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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXXIII)

São Gonçalo, 23 de outubro de 2042

Dissestes terdes ficado estupefactos perante o caudal de besteiras revelado na cartinha ontem publicada. Pois ficai sabendo que ficam muitas por revelar. Ridículas situações aconteciam, nos idos de vinte. Como esta burocrática “pérola”, proposta por um “especialista de sala de aula”:

“Segundo as normas usadas é de 1,2 m2 por aluno mais 12 m2 para o professor, ou seja, mais ou menos 48 m2 para uma turma de 30 alunos, tem que ter pé direito de 2,6 mt e 40 lumens por m2 como iluminação e porta larga. Fazendo a conta para uma sala de, no máximo, 20 alunos. Área: 5.96 m * 6.10 m= 36,356 m². Área da sala: 36,356 – 12 (professor)= 24,356 m² para alunos. 24,356 :1,2 = 20,29 para carteiras, ou alunos.”

Os “especialistas” não detinham o monopólio do disparate instrucionista. A Internet dava notícia de um projeto que limitava número de alunos em sala de aula:

“Depois de três anos de tramitação, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que limita o número de alunos por professor na Educação Básica”.

Esse projeto alterava a Lei de Diretrizes e Bases, que parecia pecar por não estabelecer limite de estudantes a armazenar em “sala de aula”. Por incrível que, hoje, nos pareça, nos idos de vinte, ainda havia sala de aula e quem calculasse o número de alunos a armazenar dentro dela.

Na obra “Escola no Futuro”, Lauro perguntava:

“Por que razão teima o professor em dar aula?”

Salman Khan, um dos gurus preferidos pelos adeptos do uso das novas tecnologias em sala de aula, isto escreveu no seu livro “Um Mundo, Uma Escola”:

“O modelo clássico de sala de aula ainda faz sentido numa era digital?

O velho modelo de sala de aula não atende às nossas necessidades em transformação. O sistema se tornou arcaico.

Por que ainda insistimos que o trabalho deva ocorrer no confinamento de uma sala de aula e ao ritmo de campainhas?

A lição tradicional age contra os objetivos da educação pública. Enclausuradas com outras da mesma idade, as crianças são privadas de perspetivas diversificadas, por meio de currículos rígidos, fragmentados, voltados menos para a aprendizagem profunda do que para um desempenho aceitável em avaliações padronizadas. A aula acaba por se revelar um meio ineficiente de ensinar e aprender.

Foi necessária a faculdade para me convencer da incrível ineficiência, irrelevância e mesmo desumanidade do padrão de aula expositiva. As aulas expositivas eram uma monumental perda de tempo. E as aulas de reforço, como um cemitério acadêmico. Uma vez que o aluno é rotulado e condenado como “lento”, ele tende a ficar mais e mais para trás em relação aos colegas.”

No outubro de 2022, estávamos a escassos dias da celebração do centenário do Darcy companheiro de um Anísio escolanovista. Nas salas de aula da academia, enfeitadas com lousas digitais, em aulas centradas no professor, era dito aos futuros docentes que o centro do processo de aprendizagem deveria ser… o aluno.

Quando chegaria o dia em que o Darcy dos acadêmicos subiria ao chão da escola? Quando se deixaria de enfeitar a sala de aula com paliativos do instrucionismo e se começaria a praticar Darcy?

Agostinho o praticava. E, tal como Darcy, se indignava e denunciava:

“Não é com os mesquinhos artifícios, nem com a mentira, que vencem os que pensaram um futuro e, amorosamente, com cuidados de artista, continuamente, com firmeza, o vão erguendo pedra a pedra.

É necessário que se resista enquanto houver um fôlego de vida, mas que essa resistência seja sobretudo o contato com a realidade da força criadora; é esta que afinal tudo leva de vencida e reduz oposições a pó inútil e ligeiro.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXXII)

Araruama, 22 de outubro de 2042

Nos idos de vinte, o Movimento de Inovação na Educação sugeria a consulta de obras de pedagogos, que se “dedicaram a pensar modelos educacionais mais alinhados com as rápidas mudanças da sociedade”. Considerava que as propostas de eminentes pensadores “poderiam estimular,provocar e fazer refletir sobre como é possível desenvolver práticas pedagógicas inovadoras, dentro e fora da sala de aula.”

A frase faria sentido, se o ponto final fosse colocado logo após a palavra “inovadoras”. Ao acrescentar a expressão “sala de aula”, partia-se do pressuposto de que escola era um prédio feito de salas de aula e que, dentro desses espaços instrucionistas poderia acontecer inovação.

Inovar em sala de aula era missão impossível. Confundia-se inovação com ornamento paliativo.

Era grande a indignação daqueles que, efetivamente, tentavam inovar e careciam de apoio. Nesse tempo, a palavra inovação estava presa numa teia de intenções mercantis, era usada e abusada por especialistas em “captar recursos”. Os dinheiros provenientes de editais, concursos,  fundos comunitários e outras fontes de financiamento eram “caçados” e desperdiçados, porque a  palavra “inovação” estava sequestrada no discurso de teoricistas legitimadores de caricaturas de “inovação”.

Nesse tempo, ainda eram construídos prédios a que chamavam escola e onde professores, alunos e funcionários passavam o “ano letivo” encaixotados em “sala de aula”. Escrevi a palavra encaixotados sem aspas porque, na Internet, um “especialista” dera resposta “técnica” a professores que buscavam resposta a esta pergunta:

Quantos alunos caberiam em uma sala de aula com 5.96 m de largura 6.10 m de comprimento?

Melhor resposta:  5.96mX6.10m=36,356m². Daí faz a regra de três:1 aluno – 1m² x alunos – 36,356m² x=36,356 alunos.

Sei que, hoje, é difícil acreditar, mas não se tratava de um exercício de ironia, perante uma pergunta idiota. E a “resposta” do “especialista” continuou a ser dada do seguinte modo:

“Vamos considerar também qual o tipo de mesa e cadeira. Nesse caso, com a carteira com os seguintes dimensionamentos: Assento: 51 cm de profundidade e 43 cm de largura, em medidas normais; Mesa: 40 cm de profundidade e 60 cm de largura, em medidas normais. Com estes dados, calcularemos o espaço que estas duas peças de imobiliário ocuparão.

Vamos calcular tudo: 60 cm de largura da carteira + 25 cm de cada lado, 60 cm+25×2=60+50=1,10, 51 cm de profundidade da cadeira + 40cm de profundidade da carteira + 40cm de espaço de circulação atrás da cadeira 51 cm+40 cm+40 cm = 131 cm.

Considerando que quando a cadeira for projetada para baixo da mesa (30cm) quando alguém estiver sentado, esta liberará 21cm de espaço para circulação atrás, que, somados aos 40 cm já previstos, totalizarão em 61 cm, o que não é interessante, pois fica maior que a circulação lateral.

Diminuiremos então de 131 cm – 21, onde teremos finalmente o resultado esperado: 51 cm+40 cm+40 cm= 131 cm-21 cm= 111 cm. Quer dizer, teríamos espaço para 30 alunos.

Para finalizar, teremos espaço para 20 alunos, com circulação adequada e ângulo de visão amplo do professor. Ufa!! Tomara que você tenha entendido tudo. Precisando, estamos às ordens!”

Juro que essa “informação” estava disponível na Internet e que constava de um livro publicado por uma editora universitária. O modelo instrucionista chegara ao paroxismo, ao limite do absurdo. O disparate fora institucionalizado.

A este chorrilho de burocráticos disparates poderia juntar muitos outros. Mas esta cartinha já vai longa e por aqui me fico.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXXI)

Itaipuaçu, 21 de outubro de 2042

Quando nascestes, para vós escrevi dois livros com cartinhas de um “avô coruja”. A última das cartas para a Alice, enviada no 15 de setembro de 2001, começava assim: “Algures, em 15 de Setembro de 2007”.

“Querida Alice, Aqui estou, a entregar-te este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens to permitir, hás-de lê-las. São tantas quantos os dias que mediaram o dia de completares seis anos e o dia de ires à escola.

Esta é a última das cartas, que não o fim da estória. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens.”

Nos conturbados tempos dos idos de vinte, o da proto-história da humanidade, a mentira imperava e os gestos fraternos eram escassos. A solidão era, muitas vezes, o destino de pássaros a quem calhou por sina o conhecimento e a bondade.

Um pássaro chamado Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao dom das lágrimas. Porém, o sal do pranto vertido não corroera o sagrado destino das gaivotas das cartinhas da Alice. É sempre útil recordar que, quando as gaivotas da estória decidiram abalar dos rochedos junto ao mar, indo à aventura terra adentro, até desaguarem do seu longo peregrinar numa terra entre dois rios, nada conseguiriam se as gaivotas de outras margens se recusassem a partilhar a construção e a coabitação de ninhos onde jovens aprendizes de voar aprendessem o voar mais longe.

Foi na observação atenta do guacho edificando ninhos que as gaivotas se iniciaram numa sabedoria que não se adquire na contemplação de reflexos num espelho.”

No hemisfério sul dos idos de vinte e dois, quando a Primavera aportou rituais de sedução e uma azáfama de acasalamento nas copas das árvores, mercê de insondáveis e latentes desígnios, sucederam-se cópulas para perenidade das espécies, sem que o instinto se sobrepusesse ao cotio da liberdade.

E o Verão chegou com prommessa de bons frutos. Presencialmente e à distância, criávamos condições de continuidade.  Acompanhávamos protótipos de comunidades de aprendizagem, avaliados tendo por referência uma política de direitos humanos. No Outono, providenciamos a sustentabilidade de uma rede de projetos, que se transformava, multiplicava, consolidava. Após im Inverno do nosso descontentamento, a Terra do Brincar e outras comunidades emergentes se abriram à visita de educadores de verdade.

Como estratégia de mudança, recorríamos a metáforas, como as que Kotter criou e o José Alves me encaminhou:

“Vou precisar da tua ajuda” – disse ela a Fred. – “Preciso que estejas preparado para ajudar os outros a verem e sentirem o problema.”

Após uma breve pausa, acrescentou:

“E prepara-te para que algumas das aves não queiram ver qualquer problema. Temos de convocar imediatamente uma assembleia geral da colónia e convencer tantos pinguins quanto possível de que existe um grande problema. Temos de reunir muitos amigos e familiares e sensibilizá-los para esta questão! Só assim podemos encontrar soluções aceites pela maioria.”

Estavam a ficar, obviamente, desesperados. Foi então que um membro mais velho e altamente respeitado da colónia sugeriu que se tentasse algo de novo.

“Talvez devessem fazer o que o Fred fez quando descobriu o nosso terrível problema. Andar por aí, de olhos e mentes abertos. Ser curioso.”

E o Pinguim Chefe, reconhecendo a necessidade de uma abordagem diferente, concordou.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXX)

Itapeba, 20 de outubro de 2042

E dei por mim a cantar o que o Rui cantava:

“Ai, Senhor das Furnas, que escuro vai dentro de nós… Soletrar, assinar em cruz, não ver os vultos furtivos, que nos tramam por trás da luz”.

E me pergunto: o que me impele a voltar a falar de mentira, de sombras, de aparências, de vícios privados e públicas virtudes? E o que terá isto a ver com o meu mau hábito de educador de, judiciosamente, comentar costumes? O que terá a ver com Educação a situação nada original, que se vivia no Brasil das eleições de vinte e dois?

A mentira andava à solta nas redes sociais, mas o mesmo acontecera em outros momentos históricos. Por exemplo, um personagem trágico de nome Goebbels ajudara a eleger Hitler usando dos mesmos meios. Após a chegada ao poder pelos nazistas, Goebbels rapidamente ganhou controle sobre a mídia de notícias e informações. O princípio básico da sua atuação era o de que uma mentira várias vezes repetida assume estatuto de verdade. Quando a guerra chegou ao fim e o povo alemão deparou com a dura realidade, Goebbels e sua esposa cometeram suicídio, depois de terem envenenado os seus seis filhos com cianeto .

A Educação teria algo a ver com o fenômeno da propagação da mentira? Talvez! Não por acaso, Goebbels obtivera o grau de Doutor em Filologia pela Universidade de Heidelberg. Também, frequentara a Universidade de Würzburg,  a Universidade de Freiburg,  a Universidade de Bonn… acumulara diplomas, aprendera a mentir, era a manifestação perfeita da escola da juventude hitleriana.

Foi vergonhosa a campanha eleitoral de vinte e dois – truncagem de vídeos, manipulação de informação, trechos de afirmações descontextualizados. A devastadora mentira alterara a constituição do caráter, da personalidade, da consciência coletiva. Provocara retrocesso político e social, o encolhimento de uma nação.

O Joelmir caraterizava deste modo a situação:

“Somos um país forjado na herança colonial escravocrata, numa subserviência histórica impregnada nos próprios símbolos nacionais.

Diferente do que nos é ensinado na escola, o verde de nossa bandeira vem do escudo da família real de Bragança, enquanto o amarelo era a cor da casa de Habsburgo da imperatriz Leopoldina.

Se considerarmos que essa adoecida base de valores e crenças, que emergiu dos esgotos durante os últimos anos, já estava entre nós e deita raízes mais profundas do que normalmente enxergamos, fica evidente que não será tarefa fácil reconstruir esse país. Precisaremos de um grande esforço coletivo e pedagógico, de diálogo e de uma dose especial de paciência impaciente.”

A Educação desse tempo era mesmo uma enorme mentira. A crise instalada na escola pública já afetava a escola de iniciativa privada. Havia colégios, que cobravam milhares de reais de mensalidade, mas que já admitiam ter mentido, enganado as famílias, ao prometer “educação de qualidade”. Havia escolas particulares que recomendavam aos pais dos alunos “aulas de reforço” pagas a sessenta reais por hora. E até havia famílias que pagavam quarenta reais por hora a professores que “acompanhavam os seus alunos nos trabalhos de casa”… feitos na escola.

A situação era mais grave do que poderia parecer. Nos anos que se seguiram ao das eleições, despendemos um grande esforço, para reparar os estragos. Os professores da escola prussiana estavam órfãos de verdade, embora não lhes crescesse o nariz.

Porém, passados tempos sombrios e como profetizara o amigo Rubem, ousaram penetrar na verdade dos mundos existentes no mais íntimo dos seus alunos, reinventando uma escola de “pinóquios às avessas”.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXIX)

Lagoa de Araçatiba 19 de outubro de 2042

No hemisfério norte dos idos de vinte, as grandes potências mundiais ainda persistiam em pôr risco o futuro da Humanidade, que diziam “defender”. A Otan mantinha o treino de guerra nuclear e desafiava a Rússia. A Rússia mobilizava duzentos mil e divulgava treinamento para guerra nuclear. A Alemanha dizia ser “chantagem do Kremlin”, que não deveria ser levada a sério.

Pelas bandas do sul, eu desgastava os neurónios na busca de uma explicação para essa e outras loucuras. E para o fato de, em pleno século XXI, ainda haver misoginia, homofobia, tortura… guerra.

Aventei uma hipótese. Talvez a resposta estivesse na educação – familiar, social, escolar – que, nesse tempo, predominava, um modelo educacional gerador de múltiplas ignorâncias, caraterizado pela corrupção moral e intelectual. E, como toda a educação resulta do exemplo…

Sabíamos que os projetos humanos traduziam uma determinada visão de mundo, que escolas eram pessoas e que as pessoas eram os seus valores.  Talvez por isso, os Românticos Conspiradores tivessem aprovado uma “Declaração de Princípios”:

Somos pessoas conscientes de que os modelos educacionais e as práticas educativas possuem decisivas condicionantes socioculturais. Este fato exige que, para a transformação da Educação, tenhamos de ultrapassar seu âmbito restrito, englobando as dimensões sociais, políticas e culturais.

Temos a convicção de que a educação atualmente praticada não contribui para que as gerações futuras tenham condição de superar os cruciais desafios postos para e pela humanidade. Mais do que isso, essa educação acaba por incentivar a formação de pessoas que tendem a reproduzir o modo de pensar, sentir, agir e viver, que produziram tais desafios. Para que os atuais paradigmas educacionais possam ser superados, é necessário estabelecer novas concepções, que apontem formas alternativas de pensar, estruturar e praticar a educação.”

Por esse tempo, inspirados no exemplo dado pelos RC, muitos núcleos de projeto surgiam, secretarias de educação e agrupamentos de escolas despertavam de uma crónica letargia pedagógica. Em Portugal, estabelecemos o diálogo com um ministério, que beneficiava de estabilidade política. No Brasil, após quatro anos de destruição, ajudávamos a reconstruir um “sistema” renovado pela prática de Darcy e a atualização da proposta desse Mestre.

Para tal, foi necessário transpor obstáculos. Nas suas breves, mas excelentes crônicas, a minha amiga Tina assim descrevia um desses obstáculos:

“Conheço discursos lindos, que falam de autonomia e protagonismo dos estudantes. Condenam a educação bancária e a figura do aluno como depositário. Levantam títulos de construtivista, piagetiano, de educação híbrida, sala invertida, com pedagogia de projetos e que aplicam metodologias ativas.

No entanto, na prática, são instrucionistas. Trabalham em linha de montagem, com aulas expositivas, alunos ouvintes, carteiras enfileiradas, professor detentor do saber, apostilas padronizadoras, provas de memorização e rituais robotizados.”

E terminava citando Freire: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.”

No outubro de 2022, fui até à FLIM – Feira Literária Internacional de Maricá. Nela, conversei com a Adriana, a Cláudia, a Andrea e muitos professores. Me encontrei com o incansável Roberto e escritores. E, quando observava crianças e adultos em volta de livros, compreendia que o tempo da coerência estava a chegar.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXVIII)

Tekoa Ka’Aguy Ovy Porã, 18 de outubro de 2042

No outubro de vinte e dois, assisti a uma insólita situação. Cada qual para seu lado, um casal batia tecla nos seus celulares, quando o marido exclamou:

“Olha aqui! Olha aqui! Diz aqui que restos humanos de mais de 240 pessoas foram encontrados no Reino Unido.”

A esposa suspendeu o seu fofoqueiro exercício, acessou o mesmo site de notícias, copiou o título e o replicou pelos mais de duzentos contatos de WhatsApp. Depois, voltou ao seu comunicativo afã, numa rede social, onde a notícia já… “viralizava”.

Seriam fake news? Não eram. Porém, aqueles internéticos consumidores apenas tinham lido o título da notícia. Se tivessem continuado a leitura, chegariam à mesma conclusão dos arqueólogos que examinaram os restos mortais. Eram corpos de vítimas de um ataque do último príncipe de Gales… em 1405.

Não seria preciso recuar cinco séculos, para ler notícias como essa. A barbárie era a norma na Europa “civilizada”. Mas, a pressa de voltar à fofoquice não permitia o acesso a outras notícias:

“Foi descoberto um comboio de carros, com vinte civis mortos a tiro dentro das suas viaturas, na Ucrânia”.

“Um pequeno autocarro foi completamente queimado. Nele estavam quatro corpos deitados nos bancos, um dos quais parecia ser de uma criança”.

E dizia o Oleg:

“Os ocupantes [russos] atacaram aqueles civis, que tentavam escapar aos bombardeamentos. É uma crueldade que não tem justificação”.

“Ataque a tiros em escola na Rússia mata quinze pessoas, onze delas crianças. O autor do crime vestia uma camisa estampada com uma suástica”.

“Na Bahia, um adolescente armado invade escola, dispara contra alunos e mata estudante. Vítima tinha 19 anos e era cadeirante. O atirador foi ferido por um tiro e levado para um hospital, na cidade de Barreiras”.

Admito que, à distância de duas décadas, seja para vós difícil conceber que, no mundo dito civilizado dos idos de vinte, atrocidades fossem cometidas. Mas certo é que os jornais delas davam notícia.

Nos idos de vinte, o desgoverno do mundo era aliado da indústria de armamento. E, enquanto tenebrosas empresas obtinham grossos lucros, a humanidade descia a níveis de incivilidade inimagináveis.

Em 1940, quando a Segunda Guerra Mundial alastrava pela Europa, Chaplin realizou um filme genial, uma metáfora, um apelo à fraternidade, num momento histórico em que a tirania prosperava.

“O Grande Ditador” terminava com o célebre “Discurso à Humanidade”. Nos tempos sombrios dos idos de vinte, enviei aos meus amigos educadores alguns excertos do discurso do “ditador”. Sabia que eles iriam entender a mensagem…

“A ganância envenenou a alma do homem, criou uma barreira de ódio e nos guiou no caminho de assassinato e sofrimento. Desenvolvemos a velocidade, mas nos fechamos em nós mesmos. Nosso conhecimento nos fez cínicos; nossa inteligência nos fez cruéis e severos.

Pensamos demais e sentimos muito pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de gentileza e bondade. Sem essas virtudes, a vida será violenta e tudo será perdido.

O ódio do homem vai passar e os ditadores morrerão. E o poder que que eles tomaram das pessoas, vai retornar para as pessoas.

Não se entreguem a esses homens cruéis. Homens que desprezam e escravizam, que querem reger suas vidas e dizer o que pensar, o que falar e o que sentir. Não se entreguem a esses homens artificiais, com mente e coração de máquina.

São Lucas escreveu: “O Reino de Deus está dentro do homem” — não de um só homem, mas de todos os homens!

Vamos dar fim à ganância, ao ódio e à intolerância.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXVII)

Maricá, 17 de outubro de 2042

No segundo dia do ENARC, pude comprovar que em Petrópolis havia mais do que um povo resistente a enxurradas. A Cecília estava bem acompanhada no enfrentamento de outras catástrofes. Eram muitos e bons os petropolitanos conscientes da necessidade de mudar.

Nesse ensolarado domingo, aprendemos a observar pássaros, dançamos, plantamos árvores, aprendemos a aperfeiçoar a arte de ensinar, na arte do encontro.

A Adriana, Secretária de Educação, participou em todos os atos. Mas, não era só uma secretária que ali estava. Era uma pessoa! Um ser humano sensível, exercendo solidariedade. Na véspera, outra Adriana, que também estava secretária, me enviara a foto que junto a esta cartinha, com uns dizeres:

“Professor José Pacheco, eis nosso Mestre Darcy Ribeiro, a vida dele continua a existir na minha, na sua e nas de tantas outras pessoas. Obrigada por fazer parte minha vida e por me permitir fazer parte da sua.

Feliz Dia do Professor e Felizes sejam todos os nossos Dias”

A Adriana me agradecia, mas quem deveria agradecer seria eu. Estar grato à Adriana e a todos os educadores que, nos tempos difíceis dos idos de vinte, “seguraram o tranco” da Educação.

A expressão (brasileira) que utilizo traduz na perfeição o clima político que, então, se vivia, com metade do Brasil a agir “como um cego no meio de um tiroteio”. Só com expressões tão criativas como essas poderíamos caraterizar movimentos sociais desse tempo. Quanto mais eu aprendia o Brasil menos o entendia, o que provava que Darcy estava certo: o Brasil não era para amadores.

No final da tarde, outro bom brasileiro e amigo, o Paulo, voltava da Amazônia e me ligava dizendo ir visitar a Terra do Brincar. Para lá voltei, na boa companhia do Conrado e da Thais.

Partia para Maricá mais seguro de que, no final desse outubro, se começaria a inverter os descaminhos que a educação percorrera nos anos anteriores. Estava a ser atravessado por novas sensações. A de que o Brasil retomaria uma prática política que dele fizesse o que Darcy e outros anunciaram. E a de que, a breve prazo, eu poderia descansar de uma vida feita de viagens e canseiras. Outros tomariam o lugar deste velho e insuportável professor.

Na São Paulo do distante ano de 2004, a Carla, o Guga e outros amigos tinham cuidado de organizar “Românticos Conspiradores” dispersos. Em 2013, os RC publicaram o “Terceiro Manifesto da Educação com o lema “Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País”.

Entre o Google docs e as redes sociais, em internéticos e-mails, debates e reuniões presenciais, se gestou esse documento. O manifesto assumia-se como instrumento de debate e conduziu à realização de primeira CONANE – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação.

Em suma; os RC apontavam como finalidade maior a transformação da Escola Pública, para que fosse, verdadeiramente… pública. Estava implícita na sua carta de princípios uma ideia de comunidade, de aprendizagem compartilhada. E, como não eram gente de meias intenções, lançavam o convite:

“Arregace as mangas e venha desdobrar o Manifesto em ações concretas!”

Os RC semeavam fraternidade, no sentido que lhe dava Francisco: “frater”, “irmão”. Uma fraternidade renovada, fundada no respeito pela dignidade da pessoa humana. A fraternidade que, em ato, a nossa irmã Cecília traduzia.

Com o “frater” Conrado rumei a Maricá, após três dias de fraterno convívio no Ciep Cecília Meireles, um lugar onde estudantes e professores agiam como cidadãos, repensando o mundo, apontando soluções.

Foi isso o que vi e vivi no ENARC de Petrópolis.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXVI)

Corrêas, 16 de outubro de 2042

No outubro de 2023, Petrópolis acolheu o 11º ENARC – Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores. A Cecília, o Conrado, professores e jovens alunos prepararam com esmero um encontro que permitiu viver momentos de intensa confraternização, de partilha de saberes. e de produção de um saber-fazer comunitário.

Foi isso que a Angélica nos trouxe. O seu testemunho encheu aquela manhã fresquinha com o calor da fraternidade. Era uma vez… um povo abandonado à sua sorte. Que via os seus filhos tratados como “coitadinhos”, crianças que não aprendiam, porque “eram burros”, ou “não se adaptavam à sala de aula”. Porque os pais eram analfabetos, ou porque não tinham livros em casa”. Alguns nem casa tinham.

Um mutirão subiu o morro, e, no meio do mato, no meio do nada, nasceu um centro comunitário e uma escola para as crianças, que não aprendiam.

A escola era a comunidade. Mas faltava uma professora… angélica.

A Angélica começou por dizer que tinha visitado o lugar, quando homens, mulheres e crianças fabricavam tijolos e os carregavam morro acima, para construir a escola.

“Era mato. Mas ali havia escola. Me convidaram para ser a sua professora”.

“Eu era uma professora recém-formada. No Magistério, não me ensinaram a ensinar numa comunidade. Me deixei contagiar, me dispus a escutá-los. E fiquei. Ajudei a criar uma Associação de Pais e a praticar democracia participativa.

Era uma escola pequenina, mas era, também, maior que já vi. As autoridades quiseram fechá-la e mandar as crianças para a escola grande. Não conseguiram. Ficaram na comunidade. Arrecadámos fundos e construímos o Centro Comunitário do Contorno.”

O amigo André, que fazia a “moderação” do painel, comentou que não existe currículo sem território e a Angélica aproveitou a “deixa” para prosseguir na contação da estória.

“Não foi nada fácil. Instalou-se o conflito. Sofri processos por indisciplina e por desobediência. Até que gestores descentralizadores se dispuseram a negociar. A periferia sobrevive na relação social, na escola, na rua, nos círculos de vizinhança. Praticamos uma economia coletiva. Uma reforma foi feita por pedreiros da comunidade, mais barata e de melhor qualidade do que se fosse feita pela prefeitura.

A comunidade se expandiu. Ampliamos o prédio e o tempo de estar na escola. Criamos oficinas de artesanato, de música, de marcenaria, de xadrez. E, inspirados em Darcy, demos um nome novo a uma escola ampliada: Leonardo Boff.

Mas, continuamos a ser violentados. Uma obra mal planejada provocou uma cratera, que engoliu habitações. Aprendemos a lidar com a prefeitura, com o Ministério público, mas ainda esperamos justiça social. A nossa luta é pelas crianças e com a comunidade.”

A Cláudia levantou-se, veio à frente do palco e com voz chorosa de emoção, assim falou:

“Fiz concurso. Poderia ficar numa escola a cinco minutos da minha casa. Mas fui trabalhar bem longe, com a Angélica. Fiquei perto do sonho”.

A Angélica, o seu companheiro e a Cláudia praticavam a “Escola para a Comunidade” do Mestre Lauro. Seguiam o exemplo da Nise do Engenho de Dentro, do Eurípedes de Sacramento, do Agostinho de Itatiaia.

Enquanto a escutava, me lembrei de que, em Portugal, uma comunidade de pescadores reconstruíra um bairro, que o Zeca imortalizou nos “Índios da Meia Praia”.

O Adriano foi à Internet, ligou o Bluetooth, e a voz do Zeca se fez ouvir:

“Quem aqui vier morar não traga mesa nem cama / Com sete palmos de terra se constrói uma cabana. Eram mulheres e crianças, cada um com seu tijolo…”

Era o “Dia do Professor”. Lá fora, um sabiá cantava.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXV)

Petrópolis, CIEP Cecília Meireles, 15 de outubro de 2042

A minha memória já não é a mesma de antanho, mas me lembro de vos ter falado dos quatro pilares da Educação da UNESCO aplicada aos professores e, também, que ousara juntar-lhes outros três.

O quinto era o aprender a reaprender, a pôr em causa o que fizeram de nós, para nos refazermos com aquilo que fizeram de nós. Reaprender consistia em pôr em causa crenças e verdades absolutas, desaprendendo enganos. O sexto pilar era o do aprender a desobedecer. E o sétimo, o aprender a desaparecer, a recuperar o dom do sereno desapego.

A Cecília e a sua equipe tinha preparado com esmero mais um encontro do Românticos Conspiradores. O amigo Conrado me levou até Petrópolis. E, numa manhã de sábado do outubro de há vinte anos, reaprendi com a Angélica o dom da solidariedade.

O 11º ENARC foi o penúltimo em que participei. Apresentava-se como imperativo ético assumir desapego, sem o qual, apenas fomentaríamos crônicas dependências naqueles com quem compartilhávamos a existência. Autonomia não era autossuficiência e solidão, mas algo que se exercia relativamente ao outro, com o outro, sem nunca desistir do outro.

Tecendo tais considerações, à memória assomou o que o meu amigo Jean me dissera, na sua última carta:

O meu pai faleceu nesta madrugada. É difícil exprimir tudo o que sinto.

O meu pai viveu muito e bem, soube viver e soube morrer. Permaneceu lúcido até ao fim, e penso que não foram as dores físicas que o fizeram partir.

Há cerca de um mês, ele disse-me: “Quando a vida já não pode ser melhor…”

Nos seus 87 anos, viu duas guerras mundiais e exerceu a profissão de professor. Nas últimas duas semanas de vida, já quase não se alimentava e falava com uma voz quase inaudível:

“É sempre preciso partir… Sê feliz, Jean, tenta fazer o que puderes para ser feliz.”

Agora, que vejo estas palavras escritas no meu computador, parecem-me poucas. Eu sei que havia mais. Acho que o meu pai tinha aquela capacidade de dizer coisas por trás das palavras que dizia.

Peço-lhe desculpa por este desabafo. Há tanta coisa ainda cá dentro! E há tanta vida ainda para viver!

É bem difícil o desapego de pessoas e de bons momentos. Está fora de causa que não amemos aqueles seres que se vão, para sempre. Mas, talvez essas dolorosas partidas devessem ser mais suaves. A morte nada tem de trágico, a não ser para quem não viveu, e a pessoa que mais vive não é aquela que conta maior número de anos, mas aquela que mais sabe sentir, verdadeiramente viver, saborear a vida.

Nas escolas ensina-se quase tudo, exceto a saber viver, para saber morrer. Talvez por essa razão, a minha amiga Dora me tenha apresentado a Tanatologia, o aprender a morrer. Nunca estamos preparados para perdas e lutos. Quando um ser querido se vai para sempre, morremos para ele. E é fato que nunca nos ensinaram a desaparecer.

Por mais que a frase aparente contradição, diria que desapego é compartilhamento. Mesmo na ausência se pode compartilhar – que o digam as práticas quânticas. E um mestre do desapego, o Dalai Lama, aconselhava-nos a que, nem que fosse por egoísmo, fizéssemos alguém feliz – fazer alguém feliz, mesmo à distância, era um modo de exercitar o desapego.

Ao morrer, Alexandre Magno, determinou que os tesouros conquistados fossem espalhados no caminho até ao seu túmulo e que suas mãos fossem deixadas balançando no ar, fora do caixão, à vista de todos. Nascemos nus, partimos nus, nada nos pertence.

Não façamos listas de livros emprestados. Tenhamos a bondade de desaparecer, deixando um rasto luminoso de palavras e gestos, a iluminar novos caminhos de novos passantes.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXIV)

Tanguá, 14 de outubro de 2042

Os cientistas do nosso tempo lidam com dificuldades de interpretação de lamentáveis ocorrências dos idos de vinte. Os sociólogos não acham quadro de análise capaz de dar resposta a incompreensíveis fenômenos, como aquele que leva historiadores a passar horas a fio debruçados sobre restos de notícias de jornal, que dão conta de tragédias como a do assassinato de vinte crianças e seis adultos, numa escola de Sandy Hook. Tentam encontrar explicação para o fato de um animador de rádio da extrema-direita norte-americana ter afirmado que o massacre não acontecera, que fora montada uma farsa.

Uma ação fora movida pelos familiares de cinco crianças e três educadores mortos no massacre, além de um agente do FBI, que fora acudi-las. Segundo os pais, a mentira tinha aumentado as audiências do programa, o que permitiu ao radialista embolsar muitos milhões de dólares, enquanto eles se tornaram alvo de campanhas de perseguição.

Esse radialista alegava estar a ser vítima de uma conspiração dos democratas. E os politicólogos não encontraram indícios de realidade que permitisse ao negacionista classificar o caso como uma afronta aos direitos de liberdade de expressão.

Os psicólogos desse tenebroso tempo se desesperavam, por não conseguirem encontrar explicação plausível para que, no Dia da Criança, em espaços públicos, crianças brincassem com armas. Que meninos e meninas pegassem em granadas, enquanto miravam armamento pesado e lhes era explicado o funcionamento de fuzis e de bombas de gás lacrimogêneo. Que um militar explicasse a crianças de tenra idade que uma determinada arma “pegava umas dez a quinze pessoas”.

Nos dias de hoje, consideramos essa situação como inacreditável, inaceitável. Nem “a brincar” se admite tamanha atrocidade. Mas, nos idos de vinte, um fenómeno de alienação generalizada, uma doença social afetava parte significativa da população, e que se caraterizava pelo recurso à mentira como válvula de escape de frustrações.

Os politicólogos se desesperavam para encontrar resposta para a incompreensível atitude de um povo que elegia e se sentia representado por políticos corruptos. Mais tarde, pesquisas realizadas por arqueólogos da educação em cooperação com anatomistas permitiram encontrar um princípio de esclarecimento. Conseguiram autorização para exumar o cadáver de um deputado federal que, na década anterior, fez a sua estreia na Câmara abrindo mão dos salários extras que os parlamentares recebiam, reduzindo a sua verba de gabinete e o número de assessores a que teria direito, tudo com caráter irrevogável.

Esse político também reduziu em mais de oitenta por cento a cota interna do gabinete, prescindiu de toda verba indemnizatória e de toda cota de passagens aéreas e do auxílio-moradia. Com essa (solitária) atitude, o deputado economizaria milhões de reais, durante o seu mandato. E o deputado José assim justificou a sua decisão:

“Um mandato parlamentar pode ser de qualidade custando bem menos para o contribuinte do que custa hoje. Esses gastos excessivos são um desrespeito ao contribuinte. Estou fazendo a minha parte e honrando o compromisso que assumi com meus eleitores”.

Em meados da década de vinte, cientistas da educação fizeram uma descoberta, que permitiu deslindar insondáveis mistérios. Esses estudiosos encontraram um princípio de explicação para a nobre atitude desse deputado, quando identificaram uma exótica espécie de educadores, conhecida pela sigla RC (os chamados “Românticos Conspiradores”).

Deles vos falarei em próximas cartinhas.

 

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