota de 2006. A medida inseria-se no “reordenamento da rede escolar do 1º ciclo”, que o governo pretendia concluir durante a legislatura Era doloroso ver como um Secretário de Estado, por quem eu nutria grande admiração, contribuia para esse grave atentado:

“A existência de escolas dispersas com um número reduzido de alunos tem todo o tipo de inconvenientes, desde prejuízos pedagógicos graves, problemas de socialização, de aproveitamento dos alunos”.

Inconvenientes? Prejuízos pedagógicos? Problemas de socialização? De aproveitamento? Que Deus nos valesse! Inconveniente era destruir culturas, matar comunidades. Prejuízos pedagógicos seriam os resultantes de um modelo educacional criminosamente imposto às escolas. E que socialização oferecia a nova prática? 

De burrice em burrice (sem ofensa para os burros, que eram bem mais inteligentes), os burocratas do ministério foram desertificando povoados. As crianças passaram a ser transportadas para os grandes centros populacionais e armazenadas nos chamados “centros educativos”. Na realidade, eram centros deseducativos, megalómanos prédios, servidos pelo “transporte escolar”.

Nos idos de vinte e três, muitos centros educativos contavam com menos de dez alunos por professor. Em alguns, havia dois ou três alunos por professor. Se assim era, segundo princípios da “pedagogia predial”, por que razão o ministério não mandava fechar os centros educativos? 

Por que “carga d’água” crianças da Brogueira eram obrigadas ao vaivém diário entre a sua aldeia e Torres Novas?

Os responsáveis teriam lido a Lei de Bases do Sistema Educativo?

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 26 27 28 29 30 31 32 147 148 149
Scroll to top