Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MIV)

Queimados, 22 de setembro de 2042

Por que falo de olhares e de modos de ver? 

Porque me incomodaram alguns olhares de pena, que vi dois educadores lançarem sobre uma criança dita “deficiente”. Porque os diferentes não precisam de piedosos olhares, mas da prática de uma “inclusão”, que ainda não passou de enfeite de tese. 

Irritaram-me os olhares, mas não o dei a perceber. Brinquei! Numa dupla rutura de olhar – uma técnica em que os meus netos eram especialistas e meus mestres – afivelei um sorriso e optei por narrar aos pios educadores um episódio exemplar. 

Certo dia, fui fazer uma palestra. Parque de estacionamento com lotação esgotada, uma condutora em desespero, três voltas ao circuito, até que reparei em dois lugares desocupados. Apontei para lá. A condutora respondeu: 

“Então o professor não vê que são lugares destinados a viaturas de deficientes?”

“E, então?… – Retorqui, apontando para os meus olhos de estrábico – Sou diferente e mereço esse lugar.”

A condutora entendeu a ironia, sorriu, continuou rezando entredentes à “Senhora da Vaga” (como se dizia em Brasília), na busca por um lugar onde encostar o carrinho. 

Algumas voltas depois, a minha companheira de viagem contava à plateia o sucedido, para justificar o atraso e criar ambiente. E o episódio relatado foi pretexto para a primeira intervenção no debate sobre “inclusão”. Como sempre, comecei a “palestra”, perguntando:

“O que quereis saber?”

E pela primeira e única vez, em mais de quarenta anos de “palestras”, alguém ergueu o braço -~ agradável surpresa!

Talvez para gerar informalidade, a senhora do braço erguido atirou um chiste: 

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão. Fala do assunto com conhecimento de causa, porque é deficiente!”

Gargalhada geral!

“Resgatei o gracejo e continuei no mesmo tom o diálogo que reproduzo:

“A senhora importa-se de dizer o que entende por “deficiente”?”

“Deficiente é toda a pessoa que tem qualquer coisa a menos do que uma pessoa normal.”

“Então, se é esse o conceito de deficiente, diga-me, por favor, de quantos modo a senhora vê.”

“É claro que eu vejo como uma pessoa normal, de uma só maneira!” – exclamou a minha interlocutora de visão “normal”. 

“Pois eu vejo de três modos diferentes. A senhora consegue fazer o mesmo?”

“É claro que não!”

“Então, se a senhora vê de um só modo e eu consigo ver de três modos, quem será “deficiente”?”

“Ele é deficiente e é louco…” – murmurou a senhora “normal”. 

Dizia o Jung que cada indivíduo representa uma nova experiência de vida. Cada ser humano é único e irrepetível, e será preciso que os educadores saibam encarar o diferente com a mesma alegria que a sua mãe teve ao dá-lo à luz. 

O que é “deficiência”? E “normalidade”? 

A resposta é conforme aos olhos que vêem. Ser louco é “normalidade” num mundo ao contrário. Loucura e génio são parentes. Os grandes génios poderiam ter nascido “deficientes”. Foram os desajustados de todos os tempos que nos legaram o que de mais sensível e belo o ser humano produziu. 

Deficientes seriam, porventura, aqueles que semeavam a morte nos campos de batalha da Ucrânia e acenavam com uma “guerra nuclear”, e os políticos que espalhavam doença e fome.

Deficientes, ou normais? Loucura, ou génio? Tudo depende da perspetiva.

Há muitos anos, escrevi um livro a que dei um título divergente, “anormal”: “Quando eu for grande, quero ir à Primavera”. Estávamos em pleno setembro brasileiro, mas ainda esperávamos a “Primavera da Educação”. Sentíamos que aquilo a que chamávamos “Escola” começava a sair de um longo, muito longo Inverno de indiferença perante a diferença.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MIII)

Lagoa das Amendoeiras, 21 de setembro de 2042

Com tantas idas e vindas, já nem sabia em que estação do ano eu me achava. Já não era só o jet lag que perturbava o decorrer dos dias de incessantes viagens. 

Num dia de setembro em que o outono acinzentava os céus de Portugal, o Brasil celebrava a chegada da Primavera. Nesse longínquo setembro, a Primavera estava dentro de mim, feita metáfora de novas realizações. 

Na cartinha de ontem, falei-vos de uma visita a uma “escola secundária”. Nesse tempo, as escolas ainda estavam cartesianamente segmentadas: ciclos, anos, fundamental, secundário, médio, superior… Não se sabia muito bem o que o “médio” mediava. Talvez fosse um fosso entre o ensino “superior” e o “inferior”. Talvez… 

Também não se sabia se “secundário” correspondia a uma ideia de supletivo do “primário” (o “primeiro” dos ensinos), se seria o final do fundamental, ou o início do um “suplementar” obrigatório. Enfim! De absurdo em absurdo, o sistema de ensinagem aproximava-se do seu inglório fim. E sobre os escombros, junto à Lagoa das Amendoeiras, acontecia humanização.

A estória que, ontem, vos contei não era inédita. Somava-se a muitas outras situações de barbárie instituída. 

Na base das dificuldades de controlo de impulsos agressivos daqueles alunos, não estaria a presunção da “neutralidade” da relação humana? A degradação do sistema de relações poderia ser um dos fatores de indisciplina. Os professores careciam de interrogar uma Escola sem sentido e de resgatar a solidariedade perdida num solitário exercício da profissão. 

Urgia que o professor se decifrasse a si próprio, para que pudesse decifrar e erradicar violências que se ocultavam por detrás de aparências. As escolas careciam de espaços de convivência reflexiva, dado que os seres humanos eram, implícita ou explicitamente, conduzidos por valores, que eram fundamento ético norteador (ou suliador) do comportamento humano, traduzido numa só palavra. 

No Brasil da década de vinte, a criação do núcleo de projeto marcava o início da reconfiguração de práticas educativas. Os educadores que o constituíam procediam à identificação de valores comuns. Cada educador elaborava uma lista de valores, que considerava serem fundamentais na sua vida. Por vezes, era usada uma dinâmica chamada “árvore dos valores”. Identificados os valores comuns, tomava forma uma equipe de projeto. 

A partir do inventário de valores, era elaborada uma carta de princípios e estabelecidos os acordos de convivência. Desse modo, as escolas eram consideradas espaços públicos, nodos de redes comunitárias. Devolvia-se a escola à comunidade, na partilha da responsabilidade de educar, nomeadamente na interação com a área da saúde pública, a arte e a cultura.

Entre a escola, o bairro, a habitação, o clube desportivo, a associação cultural e recreativa, o local de trabalho ou de lazer, eram estabelecidas correntes de interação humana capazes de dar sentido ao quotidiano das pessoas e, assim, influenciar positivamente as suas trajetórias de vida. 

Assim se contribuía para a criação de espaços que, pela sua densidade antropológica, podiam servir para ajudar a despertar a vocação humana para a transcendência e, nessa medida, funcionar como verdadeiros laboratórios de laços sociais, onde a vinculação ética ao outro tivesse a marca da solicitude mútua, do respeito e da sensibilidade. 

Potenciado em práticas de autêntica relação social, o reconhecimento intersubjetivo se apresentava como condição de convivência, de paz e solidariedade, valores reclamados pelo mundo contemporâneo.

 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MII)

Jaconé, 20 de setembro de 2042

Há muitos anos, visitei uma escola secundária (ou de “ensino médio”, como se dizia no Brasil), que vivia em estado de sítio. Fui até essa escola, correspondendo ao apelo de um grupo de professores, qual pronto-socorro de projetos, exercendo solidariedade no interior de um país de brandos costumes. Cheguei a tempo de assistir a um episódio que correspondia a outras situações antes descritas pelos professores com quem trocara correspondência. 

Quando entrava, quase fui atropelado por professoras em louca correria. Outras estavam “perfiladas de medo”, coladas às paredes dos corredores, enquanto por elas passavam hordas de furiosos jovens. 

Quando consegui estabelecer diálogo com uma das ofegantes colegas, fiquei sabendo que ela tinha acabado de retirar a sua viatura incólume do parque de estacionamento da escola, mas que outras não tinham tido sorte, pois os seus carros ficaram com vidros partidos, por efeito de pedradas. 

Gerara-se confronto entre gangs de alunos. E até mesmo um policial, que interviera na refrega, havia ficado sem a sua pistola. A escola vivia num caos permanente. 

Quando a tempestade pareceu amainar, entrámos para uma sala. Conversámos. As professoras disseram que a escola dispunha de um regulamento disciplinar, mas que eram frequentes as repreensões, as faltas disciplinares, os processos disciplinares, as suspensões temporárias e até mesmo a expulsão de alunos. 

Respondi que não era isso que eu pretendia saber. E perguntei se as faltas disciplinares e as expulsões resolviam o problema. 

Gerou-se alguma perplexidade. Perguntaram-me se eu estava ali para ajudar, ou para criticar. Acalmei as hostes e insisti na ideia de analisar o “estatuto disciplinar do aluno” que, entretanto, alguém tinha ido buscar ao gabinete da direção. 

Li-o. Era um repositório de proibições. Quase todas as alíneas começavam pelo advérbio “não”. 

Os professores assentiram que os alunos não tinham participado na redação das regras. Mas…

“O que é que os alunos têm a ver com isso?” – inquiriu uma professora mais exaltada. 

“Tem tudo!” – ripostei, com algum cuidado, pois o ambiente estava muito tenso – “Se os alunos não participam na elaboração de um regulamento, dificilmente o compreenderão e muito menos o hão-de cumprir.”

“Isso é tudo treta, colega! Vê-se bem que não trabalha nesta escola! E eu não estou disposta a perder mais tempo!” – e dali se foi resmungando. 

Pedi às que ficaram que lessem a primeira alínea do regulamento disciplinar. Leram: 

“Não podes fumar no WC”. 

Perguntei:

“Se algum jovem ler esta proibição, como reagirá? Certamente, irá desobedecer, irá fumar no WC, nem que seja só para vos aborrecer. É, ou não é?”

Por ali fiquei mais de três horas, escutando professoras que, confiando na minha discrição, desocultaram fatos que pareciam extraídos de um qualquer filme de terror: um aluno do décimo ano apontou uma navalha à professora; outra professora foi encostada ao fundo da sala e, não fora a intervenção de um colega, arriscar-se-ia a ser violada. E mais não conto, porque julgareis inverosímil a narração. 

No fim da reunião, fui dizendo às professoras que, para o médico, o problema não era o doente, mas a doença. E que o mesmo se aplicava ao professor: o problema não era o aluno. Se um aluno denotava desajuste e comportamentos “disruptivos”, ou o aluno estava doente, ou estava doente a escola. Ambos padeciam de uma enfermidade que urgia diagnosticar e sanar. E isso não se conseguiria com recurso a proibições e sanções – uma ferida profunda e gangrenada não se curaria com pensos rápidos.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MI)

Búzios 19 de setembro de 2042

Adotando na prática o preceito montessoriano “Segue a Criança”, seguia o olhar da infância e partilhava com amigos reflexões decorrentes desse olhar. 

Em tempos idos, este avô aprendente seguia a direção do vosso olhar, para rever a paisagem onde se embrenhou, vezes sem conta. Foi no subir e descer aqueles montes que aprendi uma lição. Acreditamos que, atingido o cume de uma montanha, teríamos atingido o limite do horizonte. Chegados ao cimo, nos apercebíamos de que o caminho se estendia para o fundo do vale. Atravessado o vale, novo caminho se apresentava, monte acima, até ao ponto em que seria preciso descer, para voltar a subir. E, depois, descer e subir e descer e subir…

Mais tarde, na Terra do Brincar, a janela do escritório era um ícone, através do qual um olho treinado no olhar de criança perscrutava o verde da vegetação, penetrava o verde-azul das águas, sondava o azul do infinito. 

Um olhar desatento submeter-se-ia a ilusões de ótica, veria no horizonte uma restinga arborizada, a ondulação na lagoa, o voo em vê dos biguás. Mas, sobrevoando a vastidão de pormenores que a paisagem encerrava, eu detectava sucessivos recortes antes ocultos a uma visão bidimensional estrábica. 

“O segredo do seu olhar” é nome de filme, de um filme que me tocou profundamente. E que invoco, quando vêm à memória imagens de um mundo incomunicável, não suscetível de ser entendido ou percebido, de um mundo interior só captável pelo olhar para dentro, que dá expressão à nossa identidade e singulariza o nosso destino. 

À medida que vamos tomando consciência desse mundo interior, vamos aperfeiçoando a focagem do olhar para fora, sem perder o segredo do saber olhar de uma criança grande. 

Mão amiga me fez chegar um manuscrito religiosamente guardado no meu baú de velharias, a narrativa de uma mãe atenta a infantis descobertas, uma mãe que sabia olhar. Peço perdão à autora por não o mencionar, pois a humidade apagou parte do texto: 

“Vi Yerê ficar em pé. Mas era como se ele não tivesse percebido a façanha, ele continuava em plena concentração, não comemorava a vitória. Depois, se acocorou com harmonia e cavou com a mãozinha direita uns punhados de areia. Dessa vez, não levou para boca. Com esses nadinhas de areia, olhava atento a sua mão. 

Estava em pé o meu filho! Em equilíbrio tranquilo, sem esforço. E eu a ver o milagre. 

Abriu a mão e dos dedinhos e iam caindo bolinhas de areia molhadas do mar. Soltou uma gargalhada. A gargalhada se quebrava no ar a lhe balançar o corpo, sem parar, a ver areia a cair. 

Yerê se equilibrou em pé a primeira vez em sua vida, para experimentar. O corpo que deixava o chão, a areia que voltava ao chão, Yerê descobrindo a força da Terra, descobriu-se assim, sem pensar, em pé.”

Olhares virginais denotam consciência de ocultas realidades, projeções só possíveis por um olhar para dentro, por dentro. Aprendendo a interrogar “realidades”, chegamos à compreensão daquilo que nos é permitido ver fora de nós, além de nós, e que nos pode isentar da “pinoquização cultural” e nos pode levar por utópicos caminhos.

Utopia não era sinônimo de impossibilidade. Utópico seria algo que indicasse uma direção a novos olhares. Nos idos de vinte e dois, num tempo em que se presumia neutralidade de “pontos de vista”, num tenebroso tempo do medo e da mentira, não nos deixávamos guiar por alheios e condicionados olhares. Pressentíamos o intangível. E, como diria Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não as querer”. 

Concretizando utopias, recriando vínculos, reolhando, concretizávamos um “inédito” viável.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (M)

Cabo Frio, 18 de setembro de 2042

No setembro de há vinte anos, a minha amiga Débora me brindou com uma oportuna reflexão sobre os “alunos de ninguém”:

“O aluno de ninguém está perdido no tempo e espaço, num lugar sem significado. Ele não pega direito no lápis, não desenha a letra direito, não decifra aquilo que lhe parece um hieróglifo. Mas ele está lá, com todo um potencial que é único, uma aprendizagem que é só dele, a ser dividida com o outro. 

Os alunos de ninguém parecem fantasmas sentados em carteiras enfileiradas, ou perambulando pelos corredores das escolas. Não compreende o que tem que fazer, quando se depara com um papel em branco e alguém, falando em uma linguagem anglo-saxônica o desespera. Sua, treme, tem dor de estomago, vomita, mas precisa preencher aquela folha em branco, para ninguém olhar, avaliar, reelaborar, apontar caminhos, mesmo que encruzilhadas, para que ele possa escolher qual a estradinha percorrer. E, se não chegar a lugar algum, saber de onde retomar.

Ele corre como se quisesse explodir sentimentos. Não tem nenhum lugar aonde chegar, não há lugar para ele. Grita, morde, se cala, olha para o nada. Acaba desistindo de ser de alguém, já que ninguém o escuta, ninguém o compreende. Ppode ele gritar, jogar cadeiras sa ee arranhar, que ninguém o perceberá como alguém. Até que pode chegar o momento em que o aluno de ninguém se cale, adoeça e se perca nos seus próprios sentimentos.

Cansei de falar que o professor tem que mudar, mas não perderei a esperança de dar voz ao aluno de ninguém.”

As palavras da Débora acordaram recordações. 

Quando regressou de férias, o João vinha mais atento a fronteiras e oportunidades. 

Mais ou menos por essa altura, Lucas já contava doze anos de idade. Foi transferido para a escola do professor João. Na escola de onde viera, tinha passado seis anos no fundo da sala, sem sair da primeira classe. Estava rotulado de autismo, imaturidades e atrasos vários, como escrevera a psicóloga no relatório. Também enfermava de epilepsia e incontinência urinária. 

Com persistência e trabalho de equipa, os professores da escola do João foram montando cerco a um Lucas relutante de contacto, ou sequer de ténues aproximações. 

Durante semanas, foi impossível passar a fronteira que bordejava o círculo vazio que o Lucas a todos impunha. Até que, certa manhã, o professor João se apercebeu do interesse do Lucas por uma revista que estava lendo, e deixou-a sobre a mesa. 

O Lucas logo a apanhou e foi sentar-se no canto da sala. Absorvido pelo conteúdo da revista, não deu pela aproximação do professor, que se sentou ao seu lado e o sossegou. Disse-lhe que poderia ficar com a revista, se a quisesse.

Aquietado, o Lucas pousou o dedo indicador sobre a legenda da fotografia de um carro. 

“Queres saber o que está aí escrito?”

O Lucas não respondeu. Mas o professor João leu a legenda: 

“Ford.”

O Lucas deslocou o dedo para a legenda da gravura ao lado. 

“Queres saber o que está aí escrito?”

O Lucas acenou com a cabeça. E o professor disse: 

“Peugeot.”

De gravura em gravura, o João foi ditando ao Lucas: 

“Nissan, Renault, Volvo, Toyota…”

O Lucas, que, ao cabo de seis anos, nem o seu nome escrito conseguia reconhecer, aprendeu a ler e a escrever… em três meses. Pelo método global de palavras, como é de ver. Aprendeu a ler e a escrever em português, mas também em inglês, em francês, em alemão, em sueco. e até em japonês!

Não se pense que eu defendia o espontâneo e o improviso na aprendizagem. Apenas apelava à atenção e à sensibilidade dos educadores. Pedia-lhes que soubessem identificar fronteiras, mas que também soubessem aproveitar oportunidades.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCIX)

Rio das Ostras, 17 de setembro de 2042

Encontrei o Alberto, à saída de mais uma visita à Ponte. Esse jovem professor de Português dizia-me que pensara em abandonar a profissão. Era essa a sina das escolas que ainda tínhamos nos idos de vinte. Se alguns professores tentassem melhorá-la, logo dez ou vinte surgiriam para os impedir. Sucedia o cansaço, o desespero, a desistência. 

Nos professores que ainda não tinham desistido de o ser eu observava características comuns. Sabiam, por exemplo, que uma teoria sem a caução da prática era algo estéril, entretenimento de académico ocioso. E que uma prática que enjeitasse a reflexão crítica e as contribuições de uma teoria prudente era inconsequente, mero aventureirismo pedagógico. 

Sabiam que, entre as condições indispensáveis para a concretização de um projeto, avultava a necessidade de todos os professores possuírem um completo domínio conceptual desse projeto. Sabiam que as reuniões de professores não poderiam continuar a ser pautadas pelo predomínio das “opiniões” e por exercícios de senso comum pedagógico. 

Sabiam ser necessário passar da discussão centrada em “impressões” para uma reflexão centrada na reinterpretação das práticas. Sabiam que as conversas circulares, com gente a olhar para o relógio, somente serviam para colecionar atas, projetos de faz-de-conta, relatórios, mapas estatísticos, bugigangas pedagógicas que mantinham as escolas cativas de uma racionalidade administrativa e burocrática. 

O Alberto era visitante assíduo da nossa escola. E um bom conversador. Compensava a carência de teoria com a boa-vontade, que o fazia questionar… “achando”:

“Professor Zé, eu acho que falta qualquer coisa aqui, que eu não sei o que é.”

Efetivamente, faltava. Mas, só trinta anos mais tarde, eu viria a encontrar o que faltava. Num tempo em que a quase totalidade das escolas ainda tinham sala de aula e professor dando aula, a Ponte já havia centrado o processo no aluno-sujeito de aprendizagem. E eu compreendera que o centro não era… o aluno.

No decorrer de um congresso, eu tentava explicar o que era um círculo de aprendizagem, uma comunidade e uma rede, uma professora interpelou-me nestes termos:

“O colega não está aposentado? Então, por que diz que continua no chão da escola?”

“Digo-o por que é lá que me sinto útil. E ser aposentado não é o mesmo que ser inútil.”

“Pois…, mas o que é que está a fazer nas escolas?”

“Estou a iniciar um projeto de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem.”

“E, quando acabar esse projeto, deixa de fazer projetos?”

“Não. Eu continuarei ajudando educadores.”

“A fazer o quê?”

“A ajudar a fazer projetos para acabar com as comunidades de aprendizagem, porque o mundo é composto de mudança…”

Mal sabia eu que, muitos anos depois desse diálogo, num lugar chamado “Terra do Brincar”, uma nova construção social de aprendizagem surgiria. E que tudo recomeçaria, pela introdução de um dispositivo fulcral da comunicação: a tutoria.

O aprendiz expressava a sua singularidade numa aprendizagem significativa com impacto na comunidade, enquanto eram desenvolvidos dispositivos de integração curricular, para produção de conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. 

A definição do currículo revestia-se de um caráter dinâmico, de um permanente trabalho reflexivo, para que fosse possível a aquisição de saberes, a produção de currículo e não o consumo e cumulação de informação estéril. E, a par do desenvolvimento de competências essenciais, questionava-se a função social da escola.

Transformávamo-nos, inovando.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCVIII)

Carreira (Leiria), 16 de setembro de 2042 

Querida Alice, querido Marcos, espero que este velhíssimo avô não abuse da vossa paciência, quando evoca ecos do passado, quando retira do baú das velharias algo a celebrar. Se estivéssemos em 2022, hoje, seria o início do “ano letivo”. Dele vos falei, há quarenta anos, quando nascestes:

“Em setembro, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola é só um saltinho de pardal. Dentro de poucos dias, a criança que és há de ser “aluno”. Quero acreditar que, em 2007, já não sofras os dramas que crianças de outras gerações suportaram. Como todas as crianças, sentirás apreensão e curiosidade. Irás fazer novos amigos e conhecer adultos que, supostamente, te ajudarão a crescer e a compreender o mundo. É sobre esse mundo novo e misterioso, que se abre para os teus olhos, que eu te venho falar”

As duas últimas cartinhas vos falaram da morte da professora Therezita e do jovem Kevin. Ontem, poderia ter invocado o aniversário do Rubem. Hoje, o nascimento do bisavô António. Mas, a vinte anos de distância, decidi falar-vos de renascimentos, a propósito do início de um ano letivo. 

À distância de vinte anos, o invoco, para homenagear aqueles que devolveram a um septuagenário de então sonhos de infância e uma fé pedagógica, que andava perdida. 

A partir de 2001, as viagens à pátria europeia passaram a ser de curta duração. Mitigada a saudade de familiares e amigos, o vosso avô logo regressava à mátria sulista. Mas, a viagem de 2021 prolongou-se por quase todo o 2022. Vos direi por quê.

Nessa viagem, foi grata a surpresa de encontrar gente consciente da necessidade de mudança. Confesso que o cansaço acumulado em décadas de desencanto me induzira em algum pessimismo. E só essa surpresa me fez ficar no outro lado do oceano, por quase um ano, adiando o voo que me devolveria ao sul. 

Percorri um país da educação, que eu desconhecia e que parecia sair da letargia de dois séculos. Conheci educadores extraordinários, como a Alda, a Ana, a Fátima, a Helena, a Cristina, a Sandra. Fiz novas amizades e me solidarizei com pais como o João e o Guga, com mães como a Cristina e a Andreia. Encontrei uma nova geração de excecionais diretores de agrupamento, como o Manuel e a Adélia. E não arriscarei fazer a lista completa, porque ocuparia muito mais espaço do que o desta cartinha. 

Foi com essa nova geração que arrisquei concretizar um velho sonho, o de uma nova construção social de aprendizagem e de educação. Revestido de uma esperança renovada, ganhava novas forças e procurava acompanhar urgentes transformações.

A Lei de Bases estabelecera que o sistema educativo se deveria organizar de modo a implementar práticas democráticas e processos participativos, partindo do princípio de que cabia à escola um papel fundamental no desenvolvimento local. Visava-se rever a atuação das escolas nos planos cultural e pedagógico, alargando simultaneamente a sua capacidade de diálogo com a comunidade em que se inseriam. 

O crescimento exponencial do conhecimento, a investigação emergente nos domínios das neurociências e no da exploração da inteligência artificial já não encontravam resposta nas teorias tradicionais. O centro do processo já não era o aluno, mas o sujeito de aprendizagem no contexto de novas construções sociais de aprendizagem e de educação. E, ao cabo de meio século de tentativas vãs, eu encontrava interlocutores, fazia sentido falar de “diálogo”. 

Cada cidadão se assumia como designer de uma vida com os outros. Concretizava-se a utopia das cidades justas, suportadas em práticas escolares fundadas numa nova visão de mundo. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCVII)

Cotia, 15 de setembro de 2042

Há seres que atravessam a vida como estrelas cintilantes, mas frágeis por serem gente. 

Como qualquer ser humano, o Kevin era único, irrepetível, dotado de um talento, que mereceria expandir-se. A Penha o ajudou a realizar-se, numa tenda de circo, a ágora da Escola do Projeto Âncora. O Kevin se fez artista. Proverbiais eram a sua alegria, o seu brilho, que se apagaram no mesmo setembro da partida da Therezita. Faleceu no mesmo dia da Rainha Elizabeth, mas no anonimato, porque “a dor da gente não sai no jornal”. 

A Penha assim o descrevia:

“Me lembro dele pequenino em sua primeira aula de circo, com seus olhinhos brilhantes. O Kevin olhou para os equipamentos e disse “Vou aprender tantas coisas aqui!”.

A Juliana o recordava, ternamente:

“Kevin, menino incrível, extremamente educado e livre. Quantas vezes pude da frente de minha casa acompanhar seus lindo saltos e dança. Com certeza o que vier de lembrança sobre você será de um sorriso lindo e de um corpo livre e leve. 

E a Lívia o exaltava:

“O bailarino Kevin virou anjo. Deixará para sempre na memória de quem o conheceu o emblema do talento. Por onde Kevin saltava, ganhava bolsa de estudos, como recebeu da Bathka e da EDA (Escola de Desenvolvimento Artístico). Em escassos dezesseis anos, aprendeu seis tipos de dança, integrou a série documental “Borboletas e Sereias”, estudou teatro no Ballet Paula Castro e estava pronto para estrear seu segundo musical.

Kevin, que o mundo possa se deslumbrar ao te ver dançando. Teu extraordinário talento, tua beleza e alegria sempre habitarão nossos corações. És inspiração para todos nós. Voa, Kevin, brilha sempre!”

“Morre jovem o que os deuses amam”, dissera o Pessoa, em memória do seu amigo Mário:

“Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la.  Uns morrem; aos outros, tirado o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem a morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida.”

Na Ponte, as crianças criaram uma “editora” e publicaram “A “Cor das Vogais”, invocando uma estória antiga. Aquela em que a criança pergunta ao pai: 

“Pai, qual é a cor do A?”

“Não sei, meu filho.”

E a todas as perguntas que o filho lhe fazia o pai ia respondendo não saber.

“Pai, não te importas que eu continue a fazer perguntas, pois não?”

“Não, meu filho. Se assim não fosse, como poderia aprender todas as coisas que me ensinas?”

Que se abram os olhos e os ouvidos ao entendimento dos sons do mundo. É necessário escutar “a voz que vem do coração”, os sons sensíveis, amorosos.

Querido Marcos, não sei se te recordarás de teres ficado atento à voz da Violeta: “Gracias a la vida!”  A Violeta era como Kevin, uma criança grande que morreu de amor e, por isso, vive.

Os talentos se revelam prematuramente, o artista faz-se bem cedo, se não for frustrada a propensão. Nos idos de setenta, a Diana não se apercebia de que estava a inventar poesia que não rimava. O Dario, moço-poeta de oito anos de idade, não estava consciente do seu dom. Numa manhã de escola, talvez inspirado no verde das árvores que o sol de Primavera sublinhava, foi um pequeno Lorca: 

“O amor é verde / Doce como pipocas / Mas com açúcar a dobrar / Cheira a carvalho / E é mais quente que um vulcão a fervilhar / Tem o som de qualquer coisa / De que eu não posso falar / Move-se como um caracol / Pois é leve / E faz-me sentir feliz.”

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCVI)

Butantã, 14 de setembro de 2042

O setembro de há vinte anos foi mês de morte e de ressurreição. Em dois tristes dias chegaram notícias da partida da Therezita e do Kevin.

Foi pelo início do século que descobri o Te-Arte. Foi após a minha primeira visita à Escola Amorim Lima. No lado oposto da Praça Elis Regina, aconteceu um deslumbramento dos sentidos. Ali, tudo tinha a medida da infância. E, por assim ser, a presença dos adultos que ali educavam fazia sentido. 

Acompanhei a Therezita na terceira CONANE (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), a de 2013, em congressos como o de Guarulhos, onde fizemos a foto que encima esta cartinha. Combinamos encontro no Projeto Âncora, mas a Therezita sofreu um pequeno acidente, e a reunião com a discípula Renata e o sobrinho Pedro não se realizou. Encontramo-nos em tantos lugares, que nem sei dizer. O que sei é que muito aprendi com o exemplo dessa Mestra.

Restou o travo amargo de algumas confidências dela escutadas. Muitos anos antes, a Therezita solicitara alvará para o seu jardim de infância. Um ministério burro recusou-lhe esse estatuto, porque o chão do Te-Arte não era plano, o que constitui, na opinião dos burocratas, um perigo para as crianças. Havia árvores, às quais as crianças poderiam subir e… cair. Mas, nunca uma criança do Te-Arte necessitou de tratamento hospitalar.

A lista de absurdas exigências era longa: as paredes teriam de estar pintadas de branco asséptico, o número de crianças por metro quadrado superiormente estabelecido não poderia ser ultrapassado, as crianças deveriam usar uniforme e serem divididas por turmas e por idades. Dignamente, a Therezita recusou cumprir as ministeriais exigências. E os idiotas ministeriais apenas reconheceram o Te-Arte como “centro de recreação”. 

Felizmente, ficaram registos. A Dulcília escreveu um belo livro sobre um lugar onde a sensibilidade se reinventava a cada instante e o impulso criativo ganhava raízes. A Fernanda, que fora criança feliz no Te- Arte, realizou um documentário, o “Para o amanhã nascer feliz”. Assisti à sua projeção na tela de um cinema de São Paulo e pude confirmar que uma vida dedicada ao cuidar da infância não se extinguiu no doze de setembro de há vinte anos – o seu espírito permanece vivo, até hoje e pela eternidade. Imagino-a no seu lugar etéreo, conversando com o Darcy, a Nise, o Agostinho, a Nilde… 

Um ano antes do desenlace, no dia do nonagésimo aniversário da Therezita, a Fernanda fazia o “retrato” de uma educadora ímpar:

“Professora capixaba, avó universal, mentora, musa inspiradora, mulher porreta, criou em plena ditadura militar a escola quintal Te-Arte, um trabalho disruptivo, que segue sendo uma referência, um refúgio e um oásis para as nossas almas. 

Com seu rigor fundamental, amorosidade e muito estudo e trabalho, a Tê vem distribuindo sementes de afeto e coragem para centenas de crianças, famílias e educadores que tiveram a sorte de, neste espaço atemporal, sem separação por idade, de natureza abundante, muita música, arte e cultura popular brasileira, vivenciar no corpo brincadeiras, tempo para fazer nada, para se descobrir e se conhecer, para brincar com o barro, com areia, para subir em árvore, colher e comer fruta do pé, tempo para construir brinquedos com martelo e serrote de verdade, para romper pinhatas e atravessar ritos de passagem, para conhecer nossas raízes culturais, para ouvir histórias de saci, de bruxa e lobisomem, comer vaca atolada, bolo de fubá, paçoca, pé de moleque e pipoca, e para aprender a respeitar os limites, a si e ao outro.”

Bem hajas, Therezita!

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCV)

Saquarema, 13 de setembro de 2042

No setembro de vinte e dois, um estudo do Edulog desocultou uma dura realidade. Os jornais noticiavam:

“Falta experiência aos formadores dos professores do básico e secundário. Falta experiência e formação aos docentes que ensinam professores.”

O estudo da Fundação Belmiro de Azevedo revelava que um terço dos docentes responsáveis pela Formação Inicial de Professores não tinham formação no ramo educacional e a muitos dos que tinham formação académica ajustada faltava “experiência de dar aulas no ensino obrigatório”.

Com ressalva para o adestramento em tecnologias digitais, a formação que se fazia por catálogo, em supermercados de créditos para progressão na carreira, era uma grande mentira, desperdício de milhões de euros. Se não, vejamos o que nos dizia uma notícia de jornal:

“Uma equipa de investigadores analisou as características académicas e profissionais dos docentes que asseguram a formação inicial de professores dos ensinos básicos e secundário em Portugal e concluiu que (…) um em cada três professores não tem formação no ramo educacional e os perfis académicos estão desajustados à natureza de algumas componentes de formação, segundo o estudo “Perfil académico e profissional de professores do ensino superior que asseguram a Formação Inicial de Professores.”

Há cinquenta anos, perdi a paciência, cansei-me de aturar burocratas e demiti-me de diretor do Centro de Formação PROF. Mais tarde, com o Adalberto, a Maria do Céu, o Natércio, o Bártolo e outros mestres, integrei a equipe do INAFOP (Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores), onde se desenvolveu trabalho intenso, meticuloso, capaz de mudar para melhor a formação dos profissionais do desenvolvimento humano. 

Esse trabalho – talvez, a última tentativa de aumento do padrão de qualidade da formação – foi ignorado. O INAFOP definiu perfis, critérios, condições de uma efetiva boa formação. Talvez por ter sido um trabalho sério e ter “mexido” com interesses ocultos, foi um projeto de curta duração, tendo sido dissolvido pelo ministério que o criou. 

“Entre os professores com formação adequada há muitos a quem lhes falta “experiência de dar aulas no ensino básico ou secundário”, sublinhou um ex-ministro da Educação, explicando que essa falha faz com que os cursos acabem por ser “mais teóricos e menos práticos do que seria desejável”.

“Há cursos com qualidade e outros sem qualidade”, sublinhou David Justino, defendendo, por exemplo, a necessidade de se elaborar um perfil que evidencie que formação deve ter quem prepara educadores de infância, um professor do 1.º ciclo ou do ensino secundário.”

Eu não entendia por que razão o David dizia faltar “a definição de um perfil comum que se pretende dos professores” e apelava ao ministério da educação que fizesse mais “um esforço”. Porque, segundo disse, o estudo servia como “ponto de partida para uma reflexão mais alargada sobre a importância da Formação Inicial de Professores”.

Mais um esforço? A sabedoria popular resumiria numa expressão a infeliz declaração do ex-ministro: “Vira o disco e toca o mesmo”.

A formação inicial, tal como a chamada “contínua” andavam pelas ruas da amargura. Era bem verdade o que escutava nas salas dos professores e nos corredores das faculdades e dos centros de formação. Nesses e em outros lugres onde os professores colecionavam créditos sem contrapartida de mudança, escutava uma irónica (e triste) afirmação: 

“Quem sabe faz, quem não sabe ensina.” 

E, nesse tempo, quem não sabia ensinar fazia formação de professores.

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