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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXII)

Engenho do Mato, 12 de dezembro de 2041

Nunca será demais falar da Ponte, do que ela representou e quantos educadores inspirou.

No início deste século, a minha amiga Cláudia nela fizera a sua pesquisa de doutorado. Nos idos de vinte, dava à estampa um belo livro, em que sintetizava a sua tese. Partilho alguns excertos dessa obra. Sem os comentar.

“A solidariedade, no projeto de escola de todos, não é peça de retórica e tampouco a incorporação de um jargão esvaziado da vivência na prática. Integra um quadro de valores convergente à ética universal do ser humano defendida por Freire, que enfatiza:

“Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro.”

A solidariedade, vivenciada na escola, no sentido que estamos a falar, expressa a comunhão de atitudes de cada um com o outro e com todos, formando uma unidade que favorece às aprendizagens, às situações de formação, de gestão coletiva, de diálogo e resistência às pressões externas.

Ao delegarem a palavra às crianças, enquanto instrumento para a participação, os educadores abdicam de uma posição histórica, que lhes conferia total soberania no ato educativo, mas a confiança que depositam nas crianças parece ser proporcional à responsabilidade com que assumem a formação cidadã das mesmas.

Há de se reconhecer um paradigma de racionalidade coerente com a teoria viygotskyana, que defende a figura do mediador social, alguém mais experiente que age, por meio da linguagem, colocando-se como facilitador da relação sujeito-objeto de estudo.

Um estudo de Macedo, pesquisador brasileiro, contribui de maneira significativa para a discussão em torno dos “fundamentos para uma educação inclusiva”, considerando que, para defendermos uma escola de todos, se requer pensar na lógica da inclusão, que transcende as semelhanças, para acolher as diferenças que singularizam cada ser humano. Partindo deste prisma, o conceito de inclusão toma uma abrangência para além do que se costuma verificar no léxico dos estudos sobre a educação de crianças com algum tipo de limitação, seja física ou orgânica.    

A escola que inclui, ou a escola de todos, é aquela instituição organizada, pedagogicamente, para a promoção da educação da maioria excluída, cerca de setenta por cento da população, formada, não somente pelos “portadores de alguma deficiência, mas também os pobres, analfabetos, famintos, os que não têm onde morar, os doentes sem atendimento (…) no acesso às boas condições de aprendizagem (…) e que podem receber uma educação em sua versão comum, não especial ou excepcional”

É observado um reforço por parte dos educadores, desde o trabalho com o grupo da faixa etária entre seis e sete anos, estimulando e encorajando as crianças a relatarem situações do cotidiano, a perguntar quando não entendem, a querer saber o significado de vocábulos ouvidos e não compreendidos, a colocarem-se sobre os assuntos tratados. Igualmente, o exercício à generosidade e ao respeito de ouvir o que o outro tem a dizer, é vital na cultura da Ponte.

O papel do educador não é minimizado, porém, assume uma outra configuração: ele é complementar, visto que, no contexto da relação educativa, os estudantes tanto apreendem, quanto ensinam. Aliás, nos seus estudos psicopedagógicos, Fernández reforça a importância da interação, para que ocorra aprendizagem, o que não acontece em meio à passividade, mas num ato dinâmico, que requer daquele que apreende assumir, por vezes, o lugar de ensinante para que se consolidem as aprendizagens.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXI)

Várzea das Moças, 11 de dezembro de 2041

Mais uma vez… a avaliação.

Quem visitava a Ponte surpreendia-se com o fato de as crianças-cicerones saberem explicar o funcionamento de cada dispositivo e a sua fundamentação. E, quando alguém perguntava se na Ponte não havia avaliação, as crianças respondiam que avaliação havia, o que não havia era a prova, pois quase nada provava.

Nos encontros com a comunidade, nas tardes de sábado, a agenda contemplava assuntos propostos pelos pais dos alunos. E os professores aproveitavam todos os pretextos para explicar em linguagem de gente, despida de jargão científico, o porquê das suas práticas. Alguns pais manifestaram interesse em aprofundar a compreensão do modo como avaliávamos e me pediram “explicações suplementares”.

Quando uma visitante da Ponte nos questionou acerca do modo como acontecia a avaliação, foi um pai-professor quem respondeu. Aqui, vos deixo duas das perguntas e as respetivas respostas.

“A questão da avaliação sempre me deixou intrigada. Como aplicar um mesmo tipo de avaliação a cabeças pensantes diferentes, que aprendem, entendem de formas e em tempos diferentes. Como mudar a cultura arraigada nos gestores das escolas, nos professores, nos alunos, nas famílias?”

“A cultura é aquela que está arraigada nos gestores das escolas, nos professores, nos alunos, nas famílias. Por isso, a mudança tem que ser bem pensada, estruturada. Pensarmos que tudo se muda de um dia para o outro é uma forma de não mudar.

Para mudar a avaliação, é necessário mudar todo o trabalho escolar (e vice-versa). O que nós tentamos na Ponte é que cada aluno veja reconhecido o seu ritmo e que, paralelamente, a avaliação também seja para cada aluno uma oportunidade de aprendizagem.

A segunda pergunta:

“Percebo que o objetivo da Ponte é proporcionar aos alunos um clima adequado, onde se constitui um marco de relações admiráveis. Eu poderia supor que as avaliações sejam feitas conforme as possibilidades reais de cada um, para que a aceitação das competências pessoais não ocorra em detrimento de uma autoimagem positiva?

“Os laços que unem alunos e professores, alunos e seus pares têm de ser laços de aceitação, confiança, respeito e sinceridade. A aprendizagem efetiva apenas se concretizará num ambiente de reconhecimento e aceitação de diferentes individualidades.

A avaliação regula, reorienta todas as aprendizagens: a aquisição de novos conteúdos, mas também as atitudes e comportamentos. É errôneo pensar que aprender na escola é aprender somente Língua Portuguesa e Matemática.

Um aluno com uma baixa autoestima tem grandes dificuldades em conviver com a frustração, necessita da solidariedade dos seus orientadores educativos, assim como dos seus pares. Neste ano letivo, um aluno precisava ouvir “És capaz de…”, “Tu consegues…”, antes de iniciar qualquer trabalho que julgasse ser mais difícil. Precisará ainda que muitos outros lhe digam o mesmo, para que possa caminhar com mais autonomia.

Há alunos que se revoltam perante o desrespeito pelas suas dificuldades e ritmos de aprendizagem. É curioso verificar que alguns professores encaram a avaliação como um meio de amedrontar os “indisciplinados” da sua sala de aula. Lembro-me de uma professora que carregava consigo testes, que ameaçava aplicar, se as coisas não corressem como havia planeado.

É obvio que só faz sentido que as avaliações sejam feitas conforme as possibilidades reais de cada um dos nossos alunos. Pedir o mesmo a todos poderá significar pedir demasiado a alguns.

Na Escola da Ponte, se fazia avaliação… dialogando.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXX)

Cordeirinho, 10 de dezembro de 2041

Estávamos já em plena quarta revolução industrial. Entrando na geração 5.0. já dispúnhamos de impressoras 3d, com as quais podíamos fabricar objetos, sem sair de casa. A exploração espacial conduziria à criação de fábricas no espaço, produzindo objetos mais baratos, sob o efeito da gravidade zero.

A energia solar descentralizada e outras energias renováveis e limpas já iam substituindo o uso de combustíveis fósseis. A Internet das coisas e os sensores de controle facilitavam tarefas domésticas e a vida em comum. O wi-fi planetário transformava o mundo uma pequena aldeia. O carro autônomo, a robótica e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial iriam substituir o ser humano em múltiplas situações.

Nesse início dos anos vinte, se anunciava que oitenta por cento das profissões existentes desapareceriam em menos de dez anos. E as escolas continuavam a preparar os seus alunos para profissões do século XX.

Neste tempo de incertezas e transições, carecíamos de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Urgia transformar a educação, transformando os contextos em que ela acontecia. Urgia, também, estabelecer interação humana entre a escola e a cidade, capaz de dar sentido ao quotidiano das pessoas e influenciar positivamente as suas trajetórias de vida, contribuindo para a criação de verdadeiros laboratórios de laços sociais, onde a vinculação ética ao outro tivesse a marca da solicitude mútua.

Novos questionamentos davam origem a projetos de produção de vida e de sentido para a vida, na relação com um território biológico e psicológico de partilha em redes de aprendizagem. Quem aprendia apropriava-se, não apenas do conhecimento, mas também do processo pelo qual adquiria conhecimento.

Mas as escolas mantinham-se ancoradas em velhos e inúteis modos de transmissão de informação.

Dizia a Clarisse que, em matéria de viver, nunca se pode chegar. E que a trajetória éramos nós mesmos. Alguém dissera, também, que o educador era mais aquilo que fazia do que aquilo que sabia, sendo mais aquilo que era do que aquilo que dizia.

Era possível obter mudanças efetivas no comportamento e na cultura humana, questionando a estrutura das formas de educação que praticávamos. O desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservação da vida ajudava a superar visões fragmentadas e a, aprender a ver as relações entre as coisas. Mas a atividade docente perenizava uma visão de mundo retrógrada e as escolas mantinham-se na contramão da mudança. Haveria muitos modos de concretizar utopias. Mas a distopia escolar obstava a que tal acontecesse.

Não passava de um grave equívoco a ideia de que se poderia construir uma sociedade de indivíduos participantes, democráticos, enquanto a escolaridade fosse concebida como mero adestramento cognitivo. Para exercer solidariedade, seria necessário compreendê-la, vivê-la em todo e qualquer momento. Projetos eram atos coletivos, consubstanciados numa lógica comunitária, que pressupunha profunda transformação cultural.

Urgia reformular terminologias: desenvolver trabalho COM e não trabalho PARA; substituir o OU pelo E; trocar o EU pelo NÓS. Urgia considerar o aluno como participante ativo de transformações sociais, reconfigurar as práticas escolares.

Bastaria que os professores se interrogassem. Da interpelação das práticas, talvez emergissem dispositivos de mudança nas escolas e em outros espaços sociais onde ocorresse aprendizagem.

Mas, as escolas…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIX)

Itaupuaçu, 9 de dezembro de 2041

O meu amigo Miguel Guerra possuía um dom extraordinário. Era capaz de escrever sobre melindrosos assuntos de um modo entre o divertido e o didático. Ofereço-vos um belo naco de prosa extraído de um dos seus livros: “No coração da escola”. Aconselho a leitura dessa obra e de tudo o que publicou. A ele devo muito do que de bom possa ter feito na minha vida de professor.

Eis como descreveu “vinte formas de enterrar uma ideia”:

“Ignorá-la. Opor um silêncio de morte a todas as propostas desanimará o seu autor, mesmo que seja dos mais resistentes.

Iludi-la. A chegada de uma ideia pressente-se à vista do apuro e da ansiedade do que se prepara para a expor. Mudar de tema, acabar a sessão, fazer-se de tonto, são modos de evitar que prospere.

Desprezá-la. É muito eficaz franzir o sobrolho e dizer com voz doce e tom de assombro: “Não estás a falar a sério”.

Ridicularizá-la. Dizer a rir: “Oh, está muito bem, tiveste que estar acordado a noite inteira para ter essa ideia”. Se, por acaso, isto é verdade ainda tem mais graça.

Elogiá-la. Uma avalancha de elogios fará com que todos se aborreçam com a ideia, inclusive o autor.

Espalhar que não é nova. Se se consegue dar a ideia de um certo parentesco com outra já conhecida, o facto de esta poder ser melhor passará despercebido.

Fazer ver que não está de acordo com a política da instituição
Como ninguém sabe qual é essa política, não se corre nenhum perigo de ser desmentido.

Falar do que vai custar. Como os proveitos são imaginários e o custo imediato e real, a ideia será interditada. Se pôr em marcha a ideia for gratuito, não será difícil avisar que o que não custa nada não vale grande coisa.

Dizer que já foi tentado. Esta ofensiva é particularmente eficaz quando a ideia vem de um novato, já que sentirá que não está ao corrente.

Levantar a dúvida sobre ela. Comentários do tipo: não é um pouco extravagante? Será que nos convém tanta sofisticação? Não parece pretensiosa?… São muito eficazes.

Fazer uma contraproposta que a bloqueie. Se a contraproposta contar com o apoio maioritário, não será difícil dissuadir o inventor.

Modificá-la sucessivamente. Este método é muito elegante. Os retoques criam a ilusão no autor de que a sua ideia é tida em conta, já que parece que se pretende dar corpo à iniciativa.

Pôr em dúvida a paternidade da ideia. “O Xavier não tinha já feito uma proposta parecida com a que o Henrique apresentou agora?” Enquanto toda a gente averigua quem foi o primeiro a pensar nela, a ideia pode expirar por falta de oxigénio.

Condená-la por associação de ideias. Se se consegue associá-la, ainda que seja ao de leve, com a ovelha negra do grupo ganhou-se a partida.

Desmontá-la para a pôr em pedaços. Se se manipular uma ideia durante o tempo suficiente, não restará dela nada mais que os despojos.

Atacar pessoalmente o autor. Enquanto o inventor se refaz da desqualificação pessoal, a sua ideia terá ido ao ar.

Sustentar que vai contra um qualquer obscuro regulamento. Mesmo que a legislação não afete diretamente a ideia em questão, ficará a suspeita de não concretizável por ser ilegal.

Adiar a ideia no tempo. Dizer que será estudada numa próxima reunião ou que se voltará a colocá-la na mesa no próximo exercício revela-se muito eficaz.

Encarregar uma comissão de a examinar. Se essa comissão nunca for constituída, se é o presidente que se opõe à ideia, se for composta por muitos membros e se têm prazos de tempo muito flexíveis, a ideia estará enterrada antes de nascer.

Incentivar o autor a melhorá-la. Se a primeira era boa, a próxima será ainda muito melhor, numa sequência sucessiva de melhoria.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIX)

Itapeba, 8 de dezembro de 2041

No começo deste século, após trinta anos de ultrapassagem de obstáculos à mudança educacional, eu ainda insistia em que seria preciso incomodar os acomodados. Mas, mais do que isso, ajudar os incomodados e identificar obstáculos, para que aprendessem com os erros e soubessem resistir.

Vinte anos depois, a Bárbara enviou-me um e-mail, que terminava assim:

“Olá, José! Admiro seu trabalho. Foi por meio dele que resolvi me tornar uma “professora diferente”. Obrigada por usar sua voz para transformar a vida de educadores, que não se conformam com os atuais sistemas hegemônicos de educação.”

Sempre que deparava com mensagens deste teor, a preocupação com o futuro dos seus autores me assaltava. A decisão ética fora tomada, mas isso era apenas o primeiro impulso de mudança. Pela frente, dificuldades surgiriam. E eu me empenhava em os avisar, precaver.

Precavido, o meu amigo Miguel publicou um artigo em que descrevia o que chamava de “fagocitose do educador”:

“Fagocitose é a propriedade que algumas células têm de capturar e ingerir outras células. Simplesmente comem-nas. Destroem-nas.

No sistema social, no sistema educativo, na escola, também há mecanismos de fagocitose. São as acusações e desqualificações pessoais contra aqueles que não desistem de trabalhar para uma melhor educação. Eis alguns juízos desqualificativos:

“Tem problemas afetivos (e é por isso que se dedica, que trabalha).

É um trapaceiro. Faz bom trabalho por interesse de ascender, para ter Muito Bom, para adular os chefes, para receber uma recompensa.

Tem poucas luzes”. Atribuir a uma pessoa escassos dotes críticos ou criativos, considerá-la imbecil é uma forma de se manter na trincheira dos espertos. Ser inteligente e não “fazer nenhum”, ganhar muito com o mínimo de esforço.

“É militante do partido X”. Pôr etiquetas com intenção desqualificadora protegerá o acusador da evidente falta de rigor profissional.

Tem problemas com a mulher (ou com o homem).

Obstáculos surgiam, geravam mal-estar. Qual seria a sua origem? Michel Crozier ensaiou uma explicação:

“Identifico três problemas fundamentais. O primeiro releva da psicologia. O segundo tem a ver como relacional. O terceiro inscreve-se no campo dos saberes, onde a escola privilegia mais os conhecimentos do que o saber-fazer.

No plano psicológico, num mundo caracterizado pela liberdade infinita das escolhas possíveis, choca-me a incapacidade de as crianças escolherem. Os pequenos permanecem marcados por uma educação “dominação/revolta”. O mestre fala, o aluno escuta, não podendo tomar a palavra a não ser nos modos eruptivo ou revoltado.

A escola é o reino da submissão e da não-escolha. Para além disso, é terrivelmente ansiogénea, uma vez que toda a marcha atrás é difícil.

Que se entende por problema “relacional”? A necessidade de uma abertura, de uma disposição de espírito que não existe. Os trabalhos de amanhã lhe atribuirão uma grande importância. Um esforço considerável deve ser empreendido para dar às crianças o gosto de se dirigirem aos outros e estabelecerem o laço social.

E chegamos à terceira dificuldade: a questão dos conteúdos e dos saberes.
Há alguns anos fui convidado por Luc Ferry para refletir sobre os programas escolares. Devíamos aligeirá-los e acabamos por sobrecarregá-los. Que fazer, então?

É preciso dar aos professores instrumentos de reflexão e deixá-los trabalhar sobre os problemas e os constrangimentos que se lhes colocam. Querem fazer-nos acreditar que na educação nacional apenas o ministro pensa. As mudanças não se decretam.”

 Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVIII)

Inoã, 7 de dezembro de 2041

Dialogando, se refletia sobre a avaliação, que se fazia na Escola da Ponte. Retomemos as perguntas e as respostas.

“Vejo a avaliação totalmente entrelaçada com o Projeto Pedagógico, currículo, concepção de ensino-aprendizagem, objetivos, metodologia e instrumentos de avaliação. São muitos os aspectos a considerar. Gostaria de saber o vosso parecer a respeito de meu modo de ver.”

Resposta dada por um professor da Ponte:

“A avaliação é o “X da questão”, quando formativa e servida por instrumentos que, efetivamente, avaliem. Aqui, deixo registro de alguns dispositivos de avaliação por nós utilizados. Alguns foram dispensados ou reformulados, ao longo dos anos e – creio bem! – sê-lo-ão, nos próximos dez, ou vinte anos.

No Debate final de cada dia, alunos e professores registram as suas impressões sobre o trabalho realizado. Comparam-se as atividades do plano do dia com as atividades realizadas, o que se aprendeu e o que ficou por aprender. Critica-se, propõe-se, explica-se por que se fez, ou não se fez. E os alunos emitem juízos sobre a própria avaliação. Esse ato poderá ser também mais uma oportunidade de avaliação de atitudes:

“Do que eu não gosto é que, às vezes, não faço tudo e dizer isso na avaliação é um bocado chato / Na avaliação contamos o que fazemos e a avaliação faz-nos pensar / A avaliação que eu fiz neste ano foi melhor porque foi para aprender e para sabermos quem nos ajudou / Se eu não escrevesse a verdade, estava a ser injusta para os meus colegas / É importante porque nós vemos o que fizemos do plano do dia e é uma boa ideia, para ver do que somos capazes / Faz-nos ter pensamento e sermos pessoas / Acho bem que se tenha feito a assembleia, para se resolver os problemas que se passam todos os dias na escola, para não serem só os professores a resolver Foi importante ser boa aluna muito tempo, aprender os gráficos e descobrir como sou. Aprendi coisas da vida, que eu não sabia que existiam. Aprendi a corrigir os meus erros e a minha memória. Relembrei como se trabalha em liberdade e como se faz a avaliação do trabalho, como se tira as coisas da cabeça e se aprende a não copiar. Aprendi a fazer as coisas com imaginação e a encher uma folha com coisas importantes / Fizemos regras para cumprir. Eu tenho tentado cumprir, mas, às vezes, esqueço-me. Aprender é uma coisa boa. Eu tive dificuldade em algumas palavras complicadas, que eu não percebia. E não cumpri uma regra, que foi de falar baixo. Eu acho que estou a melhorar um pouco em tudo” / Do que eu gostei menos foi de ver as meninas a falar e os meninos a padecer. Acho que há alunos que põem coisas no Tribunal só por vingança. Gostei de trabalhar porque fiz mais amigos. Gostei de termos assembleia para toda a escola, embora o número de perguntas sem pensar aumentasse muito / Acho mal que o Pedro e o Armando não me deixem jogar futebol; deitar pão ao lixo, estragar o nosso jardim, roubar ou riscar as coisas dos outros, não deixarem os pequeninos andarem de balanço e não ter amigos, porque eu não tinha amigos. Acho mal que a Fatinha limpe, nós tornemos a entrar e sujemos tudo outra vez, que haja meninos que não param de falar e que falem sem levantar o dedo / Proponho que a Assembleia não recuse propostas só por preguiça, que se compre duas bolas e se ponha rede nas balizas, que os aniversários sejam mais bem arranjados, porque senão não sei por que há uma responsável. É preciso que seja mais atenta e não ande sempre aérea, que os trabalhos sejam mais devagar e que não houvesse mais zangas com os colegas, que também se ponha críticas no “acho bem”, que os professores não tenham tantas reuniões”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVII)

São José do Imbassaí, 6 de dezembro de 2041

Nos idos de vinte, a educação continuava à deriva e era fértil em dislates. A prova de acesso à universidade era um deles. Não sendo obrigatória, a frequência da universidade era um direito. Mas, um instrumento de darwinismo social negava a muitos jovens o acesso ao “superior”.

A comunicação social era pródiga na divulgação de um triste espetáculo:

“Dois irmãos chegaram ao local do exame, mesmo “em cima da hora”, e só um pode entrar. Outro jovem chegou na moto do pai, com um minuto de atraso: “Pütz! Já era!”

Cerca de 500 estudantes faltaram à prova, em locais próximos à favela: “A prova é muito longe da minha casa. Não tenho culpa de morar no Salgueiro.”

Na televisão, uma “doutora em educação” lamentava:

“No ano passado também acompanhei o meu filho… A universidade é para todos, mas…”

Desde a sua criação, essa prova era cenário de transmissão de valores, que configuravam má educação. E, mesmo considerando os alunos como seres potencialmente desonestos, os vigilantes não anulavam possibilidades de prevaricação. Muitos jovens eram apanhados no uso do celular, durante a prova. E o aparato policial não impedia que aumentassem as tentativas de fraude.

Um professor foi acusado de vazar questões da prova para os alunos, uma semana antes da aplicação do Enem. A denúncia foi feita depois de um estudante publicar fotos de apostilas contendo as questões. Um estudante enviou uma imagem da prova, por um aplicativo de mensagens, horas antes do início do exame. Meses depois, a polícia confirmou o vazamento, mas não conseguiu identificar o autor das imagens.

Pessoas foram presas suspeitas de comandar uma organização que, através de pontos eletrônicos, enviava o gabarito da prova para os candidatos, durante a realização do exame. Cerca de quarenta estudantes já matriculados em universidades teriam conseguido as vagas valendo-se do esquema. A quadrilha chegava a cobrar trinta mil reais pelas respostas.

O INEP, responsável pela aplicação do Enem, eliminou mais de mil e quinhentos candidatos, por tentativa de fraude. Outro caso de grande repercussão aconteceu na gráfica onde as provas eram impressas. Numa das edições da prova, 740 candidatos foram eliminados por uso de equipamentos inadequados. E houve casos em que imagens das provas foram postadas em redes sociais, tiradas dentro do local do exame.

A impressão digital da coleta de dados biométricos evitava que outra pessoa fizesse a prova no lugar do inscrito. Mas, trapaças ocorriam em quantidade muito acima do que se detectava, e uma análise estatística apontava alta chance de ter ocorrido fraude em centenas de provas.

Seria preciso avaliar a avaliação. Acaso houvesse efetiva avaliação nas escolas dos idos de vinte, o vestibular universitário não determinaria as regras do jogo, a montante do sistema. Nesse tempo, a avaliação decretada era formativa, contínua, sistemática. Mas, a avaliação praticada na maioria das escolas estava nos antípodas da lei, nada tinha a ver com o preceituado.

Aplicava-se duas ou três provas por trimestre, somava-se os resultados e dividia-se a soma pelo número de provas, para se atribuir uma classificação. Confundia-se avaliação com classificação, como se a escala intervalar (de variável contínua) fosse semelhante a uma escala ordinal (de variável discreta).

Havia quem dissesse que também considerava o nível de criatividade, autonomia etc. Mas, cadê os testes, ou outros instrumentos de avaliação da criatividade e da autonomia? E a criatividade e a autonomia teriam sido “ensinadas” na sala de aula?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVI)

Araçatiba, 5 de dezembro de 2041

Vai para uns vinte anos, o amigo Matias dizia ser preciso avaliar e rever a agregação de escolas. Em escassos parágrafos, refrescarei a mente de quem não se lembre do que foi a infeliz criação de “agrupamentos de escolas”, decretada pelo ministério da educação de Portugal. Nas palavras do amigo Matias, assim foi:

“A Agregação Forçada de Escolas transformou os estabelecimentos de ensino em “Unidades Orgânicas” ingovernáveis. As vantagens proclamadas no Diário da República e nos discursos políticos – mais articulação vertical, mais coerência organizacional, mais sequencialidade…- não passaram, na maior parte dos casos, de uma retórica de ilusão para não dizer de hipocrisia.

Os mega agrupamentos foram “soluções” tecnocráticas para um maior controlo e para a redução de custos. Mas à custa de muitos prejuízos de valor incalculável. As lideranças pedagógicas focalizadas nas aprendizagens deixam de poder existir; as práticas de proximidade, suporte e exigência tornam-se tendencialmente impossíveis.

Não se advoga um regresso ao passado. Mas, com as escolas, avaliar a eficiência e a eficácia da decisão. Nos casos em que novas identidades se forjaram e as aprendizagens dos alunos se fortaleceram, deixar estar. Nos casos em que se acentuou a balcanização e o caos ter a coragem e a sensatez de voltar atrás. Para se poder ir em frente.”

No início do século, a Escola da Ponte protagonizou a primeira experiência de agrupamentos de escolas. Aves/São Tomé de Negrelos foi a sua designação. A experiência não durou mais do que um ano letivo. Consciente do logro de “soluções” tecnocráticas para um maior controlo e para a redução de custos”, a Ponte recusou integrar quaisquer “ajuntamentos”, que viessem a ser criados. Quedou-se à margem dessa insanidade. 

No ano de 2004, a Ponte celebrou com o ministério um contrato de autonomia pioneiro. Entretanto, a lei da autonomia foi revista, abastardada e de autonomia restou pouco. Em 2012, a ministerial prepotência descumpriu o contratado, descaracterizou a autonomia conquistada, desrespeitou as decisões da comunidade, desenraizou o projeto Fazer a Ponte, quando o exilou na margem hostil de um rio, que sempre separou culturas tradicionalmente (e infelizmente) inconciliáveis.  

Nos primeiros anos deste nosso século, presenciamos a formação de mega-agrupamentos, a instalação de uma administração controladora, distante de uma educação na proximidade, servida por diretores desprovidos de autonomia e por professores remetidos para a condição de subordinados de lideranças toxicas, privados do exercício digno da profissão, reproduzindo arcaicos rituais, em ajuntamentos de escolas controlados por comissários ministeriais.

Em 2017, numa intervenção no Primeiro Congresso das Escolas, o professor Licínio asseverou que as lideranças fortes se revelavam particularmente fracas, quando os diretores dos agrupamentos se assumiam enquanto subordinados, fortemente dependentes perante a tutela. 

A autonomia da escola era confundida com a autonomia do diretor, embora na prática se tratasse do exercício de micropoderes com alguma relevância para os atores escolares, mas que se mostravam “pequenas concessões de autonomia”, nas palavras do professor Silva. Os diretores de agrupamentos de escolas se revelavam vulneráveis nas suas relações hierárquicas com a administração central, sendo escrutinados e responsabilizados por via de novos instrumentos de controlo e de “uma burocracia eletrônica cada vez mais intrusiva e autoritária”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXV)

Niterói, 4 de dezembro de 2041

Estávamos no início do século, eu e a Susana, conversando sobre a “escola de uma nota só”, que só recebia alunos que tocassem a escala de dó, porque os seus professores só entendiam quem cantasse em coro e no mesmo tom. 

Essa escola do início do nosso século não conseguia entender quem aprendera música na rua, ou não aprendesse música alguma. Felizmente, alguns professores já aprendiam a ouvir diferentes melodias e, sensatamente, elaboravam outros sons. 

O vosso avô isso escrevia, enquanto passeava com o Rubem por escolas do Nordeste, em terras onde a minha amiga Susana cuidava daqueles que, sendo considerados “especiais”, eram submetidos a uma educação excludente. Dizia a Susana que a escola não estava preparada para atender as crianças consideradas “normais” e muito menos estava para cuidar de “pessoas com sinais de diferença”:

“Queremos uma escola onde afinados e desafinados façam parte da mesma orquestra. Acreditamos que todas as crianças têm o direito de crescer em ambientes livres, juntas, independentemente de raça, credo ou capacidade intelectual. Queremos uma escola preparada para ouvir todas as músicas de variados tons. É nela que realizamos nosso exercício de cidadania, onde vivenciamos e incorporamos os valores sociais e morais, através da cooperação entre os indivíduos. Onde, de facto, a afinação da orquestra acontece. E, como já dizia o poeta, “no peito dos desafinados também bate um coração”.   

Essa sensível mensagem foi escrita por mãos trémulas de uma mulher às vésperas da morte e terminava assim: 

“Um grande beijo e toda a paz para você. Nos veremos, em janeiro”. 

“Nos veremos”, disse a Susana. Mas não mais nos voltaríamos a ver. Decorridos dois meses, esse frágil beija-flor iria deixar o nosso mundo mais pobre pela sua ausência. A Susana soube ocultar a doença que a condenava a partir demasiado cedo. Até ao fim, pôs entusiasmo em tudo o que fazia. Até ao fim, buscou a “escola policromática” a que se referiu na interpelação que me fez no decurso de uma conferência.  

No final dessa “fala” (como chamam às conferências no Brasil) que o teu avô fez sobre a escola das aves, disse-me que havia reparado no modo peculiar com que eu me despedia das pessoas: “Até logo”! 

Sublinhou que um “até logo” tanto poderia significar que nos voltaríamos a encontrar mais logo, nesse mesmo dia, ou que nos encontraríamos mais tarde… ou na eternidade.  Sentindo aproximar-se o tempo de partir, a Susana vivia intensamente aquela despedida, como se fosse a derradeira. Após um longo silêncio, de um olhar de dizer e não dizer, fitou-me longamente e repetiu a saudação: 

“Até logo!” 

Que distraído eu estava! Absorto nas coisas que consideramos importantes, ignorante do drama, respondi, natural e laconicamente: 

“Até logo!” 

Numa das cartas, que te enviei – lembras-te, Alice? – te descrevia humanos seres, que viviam como os pássaros:

“De tão belos, espalhavam em seu redor um doce perfume que os resgatava da lei da morte, uma fragrância, que ficava a pairar sobre a terra dos pássaros, muito para além do tempo de viver”.

E te falava da Susana, que partira discretamente, numa migração sem regresso. Por ter vivido em harmonia com a respiração dos pássaros, habitava a grande catedral do espírito. As notas da sua escala em arco-íris, harmoniosamente se subdividiram em meios e quartos de tom. Multiplicaram-se. Da claridade da sua alma transmigrada partiram raios de luz em todas as direções, num S.O.S. captado por corações puros de pássaros disponíveis para entoar novas melodias e interrogar as “escolas de uma nota só”.   

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIV)

Maricá, 3 de dezembro de 2041

Nos meus noventa anos, não esqueço a primeira visita à casa onde viveu Darcy Ribeiro. A Adriana,a Cláudia, a Andréa e a Natália me levaram até lá, na manhã de um dia de finais de novembro, que jamais olvidei. Nessa casa, me deixei possuir por forte emoção. Nesse lugar teve início um projeto, que resgataria a memória do insígne Mestre. O espírito de Darcy se fez presente, num breve encontro com excelentes educadores. Darcy regressava ali,  onde se recuperava a sua memória. Ali, nele inspirados, esboçamos novos rumos para a Educação de Maricá e do Brasil.

Ali, Dacy escrevera derradeiras palvras, quando o câncer consumia o seu último sopro de vida, depois de sofrer um longo exílio, enquanto o seu país dormia distraído, “sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações”

Nos idos de vinte, o Brasil ainda não conseguira acordar de um sono de séculos. A lei, que fizera aprovar, nos idos de noventa, continuava letra morta. 

Imaginai, queridos netos, que os autores de uma inútil reforma acreditavam que o sistema iria melhorar com “boletins e reprovações, quando um período por dia fosse dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares, ou quando houvesse espaço para que professores trabalhassem por projetos em algumas disciplinas”. “Em algumas disciplinas”, lestes bem. Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos fossem protagonistas do próprio aprendizado (sic)”. 

Entristeciamos, quando víamos que aqueles que detinham o poder denegriam a memória de Anísio, de Freire, do Lauro. Com Darcy, constituíam “o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país”

Desgovernantes lamentavam que apenas um terço dos alunos apresentassem conhecimento adequado ou avançado em português e em matemática; ou que, na oitava série, apenas um quarto estivesse em nível adequado nessas disciplinas. Despudoradamente, ressuscitavam medidas de retrocesso, que perenizavam o velho paradigma escolar, reprodutor de oprimidos e opressores, que o malogrado secretário de educação Paulo Freire tanto denunciou. 

Nos idos de vinte, medidas de manutenção do desperdício de dinheiro e de gente serviam apenas para perpetuar o analfabetismo, numa escola que já produzira mais de trinta milhões de analfabetos. Restava saber se os reformadores agiam por ignorância ou por loucura. Eram ignorantes aqueles que desprezavam a produção científica, que ignoravam a existência de práxis coerentes com a tua Lei de Bases, quem tomavam decisões desprovidas de bom senso. Também um súbito acesso de loucura poderia ter ocorrido, pois já o sábio Einstein nos avisava que “a maior insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Essas inúteis “medidas” eram apregoadas com pompa e circunstância, na comunicação social, como se de algo sério se tratasse. Bem dissera Darcy que a crise da educação não era uma crise, mas um projeto. E afirmara: 

Brasil, o último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”

Milhões de jovens tinham sidos condenados à ignorância, por via de desastrosas políticas. Mas, num novembro de há vinte anos, a secretaria de educação de Maricá reassumiu as denúncias e respondeu aos apelos de Darcy, tomando em suas mãos a missão do egrégio Mestre, que dissera ter falhado em tudo o que tentara fazer. Celebrando o seu exemplo e memória, educadores maricaenses fizeram com que, depois de tenebrosos tempos, luminosos tempos chegassem. 

 

Por: José Pacheco

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