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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLII)

Vilarinho, 8 de abril de 2042

Continuando uma breve análise da Lei de Bases do Sistema Educativo, identifiquei outro ponto do artigo 48.º, ainda por cumprir:

“Em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino a administração e gestão orientam-se por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo”. 

Decorridos 36 anos sobre a aprovação da lei, as escolas mantinham-se cativas de uma administração centralizada e centralizadora. A gestão pecava pelo autoritarismo de órgãos unipessoais. A democraticidade era miragem, porque prevalecia o “dever de obediência hierárquica” sobre critérios de natureza pedagógica. E a “participação de todos os implicados no processo educativo” estava reduzida a um Conselho Geral manipulado.

Numa perspectiva política, Mintzberg afirmava ser a organização escolar “uma arena onde a política domina e os detentores de influência rivalizam entre si e perseguem fins pessoais”. 

French e Raven realçavam “o poder de especialista, resultante do domínio técnico das operações a que se dedica a organização e o poder autoritário decorrente de posição hierárquica detida pelos sujeitos. 

O João Formosinho referia que o poder normativo era o contexto de legitimação dos vários tipos de poder, sobretudo do autoritário. 

O Matias Alves denunciava que as estruturas formais, os regulamentos e os discursos se assumiam como “dispositivos de legitimação, que pretendiam fazer crer que a escola cumpria a sua missão instrutiva e educacional, procurando-se ocultar ou tornar invisíveis os sinais da sua ineficácia. 

E o Weick dizia ser a escola uma instituição “debilmente articulada”, caraterizada pela debilidade entre os fins proclamados e as funções realmente praticadas.

Na segunda década deste século, uma pesquisa concluía que:

A integração dos pais no CGE teria de “considerar o contexto de uma centralização burocrática do poder’.

Devido à falta de “preparação técnica” de muitos dos seus membros, o Conselho Geral não reunia condições de se assumir como o órgão de definição da orientação estratégica da escola”. Na visão dos pais, o Conselho Geral assumia, sobretudo, “uma dimensão burocrática, estando assim ausente uma ação estratégica e tornando problemática a melhoria das práticas educativas”.

Como vedes, queridos netos, uma perversa máquina burocrática – que dava pelo nome de ministério da educação – criava ardis para suprimir quaisquer tentativas de autonomização das escolas. A criação de um órgão, à partida, considerado reforçador de autonomia, desde o início demonstrou ser mais um empecilho à sua prática. Valerá a pena recordar as palavras de um amigo:

“A Escola da Ponte é talvez o exemplo mais marcante de uma escola com sentido, com a qual temos muito a aprender. E é possível aprender com ela, não apenas nas suas dimensões endógenas, mas também sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras decisões do ministério que frequentemente criam dificuldades, inviabilizam e até destroem projetos inovadores, tal como está a acontecer hoje em relação ao projeto “Fazer a Ponte”. 

A lógica de reforma é mecanismo inibidor da transformação da escola. As reformas educativas são apresentadas como um desígnio nacional, com base no argumento de que o país tem pela frente o desafio da modernização. Porém, sob a aparência de liberdade criada pela retórica da flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo, que impregnam as subjetividades dos professores e afetam as condições de trabalho e de vida nas escolas”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLI)

Guimarães, 7 de abril de 2042

Foram anos e anos de andarilhagem, anos a fio a cuidar de outros, sem tempo para cuidar do próprio. É verdade, netos queridos. E, quando me dei conta de que o corpo vacilava, quando precisava de mim cuidar, deparava com uma lista de compromissos sem fim, para cumprir. Muitos educadores, muitas escolas e autarquias despertavam de uma longa letargia.

Num dia de abril de há vinte anos, fui até Guimarães, ao encontro dos amigos do “Tempo Livre”. Como em outros lugares, essa foi mais uma oportunidade de conhecer gente boa: o Rodrigo, o Miguel, o Luís, o José… sobravam os bons educadores, escasseavam as iniciativas de boa educação.

Com esses educadores e com alunos da Secundária de Caldas das Taipas, dialoguei. No mesmo dia, o velho Zoom, permitiu-me dialogar com outros educadores e permitiu ao amigo Antônio esclarecer algumas dúvidas sobre leis e regulamentações. Tratava-se de identificar artigos das leis que as escolas não cumpriam e outros que permitiam inovar… para cumprir a lei.

Decorridos 36 anos sobre a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, seria oportuno fazer um “balanço” do cumprimento da lei, começando pelo artigo 48.º (45º no original), que rezava assim:

“O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes”.

A primeira pergunta surgiu clara e natural: 

Cadê a “integração comunitária”, se os professores, sobretudo em início de carreira, eram “colocados” longe da sua… comunidade?

As condições impostas pelo sistema de concursos e colocações impedia que se estabelecesse um vínculo afetivo e efetivo com as comunidades de pertencimento. As escolas onde eram colocados não passavam de “apeadeiros”, lugares de passagem de professores, que ansiavam ficar “colocados” perto de casa.

Me condoía com a sorte daqueles que passavam por mudanças de domicílio e de vida, em condições, por vezes, desumanas. Coloquei esse sentimento numas cartinhas, que enviei à Alice:

“Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, à semelhança de outros professores em início de carreira, os teus pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”, o final feliz de uma angustiada espera

A “colocação” dava aos vossos pais a certeza de amealhar sustento, assegurar futuro. Eles se conheceram, se amaram e quiseram que viesseis ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. E aceitaram a sina de levar a casa às costas para onde o acaso do “concurso” os atirava. 

“Concurso” era um estranho jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar, naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada ano letivo, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer. O “concurso” era cego, pouco se importava com os afetos e nada entendia de criar laços. Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa e dentro da casa, levavam o teu berço para longe das paragens habitadas pelos teus avós”.

Perante o não-cumprimento da lei, ousei lançar um repto: por que razão os professores eram obrigados a percorrer enormes distâncias, quando, no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo prédio, havia alunos que poderiam aprender com eles?

E uma singela pergunta: o que teria isto a ver com a criação de “círculos de vizinhança”? 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXL)

Santo Tirso, 6 de abril de 2042

A sociedade entregue à sua auto decomposição e a crises de aceleração da História, de que era exemplo a guerra na Ucrânia, agonizava em lutos de fim de século, já não possuía um sentido único de mudança. Os círculos de aprendizagem introduziam algo novo. Não havia separação entre formal e informal, e era contemplada a multidimensionalidade do ser, pois, onde não houvesse espaço para a emoção, a formação seria uma monstruosidade.

Como postulavam o Pineau e o Furter, os limites, as fronteiras físicas e psicológicas dos círculos de aprendizagem não eram estanques. Não eram linhas de delimitação, de separação, mas de comunicação. E nessas “interfaces” surgiram os “círculos de vizinhança” feitos de interculturalidade e transculturalidade, produtores de novas culturas, abertas, interrogativas, mais dialéticas do que culturas autossuficientes.

Nos círculos, se manifestava uma autonomia diversa daquela que, então, vigorava. Na contramão de uma regulamentação retrógrada, educadores usavam iniciar emancipatórios processos. Por que não poderiam os professores associar-se livremente? Havia quem se referisse aos círculos como grupos caóticos sem qualquer conteúdo formativo, incapazes de se autoavaliarem. Legalistas tentaram normatizar o “caos”. Mas, não conseguiram submeter uma utopia realizável e socialmente construída, desde há mais de cinquenta anos. 

Assente no princípio do isomorfismo, que nos dizia que o modo como o professor aprendia seria o modo como o professor ensinaria, os encontros de formação em círculo iam além do curso, assentavam em modalidades formativas emancipatórias. E a praxeologia conferia à experiência um estatuto de fonte de conhecimento. 

O tempo entre encontros era, também, de formação, porque a mudança, como diria Ardoino no seu “Propos actuels sur l’éducation”, não poderia ser promovida somente de fora, ao nível das superestruturas e dos decretos institucionais, se não fosse, ao mesmo tempo, no interior, pelas vozes daqueles que a ela aspiravam e que a iriam, finalmente, exercer. 

Como diria o meu saudoso amigo Steve Stoer, seria inútil formular projeções sócio-históricas, porque não havia na história dos profissionais da educação um futuro pré-determinado. O amanhã seria o resultado aproximado de opções tomadas no hic et nunc do chão de escola.

Vai para vinte anos, a Internet anunciava: 

“Debate sobre o centenário do sociólogo Darcy Ribeiro acontece nesta quarta-feira em Vassouras”. 

Nesse debate participaram a Magda e a Paula, secretárias de educação de Vassouras e de Mendes. Fora em Mendes que a caminhada de Darcy recomeçara, nos idos de 1983. Entre Mendes, Vassouras e Maricá de celebrou a indignação de Darcy, se esboçou um projeto com a participação de centenas de educadores, que percorreram caminhos de Anísio e Agostinho, para celebrar Darcy. 

Celebrar Darcy não poderia consistir apenas em dissertar sobre o Mestre e sua obra. Seria antes atualizar e cumprir o seu projeto. Na assunção desse princípio, nas duas margens do Atlântico, algo novo e imparável acontecia: o questionamento de “verdades eternas”, a indagação da origem de “instaladas culturas”. Por que não produzir teoria na prática (ou na práxis, melhor dizendo)?

Se as teorizações de teorias dos cientistas da educação não fertilizavam as práticas, se o ensino “superior” não contribuía para se efetuar mudanças, restava ao ensino “inferior” fazê-lo. Assim se fez, discretamente, à margem das reformas habituais, em processos de autoformação, em coletivos auto-organizados. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXIX)

Caldas das Taipas, 5 de abril de 2042

Por volta de abril há vinte anos, andava o vosso avô por terras de Entre-Douro-e-Minho, enquanto ia compondo aquilo que, hoje, dizem constituir a base (mais ou menos) teórica das comunidades de aprendizagem. Tentava descrever o que seria um círculo de aprendizagem, um dispositivo central de uma nova construção social. Naquele tempo, muitos educadores o introduziram nas suas práticas, a duras penas, pois era grande a intolerância à inovação. Já havia “denúncias anónimas”…

O dito suporte teórico era construído sobre práxis efetivas, que eu acompanhava num processo formativo. Ao instituir a figura de professor-tutor e ensaiar as primeiras tutorias de um-para-um, os educadores formulavam questões, que mais não eram do que assumidas “dificuldades de ensinagem”. Dialogicamante, pela via dialogia freireana, aconteceu ação, reflexão, consstrução de teoria, tão “naturalmente”, quanto o sentia Alberto Caeiro:

“Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; mas acho que isto deve estar bem, porque o penso sem esforço, porque o digo como as minhas palavras o dizem”.

Aprendemos a lidar com o incerto e com contradições. No tempo escasso que sobejava de sete horas diárias de trabalho direto com as crianças da Ponte, entremeava três ou quatro horas semanais de aprendiz de construtor de círculos de aprendizagem. Praxeológicos passos provocavam, em momentos de encontro e no labor ainda em sala de aula. Partíamos daquilo que éramos e sabíamos fazer –  “dar aula”, Para desclausurar a aula.

A nova “aula” justificar-se-ia, quando o discípulo estivesse pronto e o mestre surgisse para o acompanhar. Na Ponte, as crianças deram o nome de “aula direta” ao novo dispositivo. Muitos anos depois, alguém reinventou mais uma “roda da educação”, vendendo a granel algo semelhante, que dava pelo nome de “aula invertida”. E inseriram esse paliativo num outro outro paliativo, a que chamaram “ensino híbrido”, algo originalmente designado por “aprendizagem misturada” (Blended Learning).

O amigo Tião definiu a escolaridade obrigatória como o serviço militar obrigatório aos seis anos. E compreenderamos que pouco se ensinava e pouco se aprendia nas mais de mil horas passadas, anualmente, dentro de uma sala de aula, nos doze anos de escolaridade obrigatória. 

A Escola da Modernidade nascera nos estados-nação europeus, que se afirmaram e, em guerras, se consolidaram, entre os séculos XVIII e XIX. Como todo mundo sabe (ou toda a gente sabe, em Portugal), teve origem na Prússia Militar, na Inglaterra da Primeira Revolução Industrial e nos conventos franceses. Nasceu enclausurada, inspirada numa das instituições mais respeitadas na França do século XIX: o convento.

A “aula” passou do “pátio” para o interior das igrejas e daí para dentro de “celas de aula” de janelas estreitas e abertas bem acima da estatura dos alunos, num frontal anônimo controlado por um professor. A “tia” (como chamavam às professoras) era definida nos compêncdios de Etologia como a macaca que não podia procriar, porque tinha de cuidar dos filhos dos macacos que morriam”. Solitárias, as enclausuradas mestras estabeleciam um vazio constituttivo com os seus “alunos” – numa das origens etimológicas, os não-iluminados – e aplicavam as “regras” em que tinham sido industriadas. 

Responsavelmente, na tutoria um-para-um, sem fazer dos seus alunos cobaias de laboratório, professores romperam com essa “tradição” sem sentido. E a criação de círculos de aprendizagem foi o primeiro passo para a todos garantir o direito à educação. 

 

Por: José Pacheco 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXVIII)

Vila das Aves, 4 de abril de 2042

“Onde moras?” – quis eu saber. E o Abel respondeu:

“Na Avenida 4 de abril de 1955”.

“O que aconteceu nesse dia?” – retorqui.

“Não sei” – respondeu.

“Então, sugiro que procures saber” – E lá se foi a criança, dando início a um processo de pesquisa. Não sabia, mas iria produzir aquilo que, hoje, os especialistas chamam currículo da comunidade. iria produzir conhecimento, gerar identidade social, no diálogo com outras identidades. 

Hoje, completam-se sessenta e sete anos sobre um “4 de abril” em que a terra onde vivi a maior parte da minha vida foi elevada à categoria de vila. 

Quando remexia o baú das velharias, à procura de notícias dessa efeméride, misturados com elas encontrei amarelados recortes de jornal com estes dizeres:

Jovem em estado grave, após ser esfaqueada no pescoço, numa escola de Sintra. O agressor é ex-namorado da vítima”.

Era mais uma das tristes notícias, que pululavam na comunicação social desse tempo. 

Quem teria ensinado tanto desamor? Talvez uma família hedonista, moralmente adoecida, decalcada no consumismo e em patriarcais atavismos. A deseducação familiar, aliada à social e à escolar engendrava conflitos e martírios. A barbárie varria a Europa de há vinte anos:

“Para matar a fome em Mariupol, come-se cães e pombos. Não há luz, comida e água para sobreviver. Milhares resistem, protegem-se das bombas, bebem gotas de água de canos de esgoto e comem tudo o que encontram, como cães e pombos, para aguentar mais um dia”. 

“Apanhamos um cão vadio, que já não estava bem. Estávamos tão desesperados que o cozinhámos. Estávamos famintos e até tenho vergonha de contar isto”, diz um estudante.

Quem teria ensinado a destruir, a matar, a martirizar? Talvez, também, tivesse sido uma escola desumanizadora, palco de violência simbólica e exclusão.

Por essa altura, um “especialista” juntava a um redutor conceito de “inclusão” a proposta de criação de “turmas de nível”. No seu entender, ressuscitando uma múmia pedagógica, lograr-se-ia “dar resposta a todos os alunos: aos super, aos medianos e aos menos bons” (sic)

Desse exercício de senso comum nenhum mal viria ao mundo, se no mundo mal não houvesse. Certo era que os artigos deste jaez, a propaganda enganosa de empresas do ramo educacional, as teses de inovadores não praticantes, as reformas reformadas e os paliativos de um modelo de escola obsoleto, contribuíam para a manutenção de um estado de conflito permanente. 

Confesso a minha perplexidade. No abril de 22, havia “especialistas” que propunham aquilo que a Ponte havia rejeitado, há décadas!  

O “Fazer a Ponte” talvez tivesse sido o primeiro ensaio de uma nova construção social de aprendizagem e de educação. Desde o início, soube integrar a educação escolar com a educação familiar e com a social, no respeito pelo estatuto de cada instituição, em torno de três valores: autonomia, responsabilidade, solidariedade. 

Dez anos antes do início do “Fazer a Ponte”, o Mestre Anísio isto escreveu: 

“Todos vós já nascestes e fostes criados numa atmosfera de dogma, de rudes certezas, de crenças apaixonadas e de desprezo pelo espírito de dúvida, de ceticismo científico, de verdade hipotética e provisória, enfim, porque o característico dos períodos sem liberdade é a luta contra a razão e o racional. Será que estamos próximos a encerrar esse ciclo de paixão e estreiteza? Há indícios de que sim. Assim que tal se der, o espírito de liberdade voltará a florescer entre os homens. A nossa tarefa, de mestres e professores, poderá vir a ser a nova tarefa de transmitir não a tradição, mas a revisão da tradição”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXVII)

Miranda do Corvo, 3 de abril de 2042

Num tempo em que a “Escola Nova” ainda permanecia proscrita, a Ponte atrevera-se a concretizar a transição do paradigma da instrução para o da aprendizagem. 

Embora, hoje, nos pareça estranho, certo é que, nos idos de setenta do século passado, expressões como “autonomia do aluno”, “näo-diretividade”, ou “metodologias ativas” estavam no segredo dos deuses. Essas e outros “modismos” apenas eram utilizados por empresas do ramo educacional, para fácil obtenção de lucro. A maioria dos professores desconhecia-os. Era compreensível essa grave lacuna, dado que do último dos sumários das aulas de História da Educação do curso de formação inicial constava apenas o nome de… Aristóteles. 

A lista de educadores famosos acabava aí, na antiguidade clássica, embora as práticas radicassem numa proposta do século XVII (que os professores também ignoravam) e em necessidades sociais do século XVIII e XIX. Acrescentarei que, nos idos de vinte já deste século, as práticas mais “avançadas” também não tinham logrado libertar-se do sarro do paradigma da instrução. 

A proposta de Steiner, adotada pelo proprietário de uma fábrica de tabacos, fora misturada com aulas e turmas da Escola da Modernidade. Apesar do uso de bons materiais, as escolas montessorianas iam pelo mesmo caminho. E os adeptos das técnicas Freinet continuavam sozinhos na sala de aula. 

As práticas correlacionadas com as propostas de Decroly, Dewey, Kilpatrick, e de outros escolanovistas famosos não tinham sofrido adaptações. As suas réplicas dos idos de vinte do século XXI eram cópias fiéis das matrizes da década de vinte do século… XIX. 

As promessas do “século da criança” não foram cumpridas. A Escola da Modernidade continuou a negar o direito à educação a milhões de jovens.

Os direitos sociais são a garantia de direitos considerados básicos à vida, garantia do respeito pela dignidade humana. Em 2009, Herrera dizia que a universalidade dos direitos passaria pelo fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações, na construção de um marco de ação que permitisse criar as condições que garantissem de um modo igualitário o acesso aos bens materiais e imateriais que fizessem com que a vida fosse digna de ser vivida. E, denunciando sutis processos de “reprodução”, Bourdieu afirmava: 

“Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar a sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. 

Como um pouquinho de teoria não faz mal nenhum e porque não há prática sem teoria, aqui vos deixo a adaptação de uma prosa do Contreras: a existência de um modelo de racionalização técnica do trabalho docente extingue a reflexão da prática profissional. Operada a separação entre concepção e execução, o professor se transforma num mero executor de tarefas sobre as quais não decide. Acontece desqualificação profissional, perda de conhecimento para agir sobre a produção, perda de controle sobre o seu próprio trabalho, submissão ao controle administrativo. 

Como nos diria o Apel, ciência não é acumulação de saber cristalizado, mas inovação em processo. No abril de há vinte anos, centenas de educadores se empenharam em elaborar teoria, a partir de práxis propiciadoras do direito à educação. Ao longo de dois séculos, a teorização das teorias não lograra fertilizar as práticas, melhorar o dito “sistema”. Milhares de teorizações de teorias jaziam inúteis, mofadas, nos arquivos de teses do olimpo universitário.

A propósito: acaso lestes “O Nome da Rosa”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXVI)

Condeixa-a Nova, 2 de abril de 2042 

Cumprindo o prometido, hoje vos contarei um episódio exemplar.

À boa maneira do herói de antanho, o Viriato da estória gabava-se de não permitir veleidades aos invasores da pacata sala de aula, onde era rei e senhor absoluto. Viriato dixit: 

“Impunha respeito, logo no primeiro dia de aulas. Identificava o líder dos desordeiros e arreava-lhe uma sova de mestre, porque, antigamente, o respeitinho era muito lindo, não era como agora, que já não há respeito nenhum”.

Esse ilustre representante de um “tradicional”, que eu abominava, partia do princípio de que o “seu método” era inquestionável e o melhor. 

No tempo em que a Ana acreditava ser possível fazer formação de professores, coube-lhe em sorte ter o Viriato como formando. O curso visava divulgar diversas metodologias de iniciação à leitura e escrita. A Ana interpelou o Viriato, num dos breves intervalos das conversas paralelas em que ele era especialista. 

A formadora Ana foi gentil, disfarçando o seu incómodo: 

“O colega tem estado distraído. Será porque o assunto não lhe interessa? Importa-se de não falar para o lado e distrair os outros? Importa-se de falar para o grupo e evitar fazer barulho?” 

“Eu quero lá saber do que você está para aí a dizer! Isso é tudo trata! Eu sempre me dei bem com meu método, porque é o melhor. Sempre deu bons resultados. – Retorquiu o Viriato. 

A Ana poderia ter-lhe perguntado se os “maus resultados” de muitos dos seus alunos – aqueles a quem o Viriato se referia dizendo ser “tempo perdido pretender meter alguma coisa em cabeças ocas” – se ficariam a dever a outro método. Mas somente lhe dirigiu a seguinte pergunta: 

“Se o colega afirma, tão peremptório, que o seu método é o melhor, importar-se-á de nos dizer quais são os métodos que considera serem os piores?” 

O Viriato não respondeu. A Ana insistiu: 

“O colega deverá conhecer, no mínimo, mais um método, qualquer seja, para poder fazer comparações com o seu. Não será assim? Quais são os outros métodos que o colega conhece?” 

O Viriato atirou-lhe um olhar mortal, proferiu frases desconexas e remoeu outras tantas (se reproduzidas, em nada abonariam a imagem da profissão) e não mais abriu a boca, durante o curso. 

Veio-me à memória a sábia sentença freiriana: não há diálogo verdadeiro, se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro, um pensar crítico. Ou, como diria o filósofo, só se pode amar o que se conhece. Não será assim? Como facilmente se conclui, a ignorância do professor Viriato não era uma questão de género. 

Poucos dias após o lamentável episódio, o Viriato encontrou-me e me fez queixa da Ana. Fiz-me desapercebido. Pedi-lhe que me contasse o que tinha acontecido. 

O Viriato contou a sua versão, reiterando que o “seu método” era o melhor método. 

Perguntei qual era o “seu método”. Respondeu:

“É o que eu uso nas minhas aulas!”

A conversa era amena e eu atrevi-me a lhe perguntar:

“Por que dás aula? Já leste alguma coisa, por exemplo, da Maria Montessori?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXV)

Lousã, 1 de abril de 2042

Vai para mais de setenta anos que isto aconteceu.

“A sala do senhor diretor é ali, ao fundo do corredor” – Segui a indicação da funcionária e pedi para entrar.

Silêncio de cemitério. Crianças encolhidas, cabeça baixa, copiando um texto de um livro. Régua de cinco olhos em cima da secretária e vara comprida encostada à parede. 

“Venha cá, colega! Já estava à sua espera. Vem se apresentar, não é? Ainda bem que chegou um homem! Já se me estava a esgotar a paciência de aturar estes ganapos. Do que eles precisam é de alguém com pedagogia musculada, que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem”. 

Fiz-lhe ver que não costumava recorrer a castigos e muito menos aos corporais.

“Não seja mole, colega, não seja mole! Você é novo, inocente. Vá por mim, que já cá ando há trinta anos. A letra com sangue entra! Com sangue, fique sabendo!”

A conversa descaiu para uma análise, pouco fundamentada, do insucesso:

“O colega não espere tirar grande coisa destes gandulos. Pancada é do que eles precisam!”

Tentei concluir a desagradável “apresentação”, argumentando com a possibilidade de fazer com que a maioria das crianças não reprovasse, que não ficasse pela segunda ou terceira classe. Altaneiro, sarcástico, aquele diretor macho se pronunciou, exatamente como vos digo e se a memória não me trai:

“Ó colega, não sabe por que é que a educação está como está? Caro senhor, está-se mesmo a ver! Na nossa profissão só se vê mulheres. É só mulheres! Está explicado!”

Eu não queria acreditar no que ouvia, mas ouvi, claramente ouvido. Efetivamente, sempre que abria um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparava com referências a dez ou vinte homens e… a uma ou duas mulheres. Confirmar-se-ia que dos fracos não rezava a história? Seria mesmo demérito das mulheres? 

Era evidente que não era! De Louise Michel a Ellen Key, de Irene Lisboa a Nise da Silveira, da Maria Nilde à Amanda Alberto (esta de nome semi-masculino, por vontade do pai), a lista de ilustres educadoras era extensa, mas não totalmente revelada. Por que tal ostracismo imposto à “metade do céu”? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, da Alma de Mahler à Elise Freinet e à anónima companheira de Einstein, “por detrás de um grande homem havia sempre uma grande mulher”. Ou seria o contrário? Ambas as afirmações estariam corretas e era arbitrária a ordenação das palavras. Restava redimir uma injustiça, repartindo méritos e deméritos por ambos os gêneros.  

Nesse tempo, atitudes “fundamentalistas” não me surpreendiam e eu reagia com benevolência. O “Pater Familias” era um dos culturais sustentáculos da Ditadura. E nunca me esqueci de o vosso pai (na idade dos quatro anos) ter ido ver quem estava a bater à porta da nossa casa e me perguntar:

“Pai, está ali um senhor a perguntar quem é o chefe da casa. O que é um chefe? Quem é o chefe?”

Respondi que éramos todos. Ele, também. Por isso, sempre que se fazia a apologia do regresso ao tempo do Viriato, eu reagia. Não me refiro ao suposto herói, que punia os invasores romanos sem dó nem piedade. Era outro Viriato, mas, pelo que me disseram, entre a pedrada certeira do patriota e a disciplina de caserna imposta pelo vetusto professor, era escassa a diferença. Não seria de admirar que, entre os personagens desta estória e da história distassem somente dois mil anos, uma distância temporal despicienda, se considerarmos serem as mudanças em educação tremendamente morosas. 

Amanhã, vos contarei um episódio, que é prova de que o insucesso escolar não era uma questão de gênero.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXIV)

Freixo de Espada à Cinta, 30 de março de 2042

Os jornais de março de há vinte anos davam conta do desfecho fatal de um conflito familiar: Um adolescente de treze anos de idade matou mãe e irmão, só por lhe terem pedido e, depois, impedido de jogar num computador. O pai ficou em estado grave. O jovem alegou que a motivação para ter cometido o que fez foi porque “os pais o estavam privando de jogar um jogo de que ele gostava, o “Roblox” (sic). 

Por essa altura, um vídeo que mostrava a agressão a uma professora “viralizou”. Um casal de médicos prestou-lhe os primeiros socorros. Depois de atendida na Emergência, a professora recebeu, ainda no hospital, uma bela homenagem de seus alunos e se emocionou. 

Nas redes sociais, os internautas diziam-se comovidos com a violência de um jovem contra uma docente. Evidentemente, tratava-se de um episódio de uma série chamada “Sob Pressão”. Na vida real, professores tinham sido assassinados.

Nos campos de batalha em que as escolas se haviam transformado, raramente alguém se condoía. Porque, quando professores eram desrespeitados, insultados, ameaçados, agredidos, dentro e fora das salas de aula, havia lugar a… indemnização.

Uma professora agredida por um aluno, em sala de aula, foi indemnizada com vinte mil reais, por “danos morais”. O tribunal manteve a decisão que condenou o Estado de São Paulo a pagar essa quantia. Para o colegiado, “era dever do Estado fiscalizar o estabelecimento educacional e punir comportamentos inadequados de alunos sob sua responsabilidade” (sic).

Na Universidade de Coimbra, constava que uma professora fora acusada de insultar alunos e de “marcar falta a estudantes das ilhas e estrangeiros, por considerar que estes não falavam português” (sic). A direção da Faculdade desconhecia a situação, enquanto o Núcleo de Estudantes adiantava ter recebido um e-mail e estar em averiguações. Era alegado que a professora teria identificado uma aluna como “gorda”, ao perguntar se ela estava a faltar à aula. E que a professora “era conhecida por comentários xenófobos”.

Fosse ou não fosse verdade, certo era que a “ponta de um iceberg” se tinha avistado. E que acusações falsas, ou verdadeiras, eram reveladoras do “clima de escola” de muitas instituições desse tempo. A educação familiar, social e escolar estava infetada por uma inversão de valores, onde radicavam conflitos de menores dimensões e onde ganhavam raízes comportamentos pré-bélicos. 

No meu tempo de juventude, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, já não havia uma “Juventude Hitleriana”, mas a Ditadura de Salazar impunha as regras da “Mocidade Portuguesa”. Independentemente dos contextos históricos, encontrávamos sintomas de pré-guerra: nacionalismos exaltados, conflitos étnicos e religiosos, ressentimentos, ódios.

Pitágoras dixit: 

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens”. 

E o meu amigo Isaac assim refletia: 

“Os valores humanos fazem parte de formação da consciência através de princípios morais e éticos que são construídos socialmente e fundamentais para o convívio humano. Entre os valores humanos podemos citar: o respeito, a garantia de convivência social pacífica e justa, a humildade, o senso de justiça e a solidariedade.

Revisitando a história da espécie humana, infelizmente, esses e outros valores humanos não foram utilizados em sua plenitude, gerando um cenário de exploração humana, violência, falsidades, hipocrisia, corrupção, consumismo, desrespeito aos direitos humanos, destruição da natureza, fome, guerras, migrações forçadas, genocídios e injustiças”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXIII)

Almendra, 29 de março de 2042

Felizmente, já lá vai o tempo em que se fazia prova, teste, exame, o tempo em que Freudenthal isto escreveu: 

“O exame torna-se um objetivo; o que vem para exame; um programa; o ensino da matéria para exame, um método”. 

Porém, ainda hoje, o dicionário insiste em dizer que prova é “aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo”. Uma prova, um teste dos idos de vinte caberia nessa definição? É o que iremos ver…

Se quiséssemos falar de avaliação em linguagem de gente, poderíamos dizer que a quase exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação foi responsável por graves erros. Atenda-se ao exemplo do candidato a medicina, que não acedeu ao curso desejado por diferença de… “uma centésima”. 

Por volta do ano 2000, um ministro afirmara que as provas globais começavam a ser inúteis. Vá-se lá saber por quê, outro ministro ressuscitou um tenebroso debate alimentado pela ingenuidade de uns quantos “docentes” e do reacionarismo de tantos outros. Se outra razão não existisse para acabar, definitivamente, com exames, uma razão se imporia. Associada à ideia de exame havia sempre a probabilidade de utilização de cábulas, “cola”, “copianços”. 

Para obstar a desonestas atitudes, para cada sala de exame que se prezasse eram escalados professores que, supostamente, seriam o garante de que os examinados não “copiariam”, não “colariam”. Embora o mais provável fosse que os pedagogos-polícias também tivessem “colado”, “copiado”, quando alunos. E, mais do que provável seria que também tivessem sido vigiados. 

Seria possível distinguir um professor de um polícia? Os “vigilantes” partiam do pressuposto de que todo o aluno era, até prova em contrário, potencialmente desonesto. Embora estivessem calados, o não-verbal transmitia valores negativos. Haveria princípio e prática mais antipedagógicos do que esses? 

Um exame era, normalmente, um teste de papel e lápis, que pouco ou mesmo nada avaliava. Quase só media a capacidade de retenção de informação na memória de curto prazo. Informação inútil debitada por um dador de aula e, depois, esquecida. 

Qualquer professor minimamente informado das coisas da docimologia sabia que o teste era o instrumento de avaliação mais falível que se conhecia e que havia modos mais fiáveis de avaliar. Quem não os conhecia aplicava testes, somava “resultados”, fazia divisões…”dava nota”. 

O exame de acesso ao ensino dito “superior”, por seu turno, era mero instrumento de discriminação, de seleção arbitrária, exclusão e darwinismo social. Por ironia, na tradição académica, o “bom professor” era, frequentemente, o que conseguia mais elevados índices de reprovação. Era evidente a ingénua crueldade das vítimas da rigidez e do acriticismo. Os exames constituíam-se, não raras vezes, em instrumentos de poder simbólico, álibis de profissionais acomodados, alienados. 

Eu poderei entender que os leigos dessem tratos de polé ao assunto e abordassem a problemática na perspectiva do senso comum. Até poderia entender que, à míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiassem na segurança do que melhor conheciam e dominavam – quais os instrumentos de avaliação que a maioria dos professores aprendera a dominar dos bancos da instrução primária à docência? As “fichas”, as provas, os exames orais e escritos.

Só não conseguia entender os “responsáveis ministeriais” e os “especialistas” que insistiam na ideia peregrina e facilitista de que os exames poderiam constituir-se na panaceia redentora dos males que afetavam o “sistema”.

 

Por: José Pacheco

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